O texto mínimo

Gilberto G. Pereira

Fundador do teatro pós-dramático vem a Goiânia para discutir sobre questões da estética contemporânea

O teatro pós-dramático quer dar conta de uma nova estética e uma nova postura cênica nos palcos. Desde a década de 1960, a dramaturgia internacional vem abrindo caminho com essa concepção teatral, em que o texto fica em segundo plano, para deixar em destaque elementos como a luz, o trabalho corporal e interpretativo dos atores, a trilha sonora e o próprio cenário.
Um de seus fundadores é o alemão Hans-Thies Lehmann, professor de Estudos Teatrais da Universidade Johann Wolfgang Goethe, em Frankfurt. Ele estará em Goiânia nos dias 30 e 31 de agosto e 1 de setembro, juntamente com a pesquisadora Eleni Varopoulou, especialista em teatro grego antigo e contemporâneo, para participar da Conferência Internacional de Teatro Pós-Dramático da Universidade Federal de Goiás.
O interessante dessa discussão sobre o teatro moderno é que há uma confusão eterna com a acepção da palavra ‘drama’. Ela tanto pode ser sinônimo de teatro (veja os termos ‘artes dramáticas’, ‘dramaturgo’, por exemplo) quanto uma categoria estética. Neste caso, o drama imprime a manifestação dolorida de alguém que quer mudar o próprio mundo ou até mesmo toda a configuração sócio-política de uma época.
O conceito de Lehmann se constrói em cima das duas acepções da palavra, e por isso se torna complexo na compreensão para quem está de fora da ‘militância teatral’. E também por isso, cria-se uma série de debates e polêmicas acerca da teoria que veste a estrutura do teatro pós-dramático. Por exemplo, segundo o próprio Lehmann, em entrevistas à imprensa brasileira, “com esta proposta, o futuro do teatro é a prática artística e social.”
Ora, o drama sempre teve como característica apresentar personagens de conotação social, porque quer mudar o mundo de alguma forma. Lehmann também quer afastar a dimensão literária do teatro, tirando, para tanto, a força expressiva do texto, para colocá-la no figurino, nos gestos do ator, em todos os outros elementos, inclusive nos recursos atuais das novas tecnologias, além de recorrer à música e ao cinema.
Neste sentido, é interessante. Mas ele mesmo afirma que é neste sentido também que se aproxima de “elementos de ritual, de encontros comunitários, de festividade”, ou seja, do teatro antigo, grego, primitivo, como quem bota os pés no chão para renovar seu contato com a Natureza. Tudo isso é muito bonito.
Por outro lado, esta perspectiva de retirar do texto o fôlego interpretativo é muito moderna, é cinematográfica, à medida que se pensa o cinema como a arte que põe na imagem sua expressão máxima. No cinema, a imagem é o corpo da mensagem ou do próprio sentido. No teatro pós-dramático, algo semelhante acontece.

Renovação
Há quem siga Lehmann, e quem prefira explorar a inesgotável possibilidade do texto, porque é no contato com o ator que existe a explosão, como o fogo necessita do oxigênio. Quem sai ganhando é o teatro. Vejamos o caso das peças de Shakespeare, cuja força pode ser encontrada nas palavras, mas também nas sugestões cênicas. Lehmann sabe disso muito bem.
No Brasil, entre os adeptos do teatro pós-dramático, ou que pelo menos usam alguma coisa desse conceito, está João Bosco Brasil, homem de formação essencialmente teatral, que nos anos de 1990 ajudou a criar o “movimento de renovação dramatúrgica”.
Bosco Brasil enveredou para a televisão, mas, até agora, tem encontrado dificuldade de convencer o público de telenovelas dessa inovação dramática. Foi co-autor de As filhas da mãe, novela das sete da Rede Globo, que foi um fiasco só. Seu trabalho mais recente na televisão foi Tempos Modernos, também novela das sete da rede Globo, friamente recebida pelo público. Já no teatro sua trajetória é de sucesso de público e de crítica.
Voltando a Hans-Thies Lehmann, além de professor, é membro da Academia Alemã de Artes Cênicas, teórico, dramaturgo, e crítico teatral respeitado internacionalmente. É autor de vários livros, como Teatro Pós-Dramático e Escritura Política no Texto Teatral, lançados no Brasil.
Hoje, ele vê seu conceito ser debatido e adotado por talentos da dramaturgia em todo o mundo. Por isso mesmo veio ao Brasil, a convite da Taanteatro Companhia, em nome de seu co-diretor, Wolfgang Pannek, para conferências em várias universidades brasileiras, incluindo a UFG, onde a Conferência será realizada pela Pró-Reitoria de Extensão e Cultura, Escola de Música e Artes Cênicas e projeto Universidade em Cena.
O evento será parte da comemoração dos 50 anos da UFG, contando com o apoio cultural do Sebrae-GO e do Instituto Goethe de São Paulo. De acordo com a universidade, o objetivo dessa conferência é “possibilitar aos pesquisadores de teatro, artistas, professores, intelectuais e críticos de arte do Estado conhecer e debater a realidade da cena contemporânea, refletindo sobre as raízes do teatro ocidental, que tanto influenciaram e influenciam a estética teatral de todo o mundo.”
As inscrições já estão sendo realizadas por meio do site 
www.teatro.ufg.br/universidadeemcena

A missão da poesia é despertar
Recentemente saiu no Brasil um ensaio biográfico de Edmund White sobre o poeta francês Arthur Rimbaud (1854 – 1891), intitulado Rimbaud – a vida dupla de um rebelde (Companhia das Letras, 2010, tradução de Marcos Bagno). Mas a dica só fica completa se o leitor voltar um pouco no tempo e se lembrar de outro ensaio escrito pelo norte-americano Henry Miller (1891 – 1980), aquele mesmo de Nexus, Plexus e outros romances para lá de polêmicos pela linguagem de cunho escandaloso, dizem alguns.
O livro em questão é A Hora dos Assassinos: um estudo sobre Rimbaud, escrito em 1956, publicado no Brasil pela L&PM (tradução de Milton Persson, 2004). Nesse livreto de 136 páginas, Miller abre uma pequena ferida nos brios da modernidade que se conhece hoje e que na década de 1950 dava seus primeiros toques de surtos coletivos, principalmente com a Guerra Fria e a recente explosão da bomba atômica sobre Hiroshima e Nagasaki.
Os tempos pareciam e ainda parecem (até o fim?) ser mesmo dos assassinos. A era dos poetas, da mente criativa, já tinha ido para os ares. É disso que trata o livro, enfatizando a identidade total de Miller com Rimbaud. A única parte chata é o fato de o autor se jogar a toda hora diante da luz do enfant terrible francês para sugerir que ele, Miller, era tão gênio quanto, por isso mesmo um incompreendido tal como o fora Rimbaud na sua vida conturbada.
Não que não fosse. Miller foi mesmo um autor genial, nascido no ano em que morria Rimbaud, com prosa capaz de arrebatar leitores de tudo quanto é nível e influenciar gerações. E talvez sua obra nem esteja tão ligada assim a Rimbaud, em termos de influência, a julgar pelo que diz em A sabedoria do coração (L&PM, 1986, tradução de Lya Wyler):
“Examino com assiduidade o estilo e a técnica daqueles que uma vez admirei e cultuei (...). Imitei todos os estilos na esperança de descobrir a chave do segredo torturante da arte de escrever (...). Eu fracassei. Percebi que não era nada. (...). Foi nesse ponto, em meio à estagnação do mar dos Sargaços, por assim dizer, que realmente comecei a escrever. Comecei do nada, lançando tudo ao mar, mesmo aqueles a quem mais amava.”

Transgressão
Mas, voltando ao magnífico A Hora dos Assassinos, o protesto de Miller, em meio à homenagem a Rimbaud, numa salada de autoapreciação, é o fato de os poetas não terem mais a voz ouvida por ninguém. Nem mesmo o mestre da modernidade teve a audiência merecida em vida. Quando Miller escreveu este ensaio, Rimbaud já tinha influenciado a poesia toda, mas era ainda tacitamente que dominava o reino das palavras.
Segundo Miller, as críticas eram pontuadas pelo excesso que havia na vida e na obra do grande poeta, que na fúria criativa entre os 16 e 19 anos havia dado novo rumo à poesia. “Como boêmio, é boêmio demais; como poeta, é poético demais; como pioneiro, é pioneiro demais; como contrabandista de munições, é esperto demais, e assim por diante, etc. e tal. Tudo o que fez, fez bem demais – parece ser essa a reclamação contra ele.”
Rimbaud era assim mesmo. E também o era Miller. O que vale na leitura de A Hora dos Assassinos é isso, o grito de que a missão da poesia é despertar. Neste caso, a poesia ainda vale a pena. “Ser poeta era antigamente a vocação mais sublime; hoje é a mais fútil”, reclama Miller.
Ler White, que mostra Rimbaud como um grosseirão insolente, apesar de gênio, e Miller, que sugere que a literatura ainda vale a pena porque transgride justamente para atingir a humanidade comum, é o melhor dos mundos.