Mais pobres enfrentam mais riscos de adquirir pneumonia

Mais pobres enfrentam mais riscos de adquirir pneumonia

Pesquisa da UFG aponta que crianças menores de 3 anos estão mais sujeitas ter pneumonia e doença pneumocócica

Patrícia Drummond – 22/04/2010

A pneumonia está inversamente associada ao nível socioeconômico. É o que revela uma pesquisa inédita, realizada em Goiânia, por um grupo de pesquisadores da Universidade Federal de Goiás (UFG). Coordenado pela infectologista e epidemiologista Ana Lúcia Andrade, professora do Departamento de Saúde Coletiva do Instituto de Patologia Tropical e Saúde Pública (IPTSP) da instituição, o estudo mostra que o risco de adquirir pneumonia é 80% maior em áreas socioeconomicamente desfavorecidas – caso da Região Noroeste da capital - em comparação com áreas de melhor condição socioeconômica. O resultado da pesquisa foi apresentado no dia 13 deste mês, em São Paulo (SP).

“Historicamente, a Região Noroeste, em Goiânia, sempre enfrentou problemas, com carência em diversas áreas. O estudo finalmente conseguiu mensurar o que, antes, já se sabia, mas não em números: quanto maior o nível econômico das famílias, menor a carga de incidência das doenças pneumocócicas invasivas”, destaca a professora Ana Lúcia. A pesquisa, denominada Latin American Epidemiologic Assessment of Pneumococcus Invasive Disease (Leap), concluiu, ainda, que crianças menores de 3 anos de idade estão sob risco de contrair pneumonia e doença pneumocócica, sendo que as menores de 2 anos apresentam maior risco, especialmente na faixa etária entre 6 meses e 1 ano.

Luiz Felipe, de 2 anos e 7 meses, se encaixa no perfil descrito pelo Leap. Filho mais velho de um casal residente no Bairro da Vitória 3, há um mês ele sofreu por causa de uma bronquite. A mãe, a dona de casa Rosângela Cristina Quiele, de 26, conta que o menino continua tomando os remédios prescritos pelo médico que o atendeu, à época, no Centro de Assistência Integral à Saúde (Cais) do Jardim Curitiba. “O médico recomendou bombinha, mas acho que não vou dar, porque tenho medo de viciar. Dizem que bombinha vicia”, acrescenta Rosângela.

Segundo ela, Luiz Felipe já teve faringite, quando “ficou com a garganta travada” e precisou fazer tratamento. Dessa vez, diz a dona de casa, o filho apresentou sintomas de gripe, além de respiração ofegante e dificuldade para respirar. A ida ao Cais – um, entre os dois únicos existentes na Região - diagnosticou a bronquite. Luiz Felipe tem um irmão mais novo, Alcino Henrique, de 6 meses, que, de acordo com Rosângela, nunca mostrou sinais de doenças pneumocócicas.

Também moradora da Região Noroeste da capital, no Jardim Curitiba 1, a dona de casa, Ana Lúcia Bezerra Rufino, de 22, recorreu, na última semana, ao atendimento do Cais local por causa da filha caçula, Ana Clara, de 8 meses. “Ela está com o peito chiando muito; a gente sempre fica com medo de ser pneumonia, né?”, argumenta a jovem, mãe de outros dois filhos, Marcos Henrique, de 2 anos, e Lucas, de 5.

De acordo com Ana Lúcia, o caso de Ana Clara, felizmente, não foi diagnosticado como pneumonia. Mesmo assim, a menina está sendo medicada com antibiótico. Conforme diz a mãe, os filhos mais velhos nunca apresentaram sinais mais graves de doenças pneumocócicas, “só mesmo tosse e essa coisa de chiadeira no peito, de vez em quando”.

Carência histórica
A Região Noroeste - onde vivem Rosângela Quiele e os filhos Luiz Felipe e Alcino Henrique, e Ana Lúcia Rufino e os filhos Ana Clara, Marcos Henrique e Lucas - está localizada a uma distância aproximada de 15 quilômetros do Centro da capital. Limita-se, ao Norte, com a zona rural (Córrego Pinguela, Ribeirão São Domingos e Rio Meia Ponte); ao Sul, com o Ribeirão Caveirinhas; a Leste, com o Setor Balneário Meia Ponte (Córrego do Capim e Rio Meia Ponte); e, a Oeste, com a Rodovia GO-070, que liga Goiânia a Inhumas e à cidade de Goiás. A população do local corresponde – segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) - a pelo menos 10% dos habitantes da capital, espalhados em mais de 30 bairros.

A história de formação da Região Noroeste aponta para as dificuldades enfrentadas por seus moradores: ela foi formada a partir da segunda metade da década de 1970, quando surgiram as primeiras ocupações urbanas, na bacia do Ribeirão Caveirinhas. Essas ocupações, inicialmente, surgiram através de invasões – primeiro, clandestinas; depois, sob o patrocínio do poder público, já na década de 1980, visando legalizar e minimizar os problemas surgidos.

O início por meio de invasões sempre foi um aspecto característico relevante da região, na medida em que, como acontecimento social, obrigou o poder público a buscar soluções para o problema da moradia em Goiânia. Todos os parcelamentos urbanos de baixa renda implantados na Região Noroeste ocorreram à revelia da legislação municipal.

Estudo avaliou 14 mil crianças

Patrícia Drummond

O projeto Latin American Epidemiologic Assessment of Pneumococcus Invasive Disease (Leap) desenvolvido, no Brasil, apenas em Goiânia, envolveu outros países latinoamericanos, como Colômbia e Costa Rica. “Estudos epidemiológicos dessas doenças, como o Leap, são essenciais para avaliarmos o real impacto da doença na população e os efeitos da imunização conjugada”, explica a infectologista e epidemiologista coordenadora do estudo, Ana Lúcia Andrade, professora do Instituto de Patologia Tropical e Saúde Pública (IPTSP) da Universidade Federal de Goiás (UFG).

No braço brasileiro do estudo, 358 pediatras analisaram, durante dois anos, um total de 14.750 crianças entre 28 dias e 36 meses de idade, em um universo de 112.969 casos considerados de risco. O objetivo do Leap foi avaliar a carga da doença pneumocócica por meio de vigilância ativa em centros de saúde e hospitais da rede pública e privada da capital.

Ana Lúcia Andrade explica que a cidade foi escolhida como sede da pesquisa devido ao clima estável, sem extremos de temperatura, e por causa do perfil diferenciado de renda das famílias atendidas nos pronto-socorros, hospitais e centros de saúde. De maio de 2007 a maio de 2009, os pesquisadores acompanharam atendimentos de crianças com febre igual ou maior que 39 graus ou suspeita clínica de pneumonia, meningite, bacteremia ou outra doença pneumocócica. A confirmação da presença da doença pneumocócica no organismo das crianças foi feita por exames de sangue e radiografias do tórax.

Os exames de sangue das crianças analisadas mostraram vários tipos da bactéria pneumococo. Os pesquisadores testaram a sensibilidade da bactéria a cinco tipos de antibióticos – penicilina, amoxicilina, eritromicina, TMP/Sulfa e ceftriaxone. Os resultados mostraram que 29,4% eram resistentes à penicilina e, em graus variáveis, à eritromicina, Sulfa e ceftriaxone. As amostras eram apenas sensíveis à amoxicilina. A resistência foi associada a quatro tipos do pneumococo: 6B, 9V, 14 e 23F.

A médica coordenadora do estudo frisa que a hemocultura (coleta de sangue) foi realizada por um único laboratório de referência (Lacen), assim como a leitura dos raios-X foi feita por um único radiologista especializado, o que confere maior segurança aos resultados. Os pais das crianças recrutadas nesse período de dois anos também foram abordados e passaram por entrevista, momento em que foram avaliados os fatores de risco.

O Leap abrangeu toda a rede de pronto-atendimento pediátrico da capital, além de 12 centros de saúde e 22 hospitais públicos e conveniados. A pesquisa apontou incidência de 54,9 por 100 mil de doença pneumocócica invasiva (DPI) em crianças observadas nos centros de emergência. A maior incidência verificada foi de pneumonia bacterêmica: 37,2 por 100 mil. Já a incidência de pneumonia confirmada por radiografia em crianças chegou a 3.501 por 100 mil.

Saiba mais sobre a doença pneumocócica

Patrícia Drummond

De acordo com estimativa da Organização Mundial de Saúde (OMS), a doença pneumocócica (DP) causa até 1, 6 milhão de óbitos a cada ano em todo o mundo. Até 1 milhão desses óbitos ocorrem em crianças menores de 5 anos de idade, o que torna a doença um risco significativo para a saúde pública global e uma das principais causas de morte evitáveis por vacina entre crianças menores de cinco anos de idade.

A doença pneumocócica é complexa e conjuga um grupo de enfermidades causadas pela bactéria Streptococcus pneumoniae (S.pneumoniae), também conhecida como pneumococo. Há mais de 90 sorotipos (cepas) conhecidos de S.pneumoniae, porém, apenas um pequeno subgrupo causa a maioria das doenças pneumocócicas em todo o mundo. O pneumococo pode se colonizar no trato respiratório superior, causando vários tipos de doenças, inclusive doença pneumocócica invasiva (DPI), na qual as bactérias entram na corrente sanguínea ou em outros locais estéreis. Entre as DPIs incluem-se bacteremia/septicemia (infecções bacterianas do sangue) e meningite (inflamação da membrana que reveste a medula espinhal ou o cérebro).

Propagação
A bactéria S. pneumoniae também pode se propagar pelo nariz e garganta até o trato respiratório inferior e ouvido, o que pode resultar em doenças pneumocócicas não invasivas, incluindo pneumonia e otite média (infecção do ouvido médio).

A doença pneumocócica afeta tanto crianças quanto adultos. Os indivíduos portadores de S. pneumoniae em suas vias nasais e garganta podem potencialmente expor outras pessoas ao risco de DP por meio de contato próximo por saliva resultante de espirros, tosses ou por expiração. Nem todos os indivíduos expostos ao pneumococo adoecem.

Os sorotipos mais prevalentes e que causam a maior parte das DPIs são 1, 2, 3, 4, 5, 6A, 6B, 7F, 9V, 14, 18C, 19A, 19F, e 23F. A prevalência dos sorotipos 6A e 19A está aumentando em várias partes do mundo e, geralmente, são resistentes a antibióticos. O sorotipo 3 é um dos mais temidos por causar infecções de mucosas, como, por exemplo, pneumonia complicada. (PatríciaDrummond)

Especialista defende vacinação

Patrícia Drummond

Diretor-geral do Hospital de Doenças Tropicais (HDT), em Goiânia, o médico infectologista Boaventura Braz de Queiroz, atesta: a população mais pobre é, de fato – conforme concluiu o estudo Latin American Epidemiologic Assessment of Pneumococcus Invasive Disease (Leap) realizado por pesquisadores da Universidade Federal de Goiás (UFG) -, mais suscetível às doenças pneumocócicas. Segundo ele, isso se justifica, principalmente, porque, em geral, famílias socioeconomicamente desfavorecidas também apresentam piores condições de higiene e nutrição, o que contribui para a maior exposição às infecções bacterianas e, consequentemente, a doenças como meningite, otite e pneumonia, entre outras.

“Tenho acompanhado de perto o comportamento das meningites que acometem nossa população nestes últimos 12 anos”, ressalta Boaventura, para citar exemplos que, segundo ele, comprovam a tese. O primeiro, afirma, está na incidência da meningite por Haemophilus influenzae tipo B, que respondia por 30% de todas as meningites bacterianas até o ano de 2000, quando foi introduzida na rede pública uma vacina contra a doença.

“Desde então, a queda de sua ocorrência foi sintomática, e, hoje, representa menos de 5% dos casos de meningites bacterianas. A grande beneficiada foi, sem dúvida, a população desprovida de recursos para pagar por esta proteção, visto que as pessoas com condições financeiras já contavam com esta vacina desde 1990”, argumenta o médico.

O especialista acrescenta que, no caso da meningite por pneumococos, o quadro é outro. Correspondente, hoje, a 28% das meningites bacterianas, a doença já conta com vacina disponível para pais que possam custear esta proteção para os seus filhos. “Desta forma, a população vulnerável é, até o momento, a desprovida de recursos, e que é a mesma que tem piores condições de higiene e nutrição, o que, rigorosamente, contribui para essa vulnerabilidade”, pondera, lembrando que, apesar da disponibilidade da vacina pneumocócica conjugada 7-valente desde o ano 2000, “os índices de meningite por pneumococos não mudaram nestes últimos dez anos, para vergonha de todos nós”.

De acordo com Boaventura Braz de Queiroz, a mesma situação ocorre em casos de meningite por Meningococos C. Na avaliação do infectologista, o estudo realizado em Goiânia traz suporte para justificar a introdução da vacina contra pneumococos na rede pública – dessa forma acessível a toda a população. (P.D.)