Mostra internacional de dança ressignifica a linguagem e amplia os limites da arte

Data: 22 de fevereiro de 2015

Veículo: Jornal Opção

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Com início em fevereiro, o circuito segue até agosto com programação em Goiânia, Pirenópolis e Cidade de Goiás.

“Eu queria muito fazer um trabalho e dedicar a você. Eu só não sei como começar. Eu tive várias ideias. Eu imaginei primeiro ficar à porta, te recebendo. E, depois, eu pensei que podíamos ir para outra dimensão, para um espaço que não tem nenhuma divisão entre a gente. E eu conto, tenho que contar para ter controle do espaço, do tempo. Para ter controle do meu corpo, eu conto”

Denise Stutz

Yago Rodrigues Alvim

Há muito tempo, Kleber procurava. Queria encontrar uma maneira de suprir a falta que percebia na cidade das artes em que vive. Fica cra­vada no meio de um país enorme. Di­zem até que a terra toda daquele país é coisa de continente. Queria ele movimentar um pedacinho daquela imensidão toda. Daí resolveu ser imenso: não coube em si e trouxe um bocado de gente de outras ruas para dar mais vida às ruas do centro do país onde vive. A boa nova batia nas birutas, chegava alastrando os limiares, indicando outras direções, outras formas de fazer arte, fazer dança: chegava em Manga de Vento.

A coisa ganhava forma no centro do país brasileirinho, depois de um tempo maturando. Kleber anuncia bem: “As transformações profundas demandam tempo”. E levou cinco anos até que virasse “coisa pra gente vê” e está aí em programação redondinha, recheada de bons nomes. Kleber maturou um circuito com gente que dança num jeito de refletir a vida. Manga de Vento é isso: um circuito com Denise Stuts, Vera Mantero, Dudude Herrmann, Flavia Meireles, André Masseno, Alejandro Ahmed e a gente toda que faz parte dos grupos Provisional Danza e Cia D Fora.

Ele percebeu a tal falta com um projeto que desenvolve como professor Kleber Damaso, na Universidade Federal de Goiás (UFG). Batizado Conexão Samambaia, o projeto é mais fechado, reserva um espaço no tempo para os grupos de dança poderem discutir seus processos criativos além-ensaio, ou noutras palavras “em residência”. Foi depois de pôr fermento no Conexão, extrapolando as fronteiras da capital goiana e expandir para as cidades de Goiás e Pirenópolis, que o professor quis dar vida àquela ideia, por os trens no trilho para correr. Hoje, assina a direção artística do circuito que tem, sobretudo, a ideia de dinamizar o cenário cultural goiano.

O recheio de sabores diversos –– tem gente carioca, florianopolitana, madrilena e lisboana –– amplia a possibilidade de troca de crenças, de jeitos de dança, de vida entre quem sola nos palcos e quem vê hipnotizado. “A cidade carecia de referenciais, sobretudo na dança contemporânea e o intercâmbio é uma forma de troca, e mais: é uma forma de a­gitar, de tirar as pessoas do lu­gar, seja pela apreciação ou pelo contato”, diz o diretor. Para ele, professor, a experiência estética pode acontecer como um lugar de conhecimento. Acontecer mes­mo, tomar de assalto: abalar. É is­so que o verbo “conhecer” causa. Vai estremecendo, afetando todas as paredes que o ser humano tem firmes dentro de si; vai deixando o lugar vago para coisa nova. E aprender não é fácil, deixa um tanto de destroços e leva tempo para aprender. E Kleber sabe bem disso.

E sabe mais: “Quando um estudante de arte vê algo que o afeta, isso facilita sua produção de conhecimento; quase que proporcional ao que levaria três meses de aula”. Noutras palavras, uma maneira de estudar arte é experenciando arte. E, isso implica muito a própria valoração da arte. O academicismo puro foge à formação do artista. “Estudar arte não substitui a importância de se ver bons trabalhos, de se aproximar, ser tocado, de assistir, de estabelecer contato com artistas que te incitam ou te provocam a ponto de mexer com seu desejo, de fazer com que sua vontade seja alimentada. É uma provocação”.

Nada melhor, então, para a cidade que guardar um tempinho de cada um dos próximos meses para apreciar os artistas que fazem de Manga de Vento, coisa verdadeira. O tempo, no caso, foi cautelosamente refletido: “Era outra questão que permeava o projeto: como conceber uma estrutura que não fosse tão efêmera a ponto de inviabilizar que as pessoas se encontrassem?”. Kleber, então, quis mudar esse aspecto que estava descaracterizando até a própria essência do que é um festival: sua festividade.

“Manga de vento” são birutas, de aeroportos. São aqueles dispositivos de análise da orientação eólica; tanto do sentido, quanto da intensidade do vento. Apropriou-se da ideia. Para movimentar as birutas, é preciso o vento –– uma força limpa, tal qual do movimento. Ele saiu da inércia e, no maturar do circuito, foi abrindo portas, possibilitando um evento estendido e multilocal por seu esforço. Já era, talvez sem que soubesse, uma forma de apontar novas direções, uma forma de transformar a linguagem, permitir experimentação –– a coisa nova a que apontam as birutas de aeroportos.

A mesma ideia guiou o eixo curatorial da mostra. Os trabalhos selecionados estão sensíveis às experimentações que alargam os limites da dança, que transformam, tanto do ponto de vista formal, quanto conceitual, os modos de fazer e pensar. E, antes que isso fosse realidade, Kleber se esbarrou noutras questões, que iam desde a captação de recurso a como e onde realizar o circuito e geravam ainda indagações mais profundas.

Contemplado pelo Fundo de Cultura do Estado de Goiás e em fase de captação de recurso por meio da Lei Goyazes, o Manga frutifica questões relativas à sobrevivência por meio da arte. “Como viabilizar a arte?” traz consigo um tanto de outras interrogações e atropela quem quer que fique no caminho. E tem muita gente em Goiânia que fica no meio do caminho. Kleber mesmo é uma delas. O professor reflete, enquanto alguém que vive nesse mun­do, que a arte vive um preconceito e uma subestimação enorme do que é uma produção na Alemanha ou nos Estados Unidos. “A produção cultural, de uma maneira geral, é uma das alternativas mais interessantes do conceito de produção e da própria economia social, principalmente por ser uma forma de produção menos agressiva e por agregar valor simbólico”.

Kleber dá continuidade ao assunto, pontuando que existem muitos processos de regulamentação, em Goiânia, do Fundo mesmo, a exemplo, que ainda que urgentes, continuam estagnados. Além do mais, ele defende que “a arte e a cultura não devem depender, exclusivamente, da iniciativa pública, de uma maneira geral. A consequência disso é por perceber que a sociedade não dá o valor que a produção deveria ter”. E existem outros pormenores como a incompreensão das empresas sobre os mecanismos de captação e até mesmo a fiscalização. “É como se estivéssemos, depois de anos, inventando a roda, para entender a importância da arte”, pontua.

A coisa se agrava no exemplo que alguns dos espetáculos que compõem o circuito não serão apresentados na Cidade de Goiás e em Pirenópolis, municípios inclusos na programação do Manga, por seus teatros estarem sucateados. Esperançoso, Kleber propõe que os gestores se atentem que, ainda que importantíssimas ações sejam feitas tanto em Goiás, quanto em Pirenópolis –– Fica e o Canto da Primavera, respectivamente ––, os teatros precisam ser retroalimentados, que, dos festivais, fique um legado para eles.

Outra questão pontuada por Kleber é que muitos artistas acabam virando burocratas por uma exigência que os editais demandam. “É preciso submeter o trabalho a um edital, que já é específico, depois você aguarda uma aprovação e, então, vem outros critérios de captação; sem contar que, durante a execução do projeto, o artista tem que se ocupar de como aplica o recurso que ganha. Nas outras profissões, não é preciso isso. É um processo de estatização da arte e burocratização do trabalho artístico”. Uma das implicações é que os próprios trabalhos artísticos acabam tendo vida só enquanto perdura o edital: não existe antes e tampouco depois. “O artista acaba se especializando na captação de recurso, de editais e se ocupando pouco do seu exercício de fato”, diz.

Ele pondera que, claro, o edital é uma maneira de democratizar o repasse e que seria melhor se o Fundo saísse da lei que rege as licitações e conseguisse, enfim, entrar numa condição de prêmio. “O artista prestar conta pelo trabalho que ele realiza e não pela utilização do recurso”. Os gestores não tem que ter uma posição de policiamento. Na verdade, é necessário ainda que a imagem do artista como “deturbado” da sociedade se esvaia. “A produção cultural deveria ter um valor caríssimo à sociedade, devido às beneficies que ela consegue proporcionar; tanto pela perspectiva da experiência de sociabilização, da qualidade de vida, do exercício crítico, que é fundamental a salubridade de uma sociedade”.

As diversas artes propõem, exatamente, espelhamentos, projeções, reflexões que permitem com que a sociedade não se estagne, não se torne autoconsumível, não se enrijeça dentro de experiências que eliminem o exercício da singularidade, da expressividade, que sejam uniformizadores ou homegeneizadores, de ditaduras de pensamento e estéticas –– completa Kleber.

Por fim, é o exercício crítico da arte que aponta alternativas, outros caminhos, outras formas possíveis de experimentar a sociabilidade. Apresenta os tais limiares, as novas direções que têm se materializado com parcerias, conversas, planejamentos: com movimento. O Sesc é um dos parceiros que propiciou que a programação se expandisse e contemplasse os moradores da Cidade de Goiás e de Pirenópolis. Ou­tros nomes apa­recem, tais como de Gui­lherme Wohlgemuth, que está na produção artística do circuito, a Lúdica Eventos, na produção geral e outros nomes além-Brasil, que permitiram à Vera Man­tero, de Lisboa, e à Cia Provisio­nal, de Madri, fazerem parte de Manga de Vento.

Esses artistas se juntam aos cariocas De­nise Stutz, Flavia Meireles, Andre Masseno, Cia D Fora, à belo-horizontina Dudude Herrmann e ao florianopolitano Alejandro Ahmed, em uma mostra que espalha poesias dançantes de fevereiro a agosto em cidades cravadas no meio de um país continental, só não tão imenso quanto à inquietação, à boa nova que eles têm a dançar.

Aproveite!

 

Finita

A carioca Denise Stutz queria entender e suportar a falta daquilo que um dia existiu. Foi, então, que no movimento descobriu a presença que vem do desaparecimento, do esquecimento. A bailarina, que fundou o Grupo Corpo e desenvolveu trabalhos condecorados, como “DeCor” (2003) e “Finita” (2013), as coreografias nas minisséries “Hoje é dia de Maria”, “Capitu” e “Clarice só para mulheres” (Rede Globo), queria fazer uma homenagem a várias saudades e faltas e ausências que o ser humano tem. Quis ela solar em homenagem a mãe, que falecera um ano antes de compor “Finita”. O espetáculo tem presença confirmada no Teatro São Joaquim, na Cidade de Goiás, no dia 25, e no Teatro Pireneus, em Pirenópolis, no dia 27 de fevereiro.

 

Os Serrenhos do Caldeirão

A bailarina portuguesa Vera Mantero se povoa de vozes que vêm de longe em “Os Serrenhos do Caldeirão”. A encomenda propunha usar imagens e vídeos feitos por ela na Serra do Caldeirão, no Algarve. Ela recorreu também às recolhas do etnomusicólogo Michel Giacometti. “Eu reproduzo algumas das canções trazidas até nós pelo Giacometti, cantando aos atuais trabalhadores rurais, retomando tradições perdidas, tentando reativá-las”. A solista baila nas letras dos poetas Antonin Artaud e Jacques Prévert: “As suas palavras sobre ruínas combinando magicamente com as imagens das ruínas que encontrei na Serra”. Vera se apresenta no dia 1° de março, em Pirenópolis; no dia 4, na Cidade de Goiás; e no dia 6, em Goiânia.

 

A Projetista

A belo-horizontina Dudude Herrmann sola um monólogo em que “não existe nada além de um enorme vazio a ser ocupado, povoado, reagrupado por experiências”. A projetista se nutre de vontade, de desejo por existir, de fazer coisa em terrenos áridos, secos, rasos –– em lugares desnutridos. Ali, existe só a imaginação e o que é possível. Na dança, se reinventa. A fundadora da Benvinda Cia de Dança, que existiu de 1992 a 2007, sola mulher só em “A Projetista” e, ali, ela quer do tudo que sabe: o efêmero. Na programação, o espetáculo ganha os palcos do Teatro Sesc, em Goiânia, no dia 29; o Teato Pireneus, em Pirenópolis, no dia 30; e o Teatro São Joaquim, na cidade de Goiás, no dia 2 de maio.

 

Algún Día

Em 1987, nasceu de Carmen Werner a Provisional Danza. A cia se descreve ao que vai além do fazer: ela está nas relações, na vida, no sentimento dos bailarinos numa construção com o público pela interação. Provisional traz de Madri, capital da Espanha, Alejandro Morata, que junto a Werner, dá à luz “Algún Día”. Nas palavras de Luis Martínez, descrevem: “Se o silêncio é um valor na música, quando a quietude inevitavelmente desemboca em dança se produz um alto no caminho, contínuo devir, para desfrutar o melhor, conhecido, permitindo-nos subir nesse trem que passa e não pergunta”. O espetáculo será apresentado no Teatro Sesc, em Goiânia, no dia 21 de maio.

 

Ocupa Árvore

O espetáculo se achega como palestra, como intervenção. Se achega nos passos de Flávia Meireles como a arte de resistir. Ela recria o “Ocupa Árvore”, evento em que o índio Urutau Guajajara permaneceu 26 horas no topo da árvore resistindo ao despejo ilegal da Aldeia Marcanã, no Rio de Janeiro, em 2013. “Descrevo, articulando palavras, imagens e gestos, um conjunto de experiências junto à Resistência Aldeia Maracanã. Descrevo o índio urbano como urgência de reelaborar corpo e mundo; o “Ocupa Árvore” como ato limítrofe da arte e da vida”. A crítica criativa da carioca Meireles ganha Goiânia no dia 11 de junho.

 

Os Transtornos Passam, A Dança Fica

A Cia D Fora, criada em 2011 por Jefferson Antonio no Rio de Janeiro, ganha as ruas goianas em um espetáculo que provoca reflexão quanto a como os canteiros de obra, espalhados pelas cidades, afetam o caminho. A cia brinca com as placas informativas “Os transtornos passam, os benefícios ficam”. Eles brincam com o corpo, com fitas de isolamento, cones e tábuas de madeira; eles relacionam o movimento, o espaço, o som, a imagem numa conversão de sensação de transtorno dos transeuntes em momentos de fruição. As apresentações começam na Cidade de Goiás, no dia 25 de junho, passam por Goiânia, no dia 27, e seguem para Pirenópolis, no dia 28.

 

O Confete da Índia

André Masseno sola só em releitura aos Modernistas da Semana de 22. Ele redeglute as culturas, as posturas estrangeiras para recriar seu modo típico extasiado de ver o mundo. O espetáculo “Confete da Índia” busca novos limiares do desbunde, da arte de contracultura; se experencia no êxtase, deslocando o corpo para fora de si em explosão e transbordamento. “‘Confete da Índia’ é um espaço de conflito e de pulverização entre passado e presente, fonte e influência”. Pesquisador na Universidade de Zurique, graduado pela Federal do Rio de Janeiro, Masseno traz seu confete a Goiânia, no dia 25 de julho; segue para o Teatro Pireneus, no dia 27; e se apresenta na Cidade de Goiás, no dia 28.

 

Sobre Expectativas e Promessas 

“Sobre expectativas e promessas é uma vontade de desaparecimento”, diz Alejandro Ahmed. O florianopolitano procura por ferramentas dançantes que percebam a identidade como um fluxo de descontinuidades. Identidade como emergência, resposta a situações ambientadas, no tempo, no corpo e em seu movimento. “Expectativa é uma relação com o futuro, com algo que você enxerga em possibilidade e instaura uma crença que gera uma necessidade de confirmação. Promessa é uma relação com o futuro em que um ato de confiança e certeza é dado àquilo que não temos pleno controle ou acesso”, diz o diretor do Grupo Cena 11, que vem só. A apresentação fecha o circuito no dia 13 de agosto, no Teatro Sesc.