Físicos do CBPF atacam demônio de Maxwell

Data: 02/06/2016

Fonte/Veículo: Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas

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Uma equipe internacional de físicos – com a participação de pesquisadores do Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas (CBPF) – acaba de dar uma contribuição que ajuda a entender um famoso experimento mental no qual estão envolvidos uma entidade malévola e um recipiente cheio de gás. Os resultados pertencem a uma das mais recentes áreas da física: a termodinâmica quântica.   

Para entender os resultados aos quais chegou esse grupo de físicos, é preciso retroceder no tempo e buscar auxílio da história da física.

Em 1871, em seu livro Teoria do calor – e, mais tarde, em carta a um colega –, o físico escocês James Clark Maxwell (1831-1879) imaginou um experimento no qual a ação de um ser inteligente poderia contrariar a chamada 2ª lei da termodinâmica. 

Essa lei, em termos simples, pode ser entendida assim: abra um frasco de perfume em um quarto fechado. Depois de certo tempo, as moléculas irão sair do recipiente e tomarão todo o ambiente. A pergunta crucial aqui é: por que as moléculas não voltam para o interior do frasco? A resposta, com base na 2ª lei, é que a ‘desordem’ (tecnicamente, entropia), em um sistema isolado (quarto, no caso), cresce com o tempo.

A 2ª lei explica vários fenômenos do cotidiano. Por exemplo, por que uma xícara que cai no chão não retorna para cima da mesa com sua forma inicial.

Maxwell, ao propor seu experimento mental, queria mostrar que a 2ª lei não tinha uma natureza absolutamente determinista. Ou seja, para o físico escocês, ela era essencialmente estatística, isto é, podem ocorrer pequenas variações (flutuações) nas quais a entropia de um sistema isolado diminui, com a ‘desordem’ virando ‘ordem’ por uma fração diminuta de tempo. Em resumo: a 2ª lei poderia ser violada.  

Para provar essas ideias, Maxwell – um dos fundadores do eletromagnetismo – imaginou uma caixa com moléculas de ar em seu interior. Esse recipiente seria dividido ao meio por uma parede interna na qual haveria uma portinhola. Agora, entra em cena o tal ente inteligente e de extrema percepção. Seu papel era simples: abrir a portinhola toda vez que uma molécula de ar de maior energia se aproximasse dela, fazendo com que essa molécula mais energética passasse para o outro lado da caixa.

Com o tempo, dizia Maxwell, teremos algo fora do comum: o lado mais quente aumentando de temperatura, e o mais frio se esfriando. Ou seja, no primeiro, a entropia teria aumentado; no outro, diminuído. E tudo sem realizar trabalho, empregando-se apenas a inteligência arguta daquele ser imaginário (figura).

E aí estava o paradoxo: como fazer a entropia diminuir em um sistema isolado?

A afirmação de que a 2ª lei poderia ser violada estava longe de ser tranquila à época. Um caso emblemático da importância que os cientistas do século 19 depositavam nessa lei é o conselho que o físico alemão Max Planck (1858-1947), um dos grandes especialistas em termodinâmica, costumava proferir. Esse alerta era mais ou menos assim: se seus cálculos forem contra qualquer lei da física, continue seu trabalho, porque você pode estar certo; mas, se eles contrariarem a 2ª lei da termodinâmica, atire-os no lixo, porque eles, certamente, estarão errados.

 

Diminuto demônio

Apesar da aparente simplicidade, aquela caixinha de moléculas e sua entidade – que, poucos anos depois, ganhou as feições de um diminuto demônio – atravessaram gerações sem uma resposta apropriada.

O físico húngaro Leó Szilard (1898-1964), por exemplo, voltou a atacar o ‘demônio de Maxwell’ em 1929. Para ele, aquele ser tinha que ter meios para medir a energia (velocidade) das moléculas, e essa ação de adquirir informação demandaria gasto de energia (trabalho).  

Cerca de 30 anos depois da ‘máquina de Szilard’, veio a público um resultado que tem a ver com experimento realizado agora por John Peterson, estudante de doutorado do CBPF, e colegas. Em 1961, o físico teuto-americano Rolf Landauer (1927-1999), então trabalhando na empresa IBM, discordou dos argumentos de Szilard, ao alegar que certos procedimentos termodinâmicos não requerem gasto de energia. Em termos simples, o demônio poderia fazer o que faz sem realizar trabalho.

Landauer, no entanto, acrescentou ao problema um viés que o tornaria famoso. O chamado ‘princípio de Landauer’ diz que a tal entidade pode selecionar quantas moléculas quiser e abrir a portinhola um sem-número de vezes sem realizar trabalho. Mas... ela seria dotada de uma memória finita – pois não existe nada na natureza com memória infinita. E seria justamente na hora de apagar a memória do demônio – para que ele seguisse selecionando as moléculas de ar – que o trabalho seria realizado, fazendo a entropia do sistema aumentar. Ou seja, a 2ª lei estaria preservada.

Ao fazer isso, Landauer mostrou que informação é uma grandeza termodinâmica, o que ele resumiu em uma frase hoje famosa: “A informação é física”. Esse resultado tem um alcance para além da física, por adentrar o campo da filosofia, ao ligar a teoria da informação com a termodinâmica.

Landauer mostrou que, para apagar um bit de informação, é preciso gastar uma quantidade de energia que não pode ser menor do que certo valor, o qual depende apenas da temperatura do sistema e de dois valores fixos. Tecnicamente, essa energia é dada pela expressão kT ln 2, na qual ‘k’ é a chamada constante de Boltzmann (um número extremamente pequeno); ‘T’ é a temperatura absoluta do ambiente; e ln 2 é o logaritmo natural de 2 (aproximadamente, 0,7).

O experimento de Peterson e colegas usou a técnica de ressonância magnética nuclear (RMN), cujo princípio é semelhante ao do exame médico. A ideia original era medir a energia necessária para apagar um bit quântico (q-bit) de informação. Para isso, eles usaram uma molécula complexa cujos núcleos dos três átomos do elemento químico flúor fizeram o papel dos ‘q-bits’.

O experimento teve que ser obrigatoriamente sutil, pois não se pode medir diretamente um q-bit, pois, pelo fato de ele ser um núcleo atômico (ou seja, uma entidade quântica), qualquer tentativa nesse sentido altera suas propriedades (ou, tecnicamente, seu estado). Com o auxílio dos campos magnéticos gerados pelo equipamento do Grupo de RMN do CBPF, Peterson e colegas estabeleceram uma estratégia para driblar o problema da medição: fizeram um dos núcleos de flúor interagir com o outro, e este com o terceiro, sobre o qual recaiu a medida.

A equipe chegou ao seguinte resultado: a energia para apagar a informação contida em um q-bit mostrou-se maior do que a prevista pelo princípio de Landauer (kT ln 2). Mas há uma explicação para essa discordância: o princípio de Landauer vale quandoo sistema pode interagir com um ambiente infinito. Mas, no caso do experimento, o papel do ambiente era desempenhado por apenas um núcleo atômico (o 3º), no qual foram realizadas as medidas. Outro detalhe: o princípio de Landauer se aplica se o experimento for realizado por um tempo infinitamente longo.

Quais as possíveis implicações para os chamados computadores quânticos, que prometem ser muito mais velozes que os atuais? Uma delas é que a informação em um q-bit, por necessitar de uma energia maior do que kT ln2, torna-se mais robusta, mais difícil de apagar. No entanto, há uma desvantagem nisso: quando for preciso apagar a informação no q-bit, isso demandará uma quantidade maior de energia.

 “Até onde sabemos, é a primeira comprovação experimental do princípio de Landauer em nível quântico”, disse outro dos autores, Roberto Sarthour, pesquisador do CBPF. “Nessa mesma linha de pesquisa, acabamos de submeter outro artigo para publicação. Nele, fazemos, em nível quântico, uma implementação do demônio de Maxwell propriamente dito, usando, para isso, apenas 2 q-bits de uma molécula de clorofórmio”, explicouPeterson.

Além de Peterson e Sarthour, também assinam o artigo Alexandre de Souza, Ivan dos Santos Oliveira, todos pesquisadores do CBPF, bem como John Goold, do Centro Internacional Abdus Salam de Física Teórica, em Trieste (Itália), Kavan Modi, da Universidade Monash (Austrália), Diogo Soares-Pinto, Universidade de São Paulo, e Lucas Céleri, da Universidade Federal de Goiás.

O artigo está em Proceedings of the Royal Society of London A v. 472, n, 2.188, p. 20150813 (2016).

 

No experimento mental, o demônio é suficientemente inteligente para perceber a velocidade (energia) das moléculas e permitir que as mais energéticas passem para o outro lado da caixa, através da portinhola que ele controla

Crédito: Wikimedia Commons