Cultura do Estupro

Data: 26 de janeiro de 2015

Fonte: Diário da Manhã

 

De janeiro a novembro de 2014 ocorreram 490 casos em Goiás. Tendência é a mesma do País, que apresenta aumento do crime hediondo. Sociedade machista pode ser motivo da prática

 

Relatório divulgado pela Secretaria da Segurança Pública do Estado de Goiás aponta que de janeiro a novembro de 2014 foram registrados 490 casos de estupros no Estado. A delegada adjunta da Delegacia Especializada no Atendimento à Mulher, em Goiânia, Aline Leal, informa ao DM que em 2014 ocorreram 73 casos de estupros na Capital. Ela não inclui neste total a contagem de tentativas e estupro de vulnerável.

Os números assustadores não param. A delegada adjunta da Delegacia de Proteção à Criança e ao Adolescente (DPCA), Simeli Lemes de Santana, diz que 262 estupros foram registrados em 2014. Apesar do volume alto de delitos, explica a autoridade policial, ocorreu uma redução de 15% nos casos referentes à 2013, que teve um registro de 310 estupros contra crianças e adolescentes.

Os números são sufocantes e revelam uma prática hedionda: o entendimento pelos criminosos de que o corpo da mulher é propriedade do homem. O estupro tornou-se uma violênca contra os direitos humanos e também contra o gênero, na medida em que ocorre em grande parte contra as mulheres – é também reconhecida a ocorrência contra homens e LGBT’s.

Conforme o último levantamento do 8º Anuário Brasileiro de Segurança Pública, divulgado pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública em todo o País, em 2013, foram registrados 50.320 casos de estupro incluindo homens e mulheres. Os dados podem ser ainda maiores já que somente 35% das vítimas, de acordo com as estimativas, registram o caso na polícia. Existe uma cultura do silêncio da vítima, que prejudica as investigações.

 

IMPACTOS

Para psicóloga Sheila Costa, especialista em psicologia hospitalar com formação em psicanálise infantil, os dados são alarmantes, uma vez que as consequências psicológicas desse trauma interferem na formação da autoestima das vítimas.

A especialista diz que o estupro pode ocasionar inúmeras atribulações nos relacionamentos sociais da vítima. As consequências seriam identificadas à longo prazo, caso do desenvolvimento de transtornos, depressão, fobias, ansiedade, abuso de drogas ilícitas, tentativas de suicídio e síndrome de estresse pós-traumático. Principalmente se este trauma surgir de uma violência provocada pelas figuras parentais, o que tornaria a situação ainda mais complexa. “Os impactos são muitos, se o abuso ocorreu por parte de um familiar, uma figura parental, pode acontecer toda uma desestruturação familiar. Há a quebra da confiança da criança neste adulto, assim como dos demais familiares. Se o abusador for uma pessoa estranha, desconhecida, a família pode se unir na tentativa da superação do trauma ou pode também se desintegrar, uma vez que cada ser humano reage de acordo com seus próprios recursos”, observa.

Sheila Costa explica que a criança experimenta sua sexualidade desde muito cedo só que sem maturidade e malícia para interpretá-la como um adulto. Daí que é mais difícil para ela lidar com uma situação traumática e impactante como essa: “O estupro é um trauma  tanto para a criança quanto para o adulto. O sofrimento, a maneira como isso influenciará nos relacionamentos, enfim tudo isso, pode ser um pouco diferente para o adulto, mas com certeza também é uma experiência de difícil elaboração.”

Informações divulgadas pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), órgão do governo, constataram que mais de 70% dos estupros vitimizam crianças e adolescentes. O público com menos de 13 anos representa 50,7% das vítimas. Os adolescentes de 14 a 17 anos representam 19,4%, ficando uma parcela de 29,9% que representa os adultos acima dos 18 anos.

 

UM CRIME QUE NÃO É BANAL

Pesquisa do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) realizada em 2014 mostra painel de preconceito

 

  • Mulher que é agredida e continua com o parceiro gosta de apanhar

– 58,4% – discorda totalmente

– 11,6% – discorda parcialmente

– 3,4% – neutro

– 12,8% – concorda parcialmente

– 13,2% – concorda totalmente

 

 

  • Mulheres que usam roupas que mostram o corpo merecem ser atacadas

– 24,0% – discorda totalmente

– 8,4% – discorda parcialmente

– 2% – neutro

– 22,4% – concorda parcialmente

– 42,7% – concorda totalmente

 

 

  • Se as mulheres soubessem como se comportar, haveria menos estupros

– 30,3% – discorda totalmente

– 7,6% – discorda parcialmente

– 2,6% – neutro

– 23,2% – concorda parcialmente

– 35,3% – concorda totalmente

MULHERES AINDA SÃO VISTAS COMO PROPRIEDADE

Estudos averiguam que a sexualização da mulher como objeto é um fator que estimula o estupro. Apontam que não só meninos como meninas aprendem que o corpo da mulher é um objeto que pode ser “consumido”. Tal “olhar” contribui com a banalização do estupro como mostrou pesquisa realizada pelo Ipea em 2014.

Constatou-se que a probabilidade de a vítima sofrer estupros recorrentes é positivamente associada à relação de dominação do agressor perante a vítima e a maioria esmagadora dos agressores é do sexo masculino. A pesquisa do Ipea de 2014 – que divulgou erroneamente que 65% dos brasileiros concordavam que as mulheres provocavam a violência, ou seja, eram praticamente as responsáveis por serem atacadas – gerou grande reação pública e um debate nacional sobre o conteúdo da pesquisa e os erros estatísticos.

Para a doutora em Ciências Sociais e professora da área da Faculdade de Ciências Sociais da Universidade Federal de Goiás (UFG), Eliane Gonçalves, o “erro” foi bom por um lado: “Demonstrou que as pesquisas precisam de maior rigor na formulação das perguntas e na análise dos dados para serem divulgadas ao público e que nós precisamos reagir quando um dado é tomado como opinião de toda a sociedade.”

Na errata divulgada pelo Ipea ficou patente que o instituto reafirmava uma tendência conservadora entre os brasileiros já que “58,5% dos entrevistados concordam com a ideia de que se as mulheres soubessem como se comportar, haveria menos estupros”.

“Isso, obviamente, é escandaloso moralmente, quando pensamos o século 21 numa democracia onde as mulheres chegaram tão longe em suas conquistas”, lamenta a pesquisadora da UFG.

Eliane Gonçalves destaca que ainda existe uma forte percepção de que as mulheres, apesar das incríveis conquistas no âmbito dos direitos, sejam subordinadas a alguém. “Há aspectos culturais que favorecem isso. Por exemplo, a instituição familiar e o casamento tradicional, onde as figuras do pai e do marido tendem a reforçar um padrão de dependência e passividade que sugere que elas demandam mais controle e regulação.”

Eliane Gonçalves acrescenta que este comportamento também se apresenta nas relações afetivas e sexuais nas quais muitos namorados se sentem no direito de controlar suas parceiras. A pesquisadora indica também a existência de uma crença de que, nas relações, o ideal é que as mulheres sejam mais jovens, menos experientes, com menos recursos e até menos escolarizadas; que abram mão de suas profissões, ocupações e sonhos. “Romper com esta estrutura é fundamental para construir relações mais igualitárias e menos possessivas e violentas”, alerta.

Vítima sente medo e vergonha de denunciar

Especialistas e pesquisadores afirmam que é comum as vítimas de estupro ouvirem da polícia e da própria família que estavam embriagadas, usavam roupas curtas e apertadas, que andavam sozinhas à noite ou não deixaram claro que não desejavam o ato sexual. Essa culpabilização por parte da sociedade acaba desestimulando a mulher a procurar ajuda.

“Quando há estupro elas não se sentem à vontade para denunciar a violência física e quando fazem não reconhece propriamente o ato. Dizem apenas que é obrigada a estar com o parceiro”, menciona a delegada adjunta da Delegacia Especializada no Atendimento à Mulher, em Goiânia, Aline Leal.

Tais comportamentos preconceituosos, uma realidade ainda mais acentuada no Brasil, acabam por incentivar o estupro. A partir de um estudo quantitativo, o Ipea divulgou que os principais responsáveis por estupros de adultos são agressores desconhecidos. Os adolescentes são, principalmente, vítimas de desconhecidos, amigos ou conhecidos. Já as crianças têm como principais algozes os amigos, conhecidos, pais ou padrastos.

 

Dois pesos

Para a doutora em Ciências Sociais Eliane Gonçalves, da UFG, essa violência sexual pode ser considerada natural na percepção de algumas sociedades: “Essas sociedades julgam as mulheres com dois pesos e duas medidas, com duas valências diferenciais. Ou seja, homens valem mais, mulheres valem menos. Isso gera a relativa aceitação de crimes de honra, violações de direitos e violências sobrepostas contra as mulheres: restrições de movimento, proibições, abusos e violências contra seus corpos e contra sua integridade moral”, analisa.

A professora e pesquisadora da UFG adverte que a educação é um bem universal e deveria ser igual para ambos os sexos. “É inaceitável continuarmos pensando em termos de uma dicotomia que torna as mulheres vítimas em potencial mesmo quando são fortes, independentes, mães, provedoras, profissionais de sucesso, etc.”, conclui.

 

Crime apresenta cenário global sombrio

Dados da Organização das Nações Unidas (ONU) listam os países com maior incidência de estupros no mundo, em primeiro lugar Estados Unidos da América (EUA), com 84.767 casos; África do Sul com 67 mil casos; Índia com 22.172 casos; Reino Unido com 15.934 e México com 14.993 ocorrências.

De acordo com a ONU, na Suécia, houve 63 casos de estupro para cada 100 mil habitantes em 2010, mais casos que no Brasil. Porém, é sabido que a Suécia, cujo índice de desenvolvimento é um dos mais altos do mundo incentiva as mulheres a denunciar esse tipo de crime ao adotar, entre outras medidas, o registro de cada estupro como uma ocorrência.

Sendo assim, se uma mesma mulher for estuprada 30 vezes pelo marido, serão registradas 30 ocorrências e não apenas uma como no Brasil, ou seja, talvez ali esteja a explicação para o alto registro de ocorrência. Como citado no início desta reportagem no Brasil apenas 35% dos casos de estupros são registrados.

 

Nua, machucada e abandonada

Verônica (nome fictício), de 25 anos, foi abordada: em sua bebida um homem adicionou uma dose de algo que a deixaria sem consciência. Quando acordou, sua mente tentava organizar um turbilhão de ideias. Percebeu que estava nua, machucada e cheirava mal.

Diante de uma violência brutal que a machucava no físico e psicologicamente, Verônica optou pelo silêncio após ter sido vítima de estupro. A jovem ficou completamente abalada, se isolou de tudo e de todos a ponto de perder o emprego. “Foi um turbilhão de situações que ela não conseguia mais administrar, começou a faltar no emprego a ponto de ser mandada embora, não tinha mais disposição para sair de casa”, narra a delegada adjunta, Aline Leal.

Além do isolamento, Verônica sentia  nojo do próprio corpo e depois de cinco meses de ter optado pelo isolamento e não fazer a denúncia sobre o estupro, ela descobriu que estava grávida. “Ela fez um registro tardio e fez porque descobriu que estava grávida e queria fazer o aborto. Ela estava tão abalada, o jeito como ela narrou a história não tinha como suspeitar de seu depoimento”, afirma.

Aline Leal acrescenta que em casos de estupro é comum que a vítima sinta, na maioria dos casos, vergonha, o que a impede de ir à polícia. “Muitas vezes a mulher sente vergonha, acha que não foi prudente, tem diversas situações em que elas se culpam como: bebi demais, usei roupas muito curtas. As vítimas adultas desvirtuam muito o que de fato ocorreu quando o assunto é estupro”, observa.

No caso de Verônica a delegada narra que quando a jovem prestou seu depoimento ela se surpreendeu com a riqueza de detalhes. “A vítima de estupro passa por mais traumas ao ter que narrar toda a história. Como, por exemplo, ao ir ao médico, a delegacia, aos familiares. É um episódio que se repete e a vítima revive todo aquele momento de terror. Esse é um crime bárbaro é muito difícil.”

A delegada descreve sua percepção sobre a intensidade do sofrimento transmitida por uma pessoa vítima de estupro ao narrar o episódio de violência. “É possível ver a externaçãodo sofrimento dessas pessoas através do corpo: têm pessoas que ficam ruborizadas, tem gente que fica pálida, que tem queda de pressão. Agente vê a pessoa contando o que passou, mas ela está revivendo tudo outra vez. Ficam com a voz embargada, outras choram é tudo muito delicado”, expõe.

Verônica só procurou a polícia porque descobriu que estava grávida e só por meio da comprovação do estupro que ela poderia realizar o abordo. O final dessa história a delegada responsável pelo caso não soube informar se Verônica conseguiu essa autorização.