Três livros que ajudam a entender a Cuba dos irmãos Fidel e Raúl Castro

Data: 05/12/2016

Veículo/fonte: Jornal Opção

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No falecimento do líder máximo do governo cubano, vale a pena, especialmente para os jovens, ler e refletir sobre o que ocorreu na ilha, por intermédio de três livros muito interessantes publicados no Brasil

Arnaldo Bastos Santos Neto*

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Nossos anos verde-oliva, de Roberto Ampuero (Benvira, 2012)
Jovem militante da Juventude Comunista Chilena, Roberto Ampuero fugiu do golpe militar de 1973 em seu país e foi morar na então Alemanha Comunista. Lá conheceu sua futura esposa, Margarida, filha do general Ulises Cienfuegos, importante dirigente do governo da ilha. Após alguma resistência por parte do pai da jovem cubana, se casam e vão morar em Cuba, inicialmente na casa do sogro, uma bela mansão colonial “expropriada” de seus antigos proprietários num dos bairros da elite de Havana. Depois se mudam para um apartamento cedido pelo regime (e também confiscado de algum “inimigo da revolução”). Pouco a pouco, Ampuero começa a tomar distância do governo, primeiramente por ver o abismo entre o dia-a-dia do cubano comum e os privilégios da “nova classe” que ascendeu ao poder e depois por verificar o caráter francamente repressivo do regime. As objeções de Ampuero não foram bem recebidas, obviamente, e este teve que lançar mão de sua condição de chileno para conseguir retornar a seu país de origem, justamente quando a ditadura de Pinochet principiava a sua queda fatal. Ampuero deixou para trás um filho, de quem se viu separado por uma larga data. No livro, mal conseguiu escrever sobre o rapaz, que morreu tentando a arriscada travessia para a Flórida efetuada num arranjo de bote formado com câmaras de pneu de caminhão.

Roberto Ampuero: escritor
Roberto Ampuero: escritor

A maneira como as tímidas críticas de Ampuero foram recebidas pelo seu círculo íntimo em Cuba, a começar pela própria esposa, integrante da nova elite, deixa claro como os regimes socialistas atualizaram a famosa definição de justiça posta por Karl Marx. Para ter acesso a boas residências (construídas antes da revolução) e empregos no governo, poder viajar ao exterior ou adquirir bens que para o cubano comum são inacessíveis, é fundamental demonstrar obediência irrestrita ao  regime. Marx escreveu que no comunismo todos teriam acesso aos bens indispensáveis “de acordo com sua necessidade”. No socialismo cubano, todavia, tal lema foi atualizado para “a cada um de acordo com sua obediência”.

Ampuero escreve o seu testemunho das coisas que viu. É um livro de memórias. Não escreve como um ideólogo que desenha esquemas teóricos sobre como algo deva ser interpretado. Ideólogos estão sempre prontos a escrever justificativas e explicações para crimes cometidos pelos governos que carregam o signo de sua ideologia, seja de direita ou de esquerda. Tenho sempre em mente a importância de ler o testemunho das pessoas que viveram concretamente os processos históricos, como um antídoto para as fantasias ideológicas. Ampuero começa mostrando a crueldade da repressão de Pinochet e do turbilhão de ódio que tomou conta do Chile no começo dos anos 70. Termina narrando, sem conseguir ir além de uma frase, a morte inglória do filho nas águas do Caribe. Na sinceridade da sua narrativa reside a força de seu livro, onde registra fraquezas, dúvidas, perplexidades. Fora de Cuba pôde avançar na sua carreira como escritor, tornando-se uma referência na moderna literatura chilena.

O balanço final de sua experiência aparece num parágrafo lapidar, que vale a pena reproduzir: “Poderia dizer que foi a ameaça de ambas as ditaduras latino-americanas o que terminou por converter minhas memórias em um romance autobiográfico, ou que o texto inicial optou por mudar de gênero para continuar contando sua verdade. Reitero que cheguei à Ilha de Fidel Castro fugindo de Augusto Pinochet. A ilha era então a minha utopia. Pinochet, o meu pesadelo. A experiência me ensinaria que ambos eram ditaduras, e que não há ditaduras boas nem justificáveis. Todas são perversas e nocivas, inimigas do ser humano e de sua liberdade”. Quem poderia ter escrito melhor?

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Filho da Revolução: minha infância na Cuba de Fidel Castro, de Luis Manuel Garcia (Landscape, 2007).

A família de Luis Manuel Garcia se dividiu desde o primeiro momento da revolução. Alguns foram embora de pronto, enquanto outros resolveram ficar, esperando que o novo regime redemocratizasse o país, algo que nunca aconteceu. O livro percorre a trajetória usual, que vai do encanto ao desencanto. Garcia narra a construção dos mecanismos de controle do regime, os Comitês de Bairro para Defesa da Revolução, os CDRs, e a transformação dos vizinhos em fiscais ideológicos. Nos conta da pequena loja de aviamentos da família, situada numa cidade do interior,  inicialmente inviabilizada pelas novas regras econômicas do regime e depois estatizada (mas não durou muito a experiência estatal e teve de ser fechada). As desventuras da família se tornaram mais sérias quando o pai de Garcia tomou coragem e solicitou permissão para sair do país. Quem solicitava tais permissões, podia esperar anos por uma resposta, que talvez nunca acontecesse, num país que abandonou a ideia de Estado de Direito pela fórmula equivocada da Ditadura do Proletariado, um outro nome para um Estado de Exceção Permanente. O simples fato de pedir tal permissão ao Estado já transformava o cidadão num “gusano”, que significa “verme” em espanhol. A partir daí, o “gusano” contra-revolucionário sofreria inúmeras interdições e dissabores, para servir de exemplo para os demais cubanos. O pai de Garcia, por exemplo, foi enviado para um campo de trabalhos forçados, para laborar no corte da cana-de-açucar, visando a sua reeducação e o bem da sociedade em geral. Os parentes dos “gusanos”, deixados para trás na ilha, também seriam vistos com suspeita…

Mesmo contando suas desventuras com o novo regime, Garcia não abandona o tom bem humorado dos cubanos, cuja alma caribenha os fez sempre expansivos e criativos diante das adversidades. Os acontecimentos da sociedade cubana são contados em primeira pessoa, como a passagem de um ciclone, sua paixonite pelas garotas búlgaras que vem para estudar em sua escola, os discursos intermináveis de Fidel, a chegada dos técnicos russos e a introdução da “libreta” (o cartão de racionamento), tudo é motivo para comentários irônicos de Garcia, uma marca dos escritores da ilha. Ainda menino, quando da chegada ao poder dos irmãos Castro, Garcia estudou em escolas onde o lema que as crianças deviam repetir todos os dias era algo como “Seremos como Che” e por algum tempo viu com desconfiança o próprio pai, a quem julgou como “hipnotizado pelos americanos”. Depois se desiludiu com o regime.

Uma história comum, vivida por milhares de cubanos todos os anos, a ponto de termos uma outra Cuba vivendo na Flórida ou espalhada pelo mundo (somente na Flórida vive 10% da população cubana, o que, fazendo uma comparação proporcional com o Brasil, resultaria num número de 20 milhões de brasileiros). Talvez o pior legado da ditadura cubana resida aí, na existência de duas comunidades antagônicas, com valores e sensibilidades tão divergentes e inconciliáveis. Mesmo com a normalização das relações com o vizinho ao norte, ou até com a redemocratização da ilha, dificilmente haverá acordo entre estas duas Cubas imersas em redomas ideológicas inquebrantáveis.

Pedro Juan Gutiérrez: escritor cubano
Pedro Juan Gutiérrez: escritor cubano

Trilogia Suja de Havana, de Pedro Juan Gutiérrez (Alfaguara Brasil, 2008)

Pedro Juan foi jornalista por um longo período em Cuba, até se desentender com os chefes na redação e largar tudo de lado. E foi viver uma vida de escritor sem apoio do regime habitando um apartamento caindo aos pedaços em Havana Vieja, um bairro histórico e degradado da capital. Com ecos de Charles Bukowski, com quem é comparável, Pedro Juana conta a vida no sub-mundo habanero, onde se vive de muitos expedientes, entre eles a prostituição, tal qual em qualquer bairro pobre de qualquer capital latino-americana. Assim como o escritor norte-americano, Pedro Juan escreve como um outsider, alguém que passou a não dar a mínima para as convenções e a normalidade da vida social. Seus personagens vivem um dia de cada vez, lutando pelo almoço e sonhando com dólares que possam ser enviados por parentes no exterior. “Hay que luchar”, dizem ironicamente os cubanos, diante dos desafios do dia-a-dia, parodiando os clichês do discurso oficial. Afinal, para um cubano, é preciso ter FE, ou seja, Família no Exterior. Mas é com compaixão que Pedro Juan fala destas pessoas. Há uma humanidade naquele mundo de prostitutas, michês, contrabandistas e pequenos golpistas da região central de Havana.

Pedro Juan Gutiérrez: escritor cubano
Pedro Juan Gutiérrez: escritor cubano

Os capítulos do livro evocam este cenário de abandono, raras vezes frequentado por turistas, que geralmente ficam restritos a seus hotéis de primeira linha, administrados por redes hoteleiras privadas italianas ou espanholas (e agora norte-americanas) e a restaurantes “contapropistas”, uma das poucas atividades onde o exercício da liberdade econômica é permitida, mesmo com muitos limites, na ilha. Os títulos são “Ancorado em Terra de Ninguém”, “Nada que Fazer” e “Sabor a mí” e ressaltam que a “ditadura do proletariado” reduziu os cubanos ao rum, aos puros (charutos) e ao sexo. O sabor erótico do livro é considerável, vivido com paixão pelos personagens, que encaram o sexo como um fundamento da vida, como um ato de resistência.

A época onde ocorrem as peripécias dos personagens no livro remonta aos anos 90, quando da dissolução do comunismo na Europa do Leste e na URSS. As dificuldades da ilha, após a perda do generoso apoio soviético, levaram a decretação do chamado “Período Especial”, onde literalmente os cubanos comuns passaram fome em larga escala. O governo cubano defendeu a necessidade de manter as linhas gerais do regime, destacando a “ameaça” que qualquer mudança poderia trazer para as “conquistas da revolução”, a “perversidade” de tais mudanças, que atingiriam os mais fracos na sociedade e finalmente a “futilidade” de qualquer mudança, pois na essência, as coisas permaneceriam iguais para a maioria, beneficiando somente uma minoria da sociedade. A semelhança de tal linha de argumentação com aquela destacada no livro “A retórica da intransigência”, do economista Albert Hirschman, sempre me pareceu por demais evidente.

Em sua passagem pelo Brasil, numa das entrevistas, Pedro Juan Gutiérrez ressaltou que as cenas dos seus livros poderiam ser em São Paulo, Rio de Janeiro ou qualquer outra grande cidade da América Latina, todas elas com os seus bolsões de abandono e marginalidade. Certamente. Havana, afinal, não se encontra tão distante de nós. E poucos povos, arrisco dizer, se parecem tanto conosco.

Arnaldo Bastos Santos Neto é professor da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Goiás.