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Nunca o espectador foi bombardeado por tantas imagens como agora. Esse fato, na opinião do crítico de cinema e professor da USP Ismail Xavier, que esteve na semana passada na cidade de Goiás para participar do Festival Internacional de Cinema e Vídeo Ambiental (Fica), acaba por contribuir para uma banalização das imagens e um empobrecimento da experiência visual das pessoas. Confira a seguir a entrevista que o crítico concedeu ao POPULAR, na qual ele aborda outros temas, como a relação entre o cinema melodramático e o cinema como espetáculo: 

 

Qual o lugar do melodrama na atualidade, neste contexto de cinema como espetáculo?

O que se tem ao longo da história, não só do teatro, mas também do cinema e da televisão, é que tem havido uma tendência de o melodrama se manter, permanecer, com mutações, como gênero importante, de referência. Ele não é uma coisa estática, o melodrama vai se ajustando a determinadas alterações, no plano do que eu chamaria de um senso comum ético presente em determinado momento. Vou dar um exemplo: qual o grande sucesso no cinema brasileiro recente? Tropa de Elite 2. O que é o Tropa de Elite 2? O Wagner Moura fazendo o Capitão Nascimento, que já é um personagem que vem do Tropa de Elite, e ele cria uma relação, inicialmente tensa, que tende a se transformar em parceria, com o ativista de direitos humanos. A maneira pela qual o ativista de direitos humanos se legitima, para que o policial dialogue com ele, é o fato de que ele arrisca a vida dele indo à prisão para tentar resolver o problema da rebelião que estava havendo ali, não por causa das ideias, porque no sistema de valores do policial o que vale é a coragem que ele teve de se assumir autenticamente no discurso dele no começo do filme. Isso seria um plano, digamos assim, que lembra muito o western, é o modelo do western americano, que são dois personagens que fazem uma parceria, um do lado da lei e o outro do lado das armas. O clássico exemplo é O Homem que Matou o Facínora, do John Ford, então o Wagner Moura seria o John Wayne e o outro é o James Stewart. Um, o advogado e o outro, o competente com o revólver. O nível melodramático no John Ford é que os dois têm como objeto de desejo a mesma mulher. O José Padilha não apenas faz esse jogo, como ainda acrescenta o fato de que o ativista de direitos humanos está no momento casado com a ex-mulher do capitão. Isso é de uma inverossimilhança, é de uma “forçação”, no sentido de criar um esquema melodramático, que é uma demonstração clara da eficiência comunicativa do melodrama. O Tropa de Elite acaba se transformando numa história de família. Tem-se uma estrutura em que toda a questão brasileira, complicadíssima, da violência, do tráfico, das milícias etc., que está lá, está pontuada dramaticamente por esse drama de família. O que é importante é que Tropa de Elite 2 é um melodrama canônico, tal e qual o cinema clássico dos anos 30, 40, 50. Claro que “recheado” de muito mais coisas.


Embora permaneçam os esquemas melodramáticos, os filmes parecem mais cínicos, na posição de “cinema de atração” apenas. Esses esquemas estão no subtexto cada vez com menos força?

Sim, esse “cinismo” é parte do jogo. Hollywood trabalha há muitos anos com o que podemos chamar de “dupla leitura”: o filme tem uma leitura para o adolescente e outra para o cinéfilo, já mais experiente, que conhece a história do cinema e observa as citações, os deslocamentos, as paródias. Os cânones já trabalhavam assim desde Os Caçadores da Arca Perdida, um filme que é que trabalha o tempo todo com a paródia de si próprio, uma forma de trabalhar em que se reafirma o esquema melodramático e ao mesmo tempo guarda uma certa distância em relação a ele, não para criticá-lo, mas para estabelecer com o espectador um pacto. Seria como dizer mais ou menos o seguinte: “tudo bem, isso já nos saturou, mas, de qualquer modo, ainda diverte”. É uma forma de reafirmar a ideia de que a indústria cultural tem como função apenas entreter, o resto não tem importância. Mas, quando o “resto sem importância” aparece, ainda está na mesma chave melodramática. Está havendo, sim, um deslocamento, disso não há dúvida, e essa proporção mudou. Cada vez mais, a atração visual, por tudo que hoje o digital permite, tem ganhado espaço. Mas isso já vem desde os anos 70. Aliás, um exemplo disso aconteceu em 1977, quando foi lançado Guerra nas Estrelas. Esse filme foi o grande ponto de inflexão que fez Hollywood recuperar o terreno no mercado internacional e os cinemas novos, os cinemas nacionais, da Europa, da América Latina, perderem espaço. Não é à toa que seja um filme que é ao mesmo tempo alta tecnologia e recuperação do mito. Porque a essa altura os trabalhos com os super-heróis, os quadrinhos, são avatares de uma produção mitológica, dos grandes heróis, dos semideuses. Essa mitologia é reciclada numa chave mais adolescente e não é, em nenhum momento, posta em discussão. Ela é potencializada pelo princípio da competência para criar um espetáculo industrial, que constrói uma experiência visual que encanta o espectador, e tudo mais que é trazido com essa competência vai ser alimentado por esse mesmo encanto.


O que muda na experiência do cinema, especialmente na experiência da cinefilia, o cinema estar deixando de ser uma experiência social, uma vez que a sala de cinema tem cada vez menos importância?

Confesso que isso me inquieta, porque seria um pouco conservador partir da hipótese de que é um problema, mas realmente é uma mutação muito grande, que tem como um dos principais resultados a perda do lado social de partilhar a experiência numa sala. E acho também que a saturação das imagens está gerando uma espécie de banalização, que de um lado está nas imagens e de outro está na sensibilidade das pessoas. No sentido de que a pessoa que está vendo um filme no computador sabe que há um empobrecimento brutal da experiência visual, e não importa o tamanho, não importa a resolução da imagem, se faz hoje filmes no celular. Há uma mutação muito forte no estatuto da imagem e é claro que o cinema, naquele sentido tradicional, aquela grande sala escura, aquele filme compartilhado continua, mas ele está virando uma espécie de espetáculo que seria como a ópera na tradição teatral. Não se vai todo dia, é uma coisa rara e é uma coisa que tem uma pompa, digamos assim. A quantidade maior é de situações em que se vê o filme no computador, no celular, no DVD. A situação da sala é uma entre outras. E uma outra coisa, e isso sim eu acho abominável, é que as pessoas usam seus celulares nas salas, e isso faz parte de outra questão em que não está só o cinema incluído, que é como as pessoas administram o seu cotidiano, as pessoas que estão plugadas o tempo todo, que têm uma ansiedade tal que não podem ir ao cinema e passar uma hora e meia “desligados”. Essa é uma questão que não atinge só o cinema, atinge tudo.


Esse novo lugar que a sala ocupa é um deslocamento importante o bastante para refutar a “Teoria do Dispositivo”? Pode-se entendê-la também fora das salas?

O dispositivo mudou. A “Teoria do Dispositivo” vale plenamente para a experiência da sala escura, da tela grande, que é um processo de imersão na imagem. Essa teoria depende de um tipo de formação da subjetividade que exige a ideia de que essa subjetividade é capaz de focar num objeto único e abstrair o resto. É o problema da atenção, porque hoje se tem uma subjetividade dispersiva, a tendência hoje do jovem é a dispersão, o “focar” é mais difícil. Há sempre a tendência de se estar fazendo, no mínimo, duas coisas ao mesmo tempo. O ver o cinema da maneira como era ou é visto em sala passa a ser uma experiência muito rara. Como pensar essa experiência, por exemplo, de quem vai ao cinema e passa o tempo todo no celular? É uma subjetividade que tem outro registro. Já não é mais aquele registro da imersão, do foco dirigido para aquela experiência da sala e da tela.


O aumento da sofisticação do aparato do cinema para tornar a experiência mais imersiva tem, de fato, esse efeito?

Existe aí o que eu chamaria de “sensorialismo”, que vem de novo naquela direção, de voltar ao cinema de 1900, que é o “cinema de atrações”, a ideia do fascínio e o encanto pela proeza da simulação. O espectador não está totalmente ligado na história, está ligado naquilo que o dispositivo exibe da sua competência de simulação, etc... É a tecnologia que vem à tona. As pessoas estão ligadas na atração, na pirueta, na pirotecnia, na explosão.

 

“A saturação das imagens está gerando uma espécie de banalização, que de um lado está nas imagens e de outro está na sensibilidade das pessoas. No sentido de que a pessoa que está vendo um filme no computador sabe que há um empobrecimento brutal da experiência visual”

 

 

Lisandro Nogueira é crítico de cinema e professor da UFG e Carolina Soares é jornalista