Rua da memória, casa da resistência

Data: 13/09/2016

Fonte/Veículo: O Hoje

Link da notícia: http://www.ohoje.com.br/noticia/cultura/n/123431/t/rua-da-memoria--casa-da-resistencia

 

Grupo Vida Seca relembra a história do Césio 137, por meio do projeto cultural Rua 57, Nº 60 – Intercâmbio e Difusão, com palestra, oficina e um espetáculo musical

Para os mais velhos, parece que foi ontem. Para os mais jovens, parece coisa de outro século. E foi mesmo, em 1987, para ser mais exato. Há 29 anos, em 13 de setembro de 1987, apenas 19g de cloreto de Césio 137 foram suficientes para causar um grande transtorno em Goiânia, que foi palco do maior acidente radiológico do mundo. Foi a partir de uma história repleta de irresponsabilidade e desinformação que os olhos do mundo se voltaram a Goiânia. Olhos de repulsa e medo. Tanto que, após esse período sombrio, a prioridade em políticas públicas era o investimento em uma nova imagem da cidade. Ao longo dos anos, passamos a ser reconhecidos como a capital dos parques, a cidade mais arborizada do Brasil, e essa nova imagem levou ao esquecimento de uma parte importante da nossa história. 
Para muitas pessoas o acidente ficou apagado da memória – como uma foto esbranquiçada pelo tempo. Para as vítimas, essa é uma história que não passou, e a memória daquele setembro evoca sentimentos tristes, mas também de resistência. O grupo musical Vida Seca transformou essa lembrança em arte e educação. Com o objetivo de dialogar sobre o assunto, convidou professores da rede pública de ensino a vivenciar e trocar saberes com pesquisadores da área no projeto Rua 57, Nº 60 – Intercâmbio e Difusão.
A ligação do grupo com o tema começou, em 2007, quando dos 20 anos do acidente. “A Associação de Vítimas do Césio fez um ato em 2007, e nós participamos com o grupo Por Qua, de dança. Em 2010, a performance foi transformada em um vídeo, dirigido pelo Michael Valim, que ganhou a Mostra ABD no Fica. Em 2014, lançamos um disco com o material da trilha sonora e, agora, temos esse projeto, que é um desdobramento, de intercâmbio e difusão”, diz Ricardo Rosseto, integrante do Vida Seca.
A programação é dividida em duas fases: a primeira é Intercâmbio e ocorre nos dias hoje e amanhã, a partir das 19h no Espaço Sonhus. A ideia é explorar o tema a partir de uma palestra, uma mostra de vídeos e uma oficina musical. A palestra Césio 137 – 29 Anos recebe Sueli Lina de Moraes, presidente da Associação de Vítimas do Césio 137, e o professor Júlio de Oliveira Nascimento, coordenador do Núcleo Interdisciplinar de Pesquisa sobre o Acidente com o Césio 137, para falar sobre os dramas vividos e ainda hoje enfrentados pelas vítimas do acidente, além de elucidar sobre a história em si. O documentário Césio 137 – O Brilho da Morte, de Luis Eduardo Jorge, aborda as marcas deixadas pelo acidente no meio ambiente e na vida dos acidentados. 
No segundo dia, as três horas de programação serão dedicadas à oficina O Processo de Criação do Vida Seca. Nela, Danilo Rosolen, Igor Zargov, Ricardo Roqueto e Thiago Verano, integrantes do grupo, mostram seus instrumentos feitos a partir de materiais recicláveis e o processo de criação sobre a temática proposta. A professora Marília Reston é a convidada do dia para falar sobre o vídeo dança da qual foi coregógrafa. Dessa interação entre artistas e professores, há o objetivo de “que se leve depois, para as salas de aula, para que haja um resgate histórico do acidente”, diz Ricardo
Em outubro o projeto entra na sua segunda etapa, a Difusão, que consiste na apresentação do espetáculo de música Rua 57, Nº 60, constituído de três peças. Rua 57 recria a trilha sonora do documentário realizado em 2011; Nº 60 foi composta em improviso exclusivamente para o álbum do grupo, e Fukushima é uma peça inspirada no acidente na usina nuclear ocorrido no Japão em 2011. 
“Nossa ideia sempre foi levar esse espetáculo para um público mais amplo, que não ficasse restrito somente ao público habitual de cultura em Goiânia”, explica Ricardo. “Mas, como se trata de uma peça densa, não falada, só instrumental, seria necessário que os alunos, nosso público-alvo, fossem contextualizados. Aí, nessa primeira fase, entram os professores, que vão tratar do tema em sala de aula”.  Ainda é possível fazer inscrições até o horário de início da palestra de hoje.

Césio 137
O dia 13 de setembro de 1987 é visto como o marco zero do acidente. Foi quando Wagner Mota Pereira e Roberto Santos Alves encontraram o aparelho de radioterapia, abandonado nas ruínas do antigo Instituto Goiano de Radioterapia (IGR), e o levaram ao ferro velho de Devair Alves Ferreira, localizado na Rua 57. O pó, semelhante ao sal de cozinha, brilhava com uma cor azulada e encantava as pessoas que por lá passavam. Logo nos primeiros dias, já se notavam sintomas como náusea, vômitos e tonturas. Começava um alvoroço na cidade com a imprensa nacional e internacional noticiando tudo o que acontecia. 
As vítimas que chegaram a ter contato com o Césio tiveram suas casas demolidas e objetos pessoais colocados em contêineres, que logo foram levados para o depósito, em Abadia de Goiás. As consequências eram visíveis física e psicologicamente. Histórias de vidas se acabavam em minutos. O isolamento os levou a uma quebra brusca da estrutura familiar e social. De um lado, a vontade de voltar à vida normal e a ter contato com o mundo. Do outro, o medo da rejeição social e do preconceito.

Vida Seca
O grupo Vida Seca surgiu em 2002, nos ensaios de percussão de estudantes no DCE da UFG. “O bloco de percurssão se reunia para discutir questões estudantis e também para trocar experiências. Era um grupo que participava de mobilizações sobre causas sociais”, conta Ricardo. Com a dissolução do bloco, em 2006, quatro amigos se reuniram e fundaram o Vida Seca. Ricardo diz que  trabalho do grupo surgiu de forma intuitiva e todos os integrantes são autodidatas. “A gente estudou outras coisas; eu mesmo me formei em Comunicação Social. Só agora que o Igor (Zargov, outro integrante), faz música no Instuto Federal”, diz ele.  
Não há material que eles não transformem em instrumentos. Tudo vira som e objetos criados a partir de sucata;  é a base do som dos rapazes. Dos quatro integrantes atuais, três são fundadores do tempo das reuniões estudantis: Igor Zargov, Thiago Verano e Ricardo Rosseto. A eles, se juntou o piracicabano Danilo Rosolen. O grupo possui dois álbuns gravados, Som de Sucata e Rua 57, Nº 60. “Existe um projeto de fazer algo ainda sobre o Césio para o ano que vem, que marca os 30 anos do acidente com o Césio. Mas ainda é só um projeto”, adianta Ricardo.