Eli Brasileiro, o centenário que se fez conhecido pelos "garimpos de Goiás"

Data: 12 de abril de 2015

Veículo: Jornal Opção

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Este é o segundo dos quatro escritores goianos que completariam 100 anos neste ano. O primeiro foi José J. Veiga.

Um caminhão Chevrolet ‘Gigante’ roncava doidamente, subindo forte ladeira num espigão entre as cidades de Peixe e Porto Nacional. O chofer tinha os olhos pregados na estrada, segurando firme o volante. A seu lado, na boleia empoeirada, um passageiro de luto olhava distraidamente a paisagem ao longe. O horizonte se mostrava limpo, na inconsistência azulada da imensidade.

Eli Brasiliense

 

Yago Rodrigues Alvim

“Ele era um homem simples”, repetia o professor e escritor Heleno Godoy já ao fim da conversa. Era como se as palavras despissem quase uma saudade do amigo ou, talvez, dos homens que, como ele, deixam boas lembranças. Simples, Eli Brasiliense não deixou só a boa saudade, deixou também a boa literatura. Se não fosse o dia 15 de dezembro de 1998, em que sua vida se apagou, o escritor goiano, que nasceu num Tocantins ainda pertencente a Goiás, estaria assoprando as velinhas de seus cem anos no dia 18 de abril.

Em 1915, numa casinha em frente à Catedral de Nossa Senhora das Mercês, na então Porto Real de um Brasil colonial, nasceu o filho de Jesuína Silva Braga e Bernardino Ribeiro. Como escreve o também escritor goiano e poeta Edival Lourenço no artigo “Eli Bralisiense e Seu Verbo Poderoso”, presente no livro “Memórias de Nossa Gente” (Edição comemorativa aos 20 anos da Unicred), o menino vivia entre orações à Nossa Senhora das Mercês e os riscos do caudaloso Rio Tocantins.

Na sorte que lhe salvava das mortes na água do rio — como diz o próprio: “quase morri afogado onde brincava, numa afoiteza de menino que ainda não sabia nadar” —, o maior romancista goiano até meados do século XX, pe­ram­bulou a infância em Natividade. Depois das aulinhas primárias no Colégio Santo Tomás de Aquino, em que as literaturas francesa e portuguesa lhe serviram de melhores amigas, ficou conhecido em Corumbá como “tropeiro que fala francês”.

À cidade do escriba Bernardo Élis, a Corumbá das primeiras décadas do século XX, Eli levou sua sapiência do francês e das viagens em lombo de tropa, como conta Edival. Levou também consigo os estudos em rádio-telegrafia e mecânica de motores a explosão.

A fé lhe acompanhou na sobrevivência do tifo, que teve na década de 1930, já em Corumbá, e da “bexiga” (varíola), quando já conhecia a Cidade de Goiás. De volta a Porto Nacional, Eli também exerceu o ofício de jornalista. Em meados de 1945, pendeu à poesia, cuja produção minguou-se, dando espaço à ficção. Ainda assim, como bem pontua E­dival, as obras poéticas que chegaram até os dias de hoje são de “uma força estilística considerável”.

 

Folhas mortas! Passados agasalhos

De pássaros cantores, que regaço

Buscavam sempre neste verde abraço,

Num parolar de lépidos pirralhos.

Também a vida se assemelha à fronde,

Que abriga sonhos e esperanças quando

Do amor o mundo nos descerra as portas

Edival Lourenço, “Folhas Mortas”

 

Já perto da década de 1950, em Goiânia, Eli fez sua vida. Heleno Godoy diz que o autor, ainda que tenha nascido em um lugar onde hoje é Tocantins, se fez goiano, pois aqui consolidou sua carreira, se casou, teve filhos e até, infelizmente, perdeu um deles. Em Goiânia, Eli foi redator-chefe da Folha de Goyaz, emprego que abandou por motivos políticos. Peram­bulou por outros jornais e revistas e lecionou sua língua materna e francês em diversos colégios.

Foi então que, em 1949, nasceu do prêmio Bolsa de Publicações Hugo de Carvalho Ramos o primeiro romance de Eli: “Pium – nos garimpos de Goiás”. Dele, outros títulos sucederam. No entremeio de sua segunda obra, foi o 3° presidente da seccional goiana da Associação Brasileira de Escri­tores –– a atual União Brasileira de Escritores (UBE-GO), presidida por Edival Lourenço.

Em 1954, chegou ao público seu segundo romance “Bom Jesus do Pontal”. Dois anos depois, lançou o romance urbano que conta o surgimento da nova capital de Goiás, Goiânia, intitulado “Chão Vermelho”. Em 1957, adentrou à Academia Goiana de Letras, da qual foi presidente de 1961 a 1964. “Rio Turuna”, como relembra Godoy, foi um livro que venceu o primeiro concurso literário da Universidade Federal de Goiás (UFG). “Um Grão de Mostarda” foi lançado em 1969, quando Eli passou por outro estado gravíssimo de doença, acometido por uma úlcera do duodeno.

Em 1970, seguindo a temática filosófica do livro anterior, escreve “A Morte do Homem Eterno”. Dali apareceu sua “obra-prima”, como muitos críticos consideram: “Uma Sombra no Fundo do Rio”. Edival compartilha em seu artigo um depoimento que Eli deu ao professor italiano Giovanni Ricciardi. Era sobre como se nasce um texto, um romance, sob o título de “U­ma Sombra”:

“Não há uma receita determinada para isso. O romance é como um rio. Ele tem a nascente e tem o leito próprio. Mas ele recebe muitos afluentes. Então, são todas as histórias que estabelecem um ramal, mas todas centralizadas ali, naquele canal. De maneira que a gente aproveita muitas coisas, sem prejudicar o leito próprio do rio”.

 “Pium” foi o primeiro romance publicado por Eli Brasiliense

O homem que deixou certa saudade em Godoy, num jeito de relembrar como são os bons autores que fogem estrelismos, que saboreiam da simplicidade da vida, e que mudou quem foi Edival, após ler o romance de Eli, frutificou outros títulos ainda: “O Pe­re­re­ca” (1973), “Bilhete à Minha Filha na Noite de Natal” (1981) e o livro de conto “O Irmão da Noi­te” (1968) e o inédito “A Voz do Rio”, que reúne crônicas e novelas.

Quanto ao termo “regionalista”, Godoy bate bem o martelo: “Eli não era um escritor regionalista”. Ainda que as histórias se passem no norte do então Estado de Goiás, a sua totalidade é outra. E é isso, diz Godoy, que o destaca como um dos maiores romancistas até a metade do século XX. “A construção da narrativa, o conhecimento dos elementos, a apresentação das circunstâncias, a análise mental dos personagens e a atmosfera do romance são alguns dos pontos mais fortes de Eli”, diz.

À universalidade de sua obra são mais que valiosas as palavras de Edival sobre o centenário Eli: “De minha parte, eu sei que desde então [quando leu o romance “Pium”] nunca mais fui o mesmo. (…) A partir daquela leitura, eu passei a me pertencer aos garimpos de Eli. Os garimpos de Eli passaram a me pertencer. Eu já não me sentia sozinho”.