Razões para a existência da universidade pública

Por Aline da Cruz em 19/06/2012 na edição 699

Acompanhar a greve nas universidades pelos jornais deixa o leitor sempre com a dúvida sobre o porquê de os professores lutarem. Por que os estudantes os apoiam? Nos comentários de leitores, coloca-se em questão a própria existência da universidade pública: afinal, por que alguns privilegiados têm o direito de estudar em escola pública, gratuita, enquanto pessoas mais pobres estudam em escola particular? Ao fazerem esta pergunta, os leitores parecem imaginar o próprio filho de Abílio Diniz no curso. Os jornais, claramente, colaboram para formar esta imagem.

Nessa perspectiva, a notícia de greve nas universidades soa completamente alheia à vida das pessoas. No curto prazo, talvez a universidade não esteja ligada ao cotidiano, porém isso muda se tivermos um prazo maior de planejamento. Vou colocar aqui o exemplo do curso de Letras, por ser a área em que trabalho e também por ser uma área pouco discutida na mídia.

Tive a oportunidade, há pouco tempo, de conversar com uma professora doutora, coordenadora da área de Letras de uma universidade privada de São Paulo. O primeiro ponto que ela destacou é o fato de serem pouquíssimos os doutores nas universidades privadas. Em geral, os poucos doutores têm seus nomes associados a vários cursos, de modo a preencher o número mínimo de doutores exigidos pela Capes. Assim, um único professor doutor com contrato integral pode trabalhar ao mesmo tempo nos cursos de Letras, Publicidade e Administração, entre outros. No que concerne ao curso de Letras, a tendência é a de que deixe de existir em breve por falta de alunos. Não acredito que as pessoas tenham deixado de se interessar por literatura ou pela linguagem em geral. Parece-me que o que desestimula o estudante de ensino médio a prestar Letras é a perspectiva de ser professor em escola pública e ter como piso salarial R$ 1.451,00 para uma jornada de quarenta horas – salário extremamente baixo, se comparado a qualquer outra profissão de nível superior. O salário fica ainda mais desestimulante quando o aluno descobre que o piso salarial é fictício em muitas cidades brasileiras.

Ensino, pesquisa e extensão

Nas universidades federais, os cursos de Letras mantêm-se como um oásis em que ainda é possível conhecer e refletir sobre textos literários, ou aprender as bases para a descrição e análise de estruturas linguísticas do Português, de outras línguas europeias e de línguas indígenas, africanas, asiáticas, oceânicas, ou mesmo sobre a existência de universais. Obviamente, a universidade se preocupa com as perspectivas salariais de seus alunos, mas isso não a leva a extinguir o curso de Letras. A Universidade Federal de Goiás, por exemplo, manifestou-se oficialmente como desfavorável à política de não reposição salarial de professores das escolas públicas e clamou pela necessidade de atribuir condições de trabalho mais justas aos profissionais da educação. Por conta disso, os alunos da UFG estão tendo dificuldades para fazer estágios em escolas públicas.

Deve-se reforçar também o papel da Letras-UFG na ampliação do acesso à universidade a setores da sociedade que historicamente se mantêm distantes. A Letras-UFG criou um curso especialmente dedicado ao estudo da Língua de Sinais Brasileira (Libras). O objetivo é formar professores para atuarem nas escolas públicas, cumprindo a lei nº 10.436, de 24 de abril de 2002, que oficializou as libras em território brasileiro. Outro grupo, normalmente excluído, é o dos indígenas. A UFG permitiu que professores de Letras, de Antropologia, de Matemática e de Ciências Ambientais, entre outros, unissem forças para criar o curso Licenciatura Intercultural Indígena, curso de graduação voltado para os povos indígenas que se situam na região Araguaia-Tocantins. A proposta educacional tem como objetivo valorizar as línguas, as práticas culturais e os lugares de pertencimento étnico dos povos indígenas, ao mesmo tempo em que se abrem as portas para novas formas de inserção na sociedade não-indígena brasileira com ênfase em uma cidadania que respeite e integre as diferenças, o “outro” (para citar as palavras de apresentação do próprio curso).

Os cursos de Licenciatura Intercultural Indígena, Letras-Libras e a própria Letras em si só podem sobreviver em universidades públicas e de qualidade. Há de se reconhecer que o atual governo contribuiu enormemente para a consolidação desses cursos, abrindo vagas para a contratação de professores. Neste momento, o que os professores lutam é para que haja valorização dos professores em suas três atribuições básicas: ensino, pesquisa e extensão. A qualidade das aulas, a criação e consolidação de projetos educacionais e científicos importantes dependem da articulação entre essas três atribuições. As pesquisas não podem ser deixadas de lado em virtude de um programa que pretende a atribuição de aulas desvinculadas totalmente da pesquisa, sem tempo para inovação e reflexão.

***

[Aline da Cruz é professora da Faculdade de Letras, da Universidade Federal de Goiás. Autora da Fonologia e Gramática do Nheengatú(Utrecht: LOT, 2011)]