A cidade desigual

A cidade desigual

Porsches e BMWs não fazem parte, sequer percorrem, a realidade de muitas ruas da capital goiana

Tribuna do Planalto, 23 de outubro

Gilberto G. Pereira

Goiânia tem uma população de 1,28 milhão de pessoas, um PIB (Produto Interno Bruto) de R$ 17,86 bilhões (IBGE, 2007) e uma renda per capita de R$ 14,3 mil. Esses números dão a ela o conforto de se ver na lista das cidades bem de vida. É, inclusive, a melhor do país em qualidade de vida, segundo dados da Organização Mundial de Estados, Municípios e Províncias (OMEMP).

Mas se existe uma organização para ver as qualidades, há outra que também enxerga os defeitos. No ano passado, a Organização das Nações Unidas (ONU) apontou Goiânia como a campeã em desigualdade social no Brasil e a quarta no mundo, perdendo apenas para cidades africanas, Buffalo City, Johannesburgo e Ekurhuleni, todas da África do Sul.

De acordo com o diretor do Instituto de Estudos Sócio-Ambientais (Iesa), da Universidade Federal de Goiás (UFG), João Batista de Deus, uma coisa é ser pobre, e outra bem diferente é ser desigual. A capital goiana se enquadra no segundo termo porque a maioria de sua população não tem acesso aos serviços oferecidos pela cidade, como saúde, educação, transporte digno, saneamento básico, entre outros.

Segundo João Batista, a questão da distribuição de renda conta muito no quesito desigualdade. “Se você ganha 5 mil reais por mês pode pôr seu filho numa escola melhor. Mas o governo tem o dever de dar uma boa escola para qualquer cidadão, independente de renda alta ou baixa.” O acesso negado a esses serviços é que caracteriza o padrão desigual.

Na avaliação do economista e professor Aristides Moysés, coordenador do mestrado em Desenvolvimento e Planejamento Territorial da Pontifícia Universidade de Goiás (PUC-GO), o grande problema de Goiânia, como da maioria das cidades modernas, é seu perfil seletivo. “É isso que tem gerado uma natureza de segregação social”, analisa.

Segundo Moysés, esse fenômeno de segregação sócio-econômico pode ser visto muito facilmente em Goiânia. E é o tipo de ação que joga contra o desenvolvimento harmônico da sociedade, causando as desigualdades, porque os mais pobres são sempre empurrados para fora.

Exemplo disso é o número exorbitante de carros, dois para cada três habitantes, ou seja, mais de 800 mil carros para 1,28 milhão de habitantes, e ainda assim existe um problema que parece insolúvel no transporte coletivo, com milhares de usuários sofrendo para tomar uma condução decentemente.

Com esta estatística, não deveria haver ônibus lotados com a frequência que ocorre na maioria das linhas de Goiânia. Segundo Moysés, que também é coordenador e pesquisador do Observatório das Metrópoles, núcleo de Goiânia, especialista em mercado imobiliário, outro indicador da desigualdade é o acesso à moradia.

Carência
Quando uma família tem um lugar onde morar com acesso fácil ao trabalho, aos serviços de saúde e às escolas para os filhos, fica mais fácil de planejar a vida e aproveitar as oportunidades. Goiânia criou a fama de cidade de ótimo padrão e muita gente migra para cá, diz o pesquisador. O problema é que a maioria não tem qualificação profissional, não tem sequer estudos, muitos são analfabetos e acabam se alojando precariamente.

Moysés cita as ocupações na linha ferroviária na Vila Viana. As pessoas foram morar naquela localidade porque ali ficava mais próximo dos serviços básicos e do acesso a seus empregos. Uma ação do governo retirou os moradores de lá, em parte por ser uma área de risco, e em parte pelos projetos de empreendimentos públicos, como a criação de uma avenida perimetral em cima da antiga linha férrea.

Outro fator de pressão é justamente o mercado imobiliário. Segundo Moysés, existe uma demanda da classe média naquela região e o mercado está pressionando a prefeitura para a remoção dos pobres nessas áreas. O diagnóstico não é difícil de ser notado. O levantamento de vários edifícios e a construção de condomínios horizontais na Vila Negrão de Lima e na própria Vila Viana é um atestado do que diz o pesquisador.

Logo ao lado, na Nova Vila, outro boom está sendo anunciado, analisa Moysés. Segundo ele, a saída da sede da Sociedade Goiana de Pecuária e Agricultura (SGPA), também conhecida como Pecuária, da região vai alterar profundamente o perfil do bairro nos próximos anos. “O que tem de pobreza em toda a vizinha desses bairros está sendo estimulado à remoção. A prefeitura está tirando todo mundo”, diz.

Batalhão
Autor do livro Goiânia: Metrópole não planejada (Editora UCG, 2005), Moysés afirma que o padrão de vida médio de Goiânia está ancorado numa renda de três salários mínimos. Por este ponto de vista, Goiânia seria uma cidade de classe média. Nem rica nem pobre. Mas, avaliando pelo nível de consumo de uma minoria, pode-se ver uma cidade rica, já pelo da maioria, vê-se uma com muitas carências.

Esta é a face da desigualdade social. O economista argumenta que um dos fatores decisivo para este disparate, juntando-se a todos os problemas sociais que existem na cidade, é a falta de políticas governamentais para os mais pobres. Segundo ele, existe um batalhão enorme de pessoas que estão longe de ganhar três salários mínimos.

A política habitacional mais próxima desse perfil é o Minha Casa, Minha Vida, lançado nos últimos anos pelo governo federal. Mas não está no alcance desse exército todo. A maioria dessa população muito pobre se concentra na região Noroeste de Goiânia, em bairros como Vitória, Floresta e São Carlos, que por sua vez são vizinhos de outros bairros pobres como o Jardim Curitiba e o Jardim Nova Esperança.

Para Moysés, a região Noroeste é estigmatizada. Em muitos casos são áreas de risco, extremamente precárias, com uma população pobre, analfabeta e sem qualificação profissional. O mercado não se interessa por aquela região e o poder público pouco lança sprojeto de inclusão da população de lá.

Uma das razões do estigma ainda é o fato de ter sido área de ocupação. Desde a década de 1970, as pessoas vêm se amontoando ali na esperança de conseguir um lote para construir sua casa própria. Muitas famílias conseguem. Segundo Moysés, a autoconstrução é uma saída comum para as pessoas que não têm acesso a políticas habitacionais como o Minha Casa, Minha Vida.

“Caso a pessoa consiga fazer um investimento e comprar um lote”, comenta o economista, “fica mais fácil para, aos poucos, ir construindo.” Mas a maioria nem assim tem condições de levantar sua casa. Enquanto lutam para pelo menos dar comida para os filhos, a população cresce. Segundo Moysés, nas áreas de ocupação da região Noroeste, os últimos bairros criados e organizados pelo poder público foram no Complexo da Fazenda São Domingos, nos anos 80.

Há 30 anos não há política habitacional para um número cada vez maior de pessoas que chegam à procura de oportunidade, mas sem nenhum tipo de qualificação profissional. Os bairros incham, a violência cresce, crescem também a falta de saneamento básico, a falta de serviços públicos adequados e a falta de perspectiva. Tudo aumenta e cria um ciclo vicioso da pobreza e do estigma.

Estratos
Não é que a pobreza se concentra apenas ali, diz Moysés. “Mas é ali que os problemas acumulam mais.” Ele cita a região leste, como Jardim Novo Mundo, Santo Hilário e adjacências como exemplo de que as coisas mudam. É uma região relativamente pobre, mas os investimentos já estão chegando e a classe média já está de olho naquele mercado.

Segundo ele, não existe estigma naquela região. “Este é um dos fatores que não terá problemas para se desenvolver.”. Moysés comenta que as regiões Sul, sudeste são mais desenvolvidas da capital. A região Norte também tem perspectivas, assim como a Sudoeste, que hoje divide as atenções do mercado com núcleos de ocupação.

De acordo com Moysés, depois do bairro Novo Horizonte, há núcleos de ocupação que são vizinhos de condomínios de luxo. Dependendo do ponto de vista, a situação tende a melhorar ou piorar. Se houver uma política de inclusão por partes dos gestores públicos, certamente a tendência é uma valorização crescente da região.

Na geografia sócio-econômica de Goiânia, os estratos mais abastados da cidade ocupam poucas extensões, e talvez por isso haja tanta demanda territorial. O bairro Jaó, por exemplo, é uma dessas localidades da classe alta. As áreas de condomínios horizontais de luxo são outras, como o Aldeia do Vale e o Alphaville.

De acordo com Moysés, muitos estratos sociais mais ricos estão migrando para condomínios fechados urbanos. A região que mais concentra esses condomínios é a Sudeste, próximo ao estádio Serra Dourada e aos domínios do Shopping Flamboyant.

Nesses lugares, contando também com os bairros tradicionais da cidade como Marista, Oeste e Bueno, é fácil verem correr um Porsche ou um BMW. Todo mundo está acostumado. A desigualdade grita quando existe um grupo de pessoas, como muitos moradores da região Noroeste, que sequer sabe que há carros desse modelo na cidade, porque ninguém jamais teve oportunidade de ao menos passear por lá.