Amizades e solidão

Amizades e solidão

Colecionar centenas de contatos na internet sem poder contar com nenhum para uma relação mais próxima aumenta a impressão de que a rede se tornou um vasto ponto de encontro de contatos superficiais

Renato Queiroz (02/05)

“Vade retro, Orkut! MySpace? Estou fora. Não pretendo seguir nem Deus nem Lady Gaga pelo Twitter. Me exclua do Sonico. Xô, messengers do Gmail, da Microsoft e do Yahoo! Eu quero que você saia do Facebook.” Foi dessa maneira que o jornalista Luís Antônio Giron, editor da revista Época, começou sua coluna no site da publicação, onde confessou ter se tornado um “viciado” em sites de relacionamento e convocou seus leitores a abandoná-los. “O poder das redes sociais é tão subversivo que prejudica tanto a vida privada como o ambiente de trabalho”, escreveu.

Procurado pela reportagem do POPULAR, a primeira supresa: Giron continua no Facebook (foi pelo site que marcamos a entrevista por telefone). “Ainda estou no Facebook, mas não pretendo ficar, apesar de ser uma boa rede, profissionalmente falando. O que acontece com o Facebook é o mesmo o que ocorre com as outras redes sociais: elas acabam se tornando um estorvo, um vício. Decidi sair porque prezo uma coisa que está bastante fora de moda, privacidade.”

Para Giron, pai de adolescentes, a preocupação maior é o uso que as novas gerações fazem da tecnologia. O fato de terem nascido com a internet, segundo ele, faz com que os jovens tenham uma noção diferente entre o que é real e virtual.

“Há uma inversão do que é prioritário. Para eles é mais importante a internet, o Orkut e o Facebook do que o contato pessoal. A noção de amizade é muito fluida. Os adolescentes não sabem distinguir o que é amigo real e amigo virtual e isso é muito perigoso.” O jornalista considera “curioso” que pessoas mais velhas também abandonaram a questão da privacidade.

“Parece que falta reflexão e noção do perigo. Há uma pressão social para que você participe da revolução, mas, na verdade, os adultos estão começando a ter comportamento adolescente. Estão abandonando as amarras sociais e deixando um flanco, que é perigoso.”

Identidade
João Pereira Coutinho, em seu artigo na Folha de S. Paulo, ressaltou que, quando expomos voluntariamente a nossa privacidade, estamos entregando a desconhecidos o que se levou séculos para conquistar e preservar. “Uma rendição de nossa identidade”, afirmou. Isso sem contar as não tão óbvias regras de convivência na rede.

Giron lembra que não bastasse a dureza da vida cotidiana, na virtual o usuário tem também de cumprir muitas obrigações sociais. “Pega mal bloquear ou eliminar alguém de sua lista. E assim o cidadão vive muitas escravidões simultâneas. Como era bom não ter de estar em companhias de todos o tempo todo, ouvir as opiniões e comentários de todos sobre todo mundo”, protesta.

A psicóloga Andrea Cristiane Vaz entrevistou para sua dissertação de mestrado na Universidade de Brasília (UnB) diversos usuários de redes sociais. Nos relatos, era comum as pessoas confessarem que postavam na internet notícias sobre festas em que não foram, encontros que não tiveram e viagens que não realizaram.

“Na internet, todo mundo é bonito e feliz. Ser admirado e reconhecido é o desejo mais primitivo do ser humano. O Orkut, por exemplo, é utilizado como ferramenta de superexposição. A descrição do perfil pessoal e as fotos mostradas exprimem uma exaltação pessoal. Muitas vezes, descreve-se e expõe-se uma imagem idealizada.”

Por definição, uma rede social on-line é uma página na internet em que se pode publicar um perfil público de si mesmo – com fotos e dados pessoais – e montar uma lista de amigos que também integram o mesmo site. As afinidades surgem em discussões, comentários e troca de arquivos.

O que a diferencia do mundo real é a ausência total de contato físico. Para Lisandro Nogueira, professor da Faculdade de Comunicação e Biblioteconomia da UFG, o conceito de amizade não muda com as redes sociais, ele apenas se desloca e pode ser sintoma de muita superficialidade. “Minha experiência mostra que, apesar da internet, as pessoas estão desesperadamente sozinhas. Essas mediações podem até ajudar a criar novos grupos de amizade, mas a experiência corporal ainda é fundamental”, defende.

“Virtual não quer dizer virtude. Entre vantagens e desvantagens, com ou sem corpo, nossas relações só podem ser verdadeiramente boas, a nos fazerem um bem subjetivo, se pudermos e quisermos aprender com o diálogo, uns com os outros. Ademais, uma coisa não mudou: temos sempre a oportunidade e os recursos para sermos amigos uns dos outros, vivendo e aprendendo”, explica Will Goia, mestre em Filosofia pela UFG. Fato é que a amizade é um relacionamento que se dá cada vez mais no âmbito do compartilhamento e troca de ideias. O amigo pode não ser necessariamente aquele que está ao lado.

Laços fracos

Renato Queiroz

A sociologia ensina que existem diferentes níveis de amizade. As mais distantes ou “laços fracos” são as mais abundantes. Os “laços fortes” são representados pelos confidentes, pelos amigos do peito, com quem podemos contar sempre, mesmo nos piores momentos. Intimista e por demais compromissado para nossos tempos, o laço forte parece ser algo do passado. “Sempre tive muitos amigos, mais aqueles do coração mesmo não passam de 12. No Facebook, tenho cerca de 700 amigos, todos pessoas que conheço. Quando você aceita alguém em sua rede social, você está abrindo um pouco da sua intimidade, então é preciso ter cuidado”, aconselha o arquiteto Túlio Ribas, de 27 anos, e um perfil lotado no Orkut.

O sociólogo Zygmunt Bauman defende que o que importa atualmente é a conexão, não o relacionamento. Pois quem conecta também pode desconectar a qualquer momento. “Nesse sentido, o acúmulo de ‘amigos’ em sites de redes sociais na internet torna-se uma etapa necessária para alcançar vantagens. Em outras palavras, a amizade passa a ser vista fundamentalmente de forma utilitária. Na verdade, o debate sobre amizade e utilidade não é novo. Desde a Antiguidade o tema está em pauta”, lembra o pesquisador das relações sociais na internet Alex Primo, autor do livro Interação Mediada por Computador. Ter milhares de “laços fracos” é o que no jargão corporativo se chama de construir uma networking.

Todos estariam em busca do que o filósofo Francês Pierre Bourdieu definiu como capital social: “o conjunto dos recursos concretos ou potenciais que estão ligados à posse de uma rede durável de relações mais ou menos institucionalizadas de amizade e reconhecimento mútuo”. Essa busca teria sido potencializada pelas ferramentas fornecidas pela internet. Os laços sociais, de uma maneira geral, e os de amizade, especificamente, surgem em um ciclo virtuoso de confiança, em associações com objetivos comuns, que trazem ganhos para os participantes.

“Neste contexto, a internet é a tecnologia que facilita a construção e a manutenção destes laços e, portanto, tem potencial de trazer capital social”, explica o professor Cayley Guimarães, mestre em Ciência da Computação e pesquisador do tema. Para ele, as amizades virtuais apresentam as mesmas características das amizades reais. “Mudaram apenas os conceitos de espaço e tempo (que agora são assíncronos – ou seja, você não precisa, embora possa, se encontrar com o seu amigo face a face). As amizades virtuais não são frívolas. Elas são um espelho, intermediado pela internet, do comportamento do próprio usuário.”

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ENTREVISTA/Luana Luterman

‘A sensação é de que amigos são objetos’

Renato Queiroz

Especialistas afirmam que a amizade passa por uma tremenda crise de identidade. Amizade, no sentido comumente entendido, é um relacionamento que evolui por meio de interesses compartilhados. As mídias sociais vieram para mudar esse conceito. Em entrevista ao POPULAR, a pesquisador Luana Luterman, mestre e doutoranda em linguística pela UFG, reflete sobre como a internet alterou a forma de sermos e fazermos amigos.

A relação mediada por computador mudou as relações sociais entre amigos?
As redes de relacionamento são gêneros digitais criados para suprir necessidades exigidas pelos modos virtuais de agir. A vida torna-se impossível sem as novas tecnologias. É engraçado como esquecemos que antes vivíamos sem a comodidade propiciada por elas. Essas novas tecnologias implicam uma necessidade antes impensada: relações virtuais tornam-se cada vez mais úteis numa realidade que exige uniões imediatas e rapidamente descartáveis. A sensação é de que amigos são objetos descartáveis, com prazo de validade. Construímos relações cada vez mais frágeis. A busca pela felicidade e pelo bem-estar norteia a garantia individual de satisfação. A conversação virtual adquire características semelhantes à interação face a face, real: funciona como uma atividade comunicativa diária, muitas vezes com o poder de estreitar o vínculo de intimidade, pela liberdade de tornar ausente o corpo. A linguagem é parecida com a oralidade, o que proporciona liberdade de expressão, menor tensão e informalidade, como nas interações face a face.

O que é ser amigo em tempos de mídias sociais?
A amizade ainda é um vínculo essencial. Porém, amigo é aquele que concede parte de seu tempo, instância cada vez mais preciosa num contexto histórico de imediatismo como o nosso. Se um benefício é adquirido numa relação, a amizade se consolida, mas não se torna necessariamente sólida por muito tempo. A ditadura do bem-estar torna as relações fluidas e os amigos podem não durar muito tempo. Consome-se um amigo imediatamente, por impulso, enquanto há um desejo a ser satisfeito. Não existem garantias de longo prazo da amizade. As identidades, por não serem fixas, mobilizam-se pelos interesses, sempre provisórios.

É legítima a impressão de que, apesar dos milhares de amigos virtuais, as pessoas têm mais dificuldade em conquistar amigos reais?
A comodidade que a internet propicia facilita vínculos. Por serem fragmentados, voltados a objetivos específicos, os amigos virtuais se prestam a contatos direcionados. Podem ou não ser substituídos por outros, se uma necessidade não existe mais. Essa condição é reforçada por um cotidiano estressante, em que as pessoas estão escravizadas pelo relógio, pelo tempo. Soluções rápidas são desejadas e essas amizades virtuais são práticas. Se um amigo não está disponível quando eu necessito, outro estará. Os relacionamentos são formados pela conveniência mútua. Não há problema, hoje, em nomear como amigo um contato virtual, porque a amizade não possui um conceito único. Ela serve às demandas múltiplas e se constitui por essa variedade de interesses de ambas as partes, numa relação de troca. Os amigos virtuais são tão amigos – ou até mais – que os reais, porque não haver contato com o corpo do outro facilita a confissão de desagrados ou tabus. Amigos reais e virtuais convivem nesse território ambíguo de relações cada vez mais tênues. É fato que sair de um relacionamento virtual é mais fácil do que se desligar de um real. Higienizar relacionamentos por meio de um clique é mais simples.

Tanto o Facebook quanto o Orkut chama os contatos de “amigos”. O conceito de amizade mudou?
A globalização aproximou as distâncias geográficas e ampliou o conceito de amizade. Amigo é provisório. Depende da utilidade que satisfaz um período de tempo. Os famosos fakes, identidades inventadas, não têm cara. Porém, podem ser amigos, um número a mais na rede de relacionamentos. O número de amigos numa rede de relacionamentos é, para muitos, o termômetro da simpatia. Daí a justificativa para o jogo de adicionar amigos, ainda que estes desconhecidos. Um jogo de sensação de equilíbrio é desejado: se um amigo se afasta, ou se é descartado, outro é buscado, mesmo que seja para outra finalidade.

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