De volta ao ninho

Em busca de mais segurança, músicos que foram estudar fora e voltaram para Goiânia optam por investir na carreira acadêmica

 

Rodrigo Alves

 

A capital goiana, ainda um projeto de cidade tomando forma, era de uma aridez cultural sem tamanho quando a pianista Maria Angélica da Costa Brandão, a famosa Nhanhá do Couto, entusiasmou-se com a ideia de transferir, na década de 40, o Conservatório Goiano de Música da antiga capital, a cidade de Goiás, para a nova, Goiânia. Avó da pianista Belkiss Spenzieri Carneiro de Mendonça, Nhanhá vislumbrava que a nova capital precisava ter um centro de formação de música para desenvolver-se.

Ali, implantava o embrião de uma das instituições de música mais respeitadas do País atualmente, a Escola de Música e Artes Cênicas (Emac) da UFG. A escola tem em sua lista de ex-alunos uma gama de nomes que ganharam o mundo. "Há uma respeito muito grande lá fora com os músicos que são

formados em Goiás", observa Glacy Antunes, que já dirigiu a unidade. "A Emac sempre formou bons nomes em piano e canto e agora está sanando lacunas importantes como as áreas de violino e flauta", cita.

Além da universidade, lembra ela, a cidade também mantém centros de formação técnica de tradição, como a Escola de Artes Veiga Valle, atualmente vinculada ao Centro de Educação Profissional Basileu França, e o Centro Gustav Ritter, ambos do Estado, e o Centro Livre de Artes, administrado pelo município. Em todos os casos, embora ainda impere a falta de investimentos em infraestrutura e manutenção, muitos alunos têm os primeiros contatos com os profissionais de qualidade formados na cidade.

Retorno

Por se tratar de um campo que remunera bem e oferece boas condições de trabalho, o meio acadêmico da música em Goiânia é atrativo para quem decide seguir carreira universitária. Muitos profissionais que saem daqui para aperfeiçoar os estudos em outros centro brasileiros ou no exterior não raro preferem se estabelecer novamente na capital. São casos como os das pianistas Ana Flávia Frazão e Gyovana Carneiro, que se formaram por aqui, saíram da cidade para se aperfeiçoar, e hoje estão de volta à universidade do lado de quem também ensina.

Além de se tornarem professoras, elas também contribuem para o processo de formação de público, com parcerias com entidades fora da universidade, como o Sesc, para trazer músicos eruditos de fora. "Pensamos que é uma maneira de também levar a música clássica para a comunidade e para nossos próprios alunos", justifica Ana Flávia Frazão. Formada em Música pela UFG no início da década de 90, após concluir a graduação ela foi estudar na Alemanha, onde fez mestrado e doutorado.

Neste período rodou o mundo em concertos e concursos musicais, em países como Suíça, Japão e Finlândia. Em 2002, quando havia concluído essa etapa de estudos, decidiu que o melhor lugar para se estabelecer seria novamente Goiânia.

Assim como ela, Gyovana Carneiro, 46, foi buscar a formação fora dos limites do Estado, no Rio de Janeiro e em São Paulo, para depois voltar. "Depois que entrei na universidade, comecei ao lado da professora Glacy Antunes esse projeto de formação de público", conta Gyovana. Os resultados, segundo ela, já são visíveis. "Hoje os eventos ficam cheios", comemora. O que falta agora, acredita, é uma política cultural comprometida com a música erudita.

Aperfeiçoamento

Ir e voltar é uma prática cada vez mais comum. Assim aconteceu com o jovem violinista Luciano Pontes, 26, que se graduou aqui, depois estudou na Academia da Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo (Osesp) e ainda tocou na Orquestra Sinfônica do Mato Grosso, uma das mais bem estruturadas do País. Agora está de volta a Goiânia para fazer o mestrado. "Conheço quase todas as capitais e acho que Goiânia é a melhor para se viver e seguir a carreira acadêmica", afirma.

Outro fruto do meio acadêmico goiano, a flautista e pianista Andréa Luisa Teixeira está morando há um ano e meio em Lisboa, de onde falou ao POPULAR. Ela faz doutorado em musicologia e divide o tempo em concertos por toda Europa, a convite de instituições respeitadas da Holanda, Bélgica e França. Embora tanto a carreira musical quanto a acadêmica estejam a todo vapor por lá, em breve, ela planeja voltar ao Brasil. "Volto para honrar meu vínculo com a cidade", diz a pianista, que considera a carreira acadêmica um porto seguro. "Para viver somente de tocar, somente sendo mesmo um Antonio Meneses (violoncelista) ou um Arnaldo Freire (pianista)", brinca.

Atualmente professora da Universidade Federal de Minas Gerais, a musicista goiana Celina Szrvinsk, 51, explica que Goiânia tornou-se referência acadêmica por causa de sua dedicação desde o início à música erudita. Ela, que também é formado pela UFG, ressalta que há mais de 40 anos, quando teve seus primeiros contatos com a música, a distância física de centros como Rio de Janeiro e São Paulo fez com que o Estado intensificasse intercâmbios. "Era impressionante. Recebíamos já naquela época grandes nomes como Camargo Guarnieri e Arnaldo Estrela", recorda-se.

Terra de promessas

Vista de fora como um celeiro de bons músicos, Goiânia também atrai jovens que visualizam na cidade, apesar das adversidades, a oportunidade para iniciar a carreira. Graduando de música em Uberlândia, o jovem violinista Ricardo Seoud, 22, veio para Goiânia para tocar na Orquestra Sinfônica Municipal. "Entrei numa rotina cansativa porque ainda me divido entre as duas cidades. Mas para um músico tudo é exemplo e em Goiânia há sempre muitos bons exemplos. Por isso estou aqui", elogia o mineiro de Ituitaba.

Nem mesmo as condições precárias de trabalho das orquestras afastam interessados em ter contato com o meio musical da cidade. "Não tenho a remuneração ideal, mas aqui consigo melhorar minha formação. Quando cheguei aqui, por exemplo, descobri que estava com um grave problema de afinação", lembra Ricardo. Spalla da mesma orquestra, o violinista peruano Ivan Quintana, 30, teve uma história semelhante, quando chegou em Goiânia há poucos anos.

Formado pela UFRJ, Quintana decidiu cursar seu mestrado aqui. Gostou do ambiente e acabou optando por ficar com a família, também composta de violinistas. "Aceitei o convite para ser spalla, porque aqui existe um movimento de formação de público muito forte. O músico, claro, vive de oportunidades, mas decidi investir aqui justamente pelo perfil da cidade, que sempre se preocupou na formação dos músicos", elogia.

Crítica

Jovem formada em composição musical pela UFG e preparando-se para um mestrado, a goianiense Laiana de Oliveira, 23, mantém uma postura crítica em relação à estrutura deficitária oferecida a quem desejar tocar por aqui, mas mesmo assim aposta na cidade. "Temos muitos talentos, gente nova fazendo boa música. Vejo muitos grupos de câmara nascendo aqui, por exemplo", observa. Por isso, aceitou assumir o posto de gerente da Orquestra Sinfônica Jovem de Goiás, ligada ao Centro Basileu França, hoje um dos grupos sinfônicos mais ativos do Estado.

Falta de políticas públicas

O maior problema de Goiânia no campo da música erudita é a falta de políticas públicas em prol do corpos sinfônicos da cidade. Atualmente a cidade tem três orquestras em funcionamento: a Orquestra Sinfônica de Goiânia (do município), a Orquestra de Câmara Goyazes e a Orquestra Sinfônica Jovem de Goiás (ambas do Estado). Nenhuma consegue, porém, manter o ritmo ideal de ensaios e apresentações, pois a maioria dos músicos é obrigada a manter outras atividades para completar suas rendas.

Em média,as orquestras de Goiânia pagam a média salarial de R$ 900. "É o salário de orquestra mais baixo do Brasil", salienta o maestro Joaquim Jayme, regente da Sinfônica de Goiânia. O maestro Eliseu Ferreira, à frente das duas orquestras estaduais, explica que isso acaba desestimulando o músico a ficar ou se dedicar com exclusividade à atividade. "Só continuamos mesmo porque existe um grande esforço em prol da música erudita", salienta.

Já o maestro e violinista Alessandro Borgomanero, professor da UFG, é mais enfático: "Falta vontade política para mudar a situação. No Brasil, as grandes orquestras ainda são dependentes do poder público. Onde há interesse em investir, elas se desenvolvem. Onde não tem, ficam defasadas", expõe ele, que já esteve à frente das orquestras do Estado. "Esse é o grande desafio do próximo governo para a área."

Um desafio que não é assim tão difícil de ser vencido. Goiânia tem perfil parecido com o de cidades que conseguem manter boas orquestras como Cuiabá, Ribeirão Preto e Porto Alegre. Em média, essas cidades pagam entre R$ 4 mil e R$ 5 mil para que seus músicos se dediquem às orquestras com exclusividade. Anualmente o Estado investe cerca de R$ 300 mil em suas orquestras. Para se ter uma ideia, isso equivale a um salário médio anual pago a um maestro de uma boa orquestra.