Inquieto por natureza

Inquieto por natureza

O eclético Antônio Nóbrega, um dos mais empolgantes e autênticos artistas brasileiros, é a atração de hoje na estreia da 2ª edição do projeto Música no Câmpus, da UFG

Renato Queiroz

Não bastar vestir chita, enrolar uma fita na cabeça e subir ao palco para ser considerado um artista da cultura popular. É preciso legitimidade para compreender aspectos nem sempre tão claros da arte. O raciocínio é de um dos mais empolgantes e autênticos artistas brasileiros, o pernambucano Antônio Nóbrega, que inaugura hoje a 2ª edição do projeto Música no Câmpus, da Universidade Federal de Goiás. O show está marcado para as 20 horas, no Centro de Cultura e Eventos da UFG, e os ingressos custam R$ 20. Às 15 horas, o músico estará na Escola de Música e Artes Cênicas da universidade para falar de sua trajetória e influências.

O objetivo do projeto é atrair a população para frequentar o espaço inaugurado em 2009, que tem capacidade para até 12 mil pessoas. Em 2009, o público pôde assistir a shows como o de Mônica Salmaso e Lenine. Para este ano, estão nos planos da Pró-reitoria de Extensão e Cultura, responsável pelo projeto, trazer Yamandú Costa, Teresa Cristina, Leila Pinheiro e Zeca Baleiro

Multi-instrumentista (toca bateria, rabeca, violão, violino, dentre outros), compositor, cantor e dançarino, Nóbrega apresentará no show um apanhado de seus espetáculos mais recentes, fazendo uma síntese de seus últimos 15 anos de carreira. Assim, cantando baiões, maracatus, frevos e marchas-de-bloco e tocando na rabeca, no violino e no bandolim choros, frevos, ponteios e outras peças instrumentais, ele vai mostrar, ao lado de sete músicos, seu heterogêneo cancioneiro.

O trabalho de Nóbrega une a arte popular com a sofisticação e tem como marcas registradas a multiplicidade de ritmos e estilos, o forte tom lúdico da encenação e as marcantes performances de dança. Nóbrega também é pesquisador da cultura popular brasileira na forma de músicas e danças.

O artista começou sua carreira tocando em orquestras no Recife e, a convite do escritor Ariano Suassuna, integrou o Quinteto Armorial na década de 1970. O Movimento Armorial foi uma iniciativa que teve como objetivo criar uma arte erudita a partir de elementos da cultura popular. Para muitos críticos, Nóbrega foi um dos artistas que revitalizaram e deram visibilidade para essa cultura.


Show: Antônio Nóbrega
Data:
Hoje, às 20 horas
Ingressos: R$ 20 (inteira) e R$ 10 (meia, para estudantes, professores e técnicos administrativos da UFG, comerciários, professores da rede pública e músicos)
Local:
Centro de Cultura e Eventos da UFG. Campus Samambaia – UFG
Informações:
3521-1035

ENTREVISTA/Antônio Nóbrega

‘A fronteira entre o erudito e o popular é movediça’

Renato Queiroz

A vida de Antônio Nóbrega daria um filme. Menino de classe média com formação em música erudita, ele descobriu, pelas mãos do escritor Ariano Suassuna, a plural cultura popular nordestina. Foi paixão à primeira vista. É nela que ele referencia seus espetáculos que unem dança com música, popular com erudito e frevo com violino. A trajetória do premiado artista será ainda este ano tema de um documentário, dirigido por Walter Carvalho, um dos mais elogiados fotógrafos do cinema brasileiro e parceiro de Nóbrega nos DVDs Nove de Frevereiro e Lunário Perpétuo. Seu espetáculo mais recente, Naturalmente Teoria e Jogo de um Dança Brasileira, será registrado em DVD em junho e Nóbrega atualmente negocia um projeto para a TV. Em entrevista, por telefone, ao POPULAR, ele falou de seus planos, recusou o título de artista popular e rebateu seus críticos que afirmam que o grande sucesso dele “tomou” o palco dos verdadeiros “mestres populares” no Brasil. Confira trechos da entrevista:

Como será o espetáculo que o senhor apresentará em Goiânia?
O meu espetáculo mais recente, Naturalmente – Teoria e Jogo de um Dança Brasileira, é dedicado à dança. Os que o precederam foi Nove de Frevereiro, em homenagem ao centenário do frevo, e Lunário Perpétuo, um diálogo entre o festivo e o austero. Todos que me colocaram numa situação bem difícil na hora de viajar, devido ao tamanho da trupe. Para a apresentação em Goiânia, organizei um espetáculo focado principalmente na música que passeará por toda minha trajetória. Será uma espécie de colagem, que traz músicas que estão dispersas em vários shows.

No Brasil, a sala de espetáculos é destinada aos com poder aquisitivo. Em Goiânia, o senhor se apresentará com ingressos a preços populares. Tem um gosto diferente?
Seguramente sim. Acho que dessa forma a gente democratiza a acessibilidade. Imagino que um espetáculo que tenha ingressos acima de R$ 50 já se torna muito seletivo. Se bem que faço até uma ressalva: vêm tantos grupos de rock estrangeiros ao País – que cobram ingressos caro – que não sei até que ponto a gente possa equacionar dessa maneira. Acho que o preço popular facilita, mas não é determinante. Tem pessoas que dispensam metade do salário do mês para ver de perto um astro de rock internacional.

Esse tipo de comportamento tem a ver com a valorização do é de fora e com o preconceito com o que é brasileiro e popular?
Às vezes, as pessoas não prestigiam o que é popular e brasileiro por preconceito, que nada mais é do que um conceito a priori. Normalmente coisas que têm uma ligação com um certo Brasil têm uma tendência de afastar alguns públicos. O choro, por exemplo, é meio ambíguo em relação à compreensão dos ‘brasis’. Ele é saudado por boa parte do Pais como um gênero extraordinário, que revelou Pixinguinha, Jackson do Pandeiro e tantos outros. No entanto, existem segmentos que têm uma visão preconceituosa do choro, como uma música menor. Até não gosto muito quando chamam choro de chorinho porque acho que diminui a importância do gênero. Há uma espécie de desvalorização e má compreensão daquilo que a gente poderia chamar de genuinamente brasileiro.

Como é a responsabilidade ser considerado um dos artistas que revitalizaram e deram visibilidade à cultura popular nordestina?
Não vejo isso como uma responsabilidade. Meu trabalho está ligado à cultura popular nordestina por uma questão de paixão, de gostar. Tive a sorte em certa altura de minha vida, até tardiamente para falar a verdade, de ter tido a possibilidade de conhecer esse universo. Embora morando em Recife, filho de médico, estudando no Colégio Marista, não tinha conhecimento do frevo, rabeca, maracatu, etc. Com o convite do escritor Ariano Suassuna para tocar no Quinteto Armorial, me vi dentro de uma situação nova que me seduziu e marcou de tal maneira que todo meu trabalho passou a ter esse universo como um referenciador.

Para alguns críticos, seu sucesso “toma” o palco dos verdadeiros “mestres populares”. Como recebe esse tipo de crítica?
A colocação é equivocada porque não tomo o lugar de nenhum artista popular. Primeiro, porque não sou um artista popular. Sou um artista brasileiro cujo universo de criação se referencia no universo popular, assim como Luiz Gonzaga, Villa Lobos, Paulinho da Viola. Acho que a colocação do crítico poderia ser feita a um conjunto de criadores brasileiros. Mas nenhum deles toma o lugar de nenhum artista popular.

Alguns identificam seu trabalho como uma visão erudita da cultura popular. O senhor já disse que não gosta da palavra “erudita”. Qual seria então o melhor termo para definir seu trabalho?
A palavra “erudita” tem um contexto que faz com que a gente a coloque num departamento sisudo, é uma arte difícil e para poucos. A erudição nem sempre pode ser contextualizada dessa maneira. Se você pensar em uma pessoa que estuda muito o cavalo-marinho, uma das variantes do bumba-meu-boi, é uma pessoa erudita em relação àquele tipo de conhecimento. A fronteira entre o erudito e o popular é movediça. Acho que existe arte com graus de sofisticação diferentes. Guimarães Rosa, por exemplo, poderia ser chamado de escritor erudito, mas acho isso muito pesado. O termo é falho para definir a obra de Rosa. Ele é um escritor que, embora tenha muita erudição, requer do leitor uma certa sensibilidade. Não basta a pessoa saber ler um jornal para ter acesso facilmente ao mundo de Grandes Sertões: Veredas. A arte tem por natureza níveis diferentes de complexidade. Dentro desses níveis, podem ser feitas coisas boas como coisas ruins.

Mas há quem acredite que quanto maior a complexidade maior a qualidade da obra...
O que não é verdade. Ulysses, de James Joyce, é extremamente complexo, mas é chato. Muito mais comentado do que lido. Convencionou-se a chamar a música tocada por orquestras sinfônicas de erudita. Às vezes as pessoas acham que toda música de orquestra é boa, mas não é. Há música erudita ruim.

Quais são os fatores que levaram ao atrofiamento da sensibilidade cultural no Brasil?
Nivelar o gosto das pessoas pelo nível médio trouxe um apequenamento do objeto artístico. A indústria cultural identificada como indústria de venda também é um dos elementos promotores desse rebaixamento cultural que o Brasil sofre. É também um problema de educação. Nossos meios de divulgação de massa não primam muito em educar seletivamente as pessoas. Isso requer um determinado tempo e esforço que não vai trazer o imediato dinheiro que eles objetivam. Ariano tem uma história muito boa sobre o fato de macaco gostar de banana. Ele lembra que o bicho gosta de banana porque apenas dão banana a ele. Vamos dar filé mignon para ver se ele não vai gostar. Com a cultura é a mesma coisa. Vamos educar um pouco mais a sensibilidade das pessoas. Claro que há um tempo nesse processo, é preciso investir nessa demora, mas o que o País vai ganhar é muito maior. A arte tem esse papel de mudança.