Ser ou não ser

Drama do jogador de futebol Roni, personagem da novela que virou mania no Brasil, recoloca no horário nobre a discussão sobre assumir a homossexualidade ou “ficar no armário”. Entre Suelen e Leandro, destino do coração do rapaz intriga platéia e garante suspense até o final
 

Para conseguir um contrato com o Flamengo, o jogador de futebol Roni precisava impressionar os olheiros do clube. Mas justamente nesse dia, em jogada decisiva – uma cobrança de pênalti – o atleta do Divino, time de futebol fictício de Avenida Brasil, falhou. A bola passou longe – bem longe – da meta. Se convertido, o gol poderia projetar o atleta nacionalmente. 
Na esteira do contrato com o clube de maior torcida do Brasil, Roni, interpretado pelo ator Daniel Rocha, proporcionaria uma vida de luxo à esposa, a periguete Suelen (Isis Valverde), com quem ele mantém um casamento de fachada. A negociação com o Flamengo tiraria o Divino Futebol Clube do vermelho e ainda encheria de orgulho o pai do rapaz,  o comerciante Diógenes (Otávio Augusto), ainda alheio a opção sexual do filho. 
Nesse novo contexto, porém, não haveria espaço para o goiano Leandro (Thiago Martins), colega de equipe por quem Roni nutre uma paixão. Para não se afastar dele, o jogador erra propositalmente o penal. Se ainda havia alguma dúvida, as cenas que foram ao ar na última semana deixaram claro os sentimentos do jovem em relação a Leandro vão além da amizade e do coleguismo. 
O dilema entre assumir a orientação sexual ou escondê-la, retratado na telinha atualmente por meio de Roni, já foi abordado em outras tramas (veja infográfico nesta página). Em pauta, um tema delicado, mas que pode ser menos traumático se o homossexual receber o apoio da família, pontua o antropólogo Camilo Braz, professor da Faculdade de Ciências Sociais da Universidade Federal de Goiás (FCS/UFG). 
Como Roni, quem está “no armário” necessita do respeito e do acolhimento da família. “Já há muitas dificuldades e violências no cotidiano para aqueles e aquelas que não se encaixam na heterossexualidade compulsória. Ao menos dentro de casa essas pessoas deveriam contar com algum tipo de apoio”, ressalta.
O especialista destaca que a metáfora do armário é fundamental para compreender a construção cultural da homossexualidade no Ocidente. Se adotar expressões sexuais diferentes do modelo reprodutivo ou procriativo é anormal,  por que assumir essa orientação  perante o mundo? Para o antropólogo, essa associação entre homossexualidade e anormalidade, além de um suposto  “terrorismo sexual”, em que a heterossexualidade seria obrigatória, podem explicar porque muitas pessoas preferem manter a opção sexual em sigilo. 
Assim, Braz frisa que nem sempre é possível exigir que as pessoas "assumam" sua homossexualidade. De acordo ele, é necessário levar em consideração que há outros fatores - como classe social, raça, gênero, idade, independência financeira, escolaridade e apoio familiar - que tornam se declarar gay mais ou menos doloroso.

Homofobia 
O comportamento hostil em relação aos homossexuais, a homofobia, também já foi retratado nas telenovelas. Xavier cita Insensato Coração (2010), de Gilberto Braga e Ricardo Linhares, também exibida no horário nobre da Rede Globo, como um exemplo de incentivo às  discussões. De acordo com ele, na última década houve um avanço no tratamento da temática gay (veja infográfico).
“A próxima vítima (1995) foi um marco, com o casal Sandrinho e Jeferson. Já em Insensato tivemos  uma abordagem mais aberta, com debates sobre assédio moral e homofobia”, avalia. O jovem Gilvan (Miguel Roncato) foi morto por um grupo de pitiboys enquanto encerrava o expediente do quiosque em que trabalhava. O motivo do brutal assassinato: o garçom era gay. 
Fora da teledramaturgia, o registro de casos de violência como esse têm sido frequente. Relatório sobre violência homofóbica no Brasil, o primeiro do tipo na América Latina, divulgado recentemente pela Secretaria Nacional de Direitos Humanos, mostrou que os órgãos federais receberam em 2011 uma média de 19 denúncias por dia de discriminação ou violência contra homossexuais. 
Segundo o levantamento,  70% dos entrevistados foram vítimas de algum tipo de preconceito ou estigmatização, sendo que 35% relataram a discriminação na escola e cerca de 20% se sentiram discriminados pela polícia. Em Goiás,  no mesmo período, 135 casos de violência foram registrados. Desse total, os relacionados com violência psicológica são maioria: 62 ocorrências. 
Braz  lembra que a violência física e simbólica contra gays, lésbicas, bissexuais, travestis e transexuais sempre existiu, seja no Brasil, seja em países tidos como modernos. O antropólogo reconhece que a difícil combater a homofobia, “tendo em vista o longo processo histórico de construção da homossexualidade como errada, imoral ou anti-natural”, mas ressalta que “o desafio precisa ser enfrentado, assim como todas as demais formas de desigualdade e opressão.”

O novo Orlandinho?

Ficou com a sensação de que já havia acompanhado algo parecido com a história de Roni e Suelen? O dèjá vu tem pertinência. A fórmula foi usada por João Emanuel Carneiro, autor de Avenida Brasil, em A Favorita (2009), sua novela de estreia no horário nobre da Rede Globo. Orlandinho (Iran Malfitano) era gay, mas ainda vivia “no armário”. 
Durante boa parte da trama ele foi apaixonado pelo malandro Halley (Cauã Reymond), mas acabou descobrindo que o rapaz não era gay e só estava de olho em sua conta bancária. Para manter as aparências, ele se casa com  Maria do Céu (Déborah Secco). No entanto, a união que deveria ser de fachada acaba se consumando e a moça fica grávida. No final da novela, Orladinho se rende aos encantos de Céu e o casal termina junto, cuidando do filho. 
O desfecho que “heterossexualizou” Orlandinho despertou a ira de entidades como a Associação Brasileira de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais  (ABGLT), que condenou a  opção do autor.  Autor do Almanaque da Telenovela Brasileira, Nilson Xavier  torce para que João Emanuel Carneiro dê ao jogador um destino diferente. 
“Se ele ficar com o Leandro pode ser um marco para a abordagem desse tema na teledramaturgia brasileira, potencializado pela grande audiência de Avenida Brasil”, avalia.  Ele admite, porém, que a popularidade do casal “Ronielen”, apelido usado pelos fãs da novela que torcem para o final feliz do jogador e da perigueti, pode impedir esse desfecho.

Debate
Se optar por fazer de Roni o novo Orlandinho, João Emanuel Carneiro pode perder a chance de trazer à baila uma discussão importante, sobretudo porque o personagem de Avenida Brasil está em um meio onde homossexualidade é um assunto pouco discutido: o futebol. Quem não se lembra do técnico Hélio dos Anjos, na sua passagem pelo Goiás, em 2009, afirmar que não trabalhava com homossexuais? 
O caso mais emblemático talvez seja do jogador inglês Justin Fashanu, o primeiro profissional da série A que admitiu ser gay. Oito anos depois, em 1998, vivendo conflitos com a própria imagem, com a família e com o irmão John Fashanu, também jogador profissional que não aceitava ser ridicularizado pelos colegas, ele se suicidou.

Teledramaturgia colorida


 1995

 A próxima vítima: Sandrinho e Jeferson
Sandrinho (André Gonçalves) vivia para cima e para baixo com Jeferson (Lui Mendes), mas nenhum dos dois admitia que eram namorados por medo da reação dos familiares. Em uma conversa franca com a mãe, Ana Marcela (Susana Vieira), Sandro contou que o colega era "muito mais do que um amigo". No final, driblaram os preconceitos e terminaram juntos. Na vida real, André Gonçalves chegou a sofrer agressões por causa da orientação sexual do personagem que interpretava.

1998

Torre de Babel: Leila e Rafaela
Apesar de discreta, a relação gay entre ex-modelo Leila (Silvia Pfeifer) e a estilista Rafaela (Christiane Torloni), sócias em uma boutique, teve péssima aceitação, tanto do público quanto dos publicitários, que não queriam suas marcas associadas a homossexualidade. O casal morreu logo no começo da trama, na explosão do Shopping Tropical Towers.

2002/2003

Mulheres Apaixonadas: Clara e Rafaela
Ao contrário do casal de Torre de Babel, Clara (Aline Moraes) e Rafaela (Paula Picarelli) conquistaram o público e tiveram um final feliz na novela de Manoel Carlos. Antes, porém, elas enfrentaram as perseguições da mãe de Clara, que não aceitava o relacionamento das garotas, e da recalcada Paulinha (Ana Roberta Gualda), colega de classe que não perdia a oportunidade de implicar com o casal.

Os pais de Ágata 
A questão da homossexualidade também está presente na vida do elenco de Avenida Brasil. Que o diga a atriz mirim Ana Karolina Lannes (11 anos). A garota interpreta Ágata, filha da vilã Carminha (Adriana Esteves), e sofre com os maus-tratos da mãe. Fora da telinha, a menina é criada por dois pais:  o comissário de bordo Fábio Lopes (35), seu tio por parte de mãe, que tem a guarda há sete anos, e seu companheiro, o dermatologista João Paulo Afonso, 30.  Ana Karolina não conheceu o pai e a mãe da atriz morreu quando ela tinha apenas 4 anos.

2005

América: Junior e Zeca
A trama escrita por Glória Perez inovou ao contar a trajetória de Junior (Bruno Gagliasso) para descobrir se era mesmo homossexual. Ele se casou com Elis (Silvia Buarque) e teve um affair com Kerry (Marisol Ribeiro).  Filho único, Junior também enfrentou as pressões da mãe, a viúva Neuta (Eliane Giardini), que cobrava netos. Apesar disso, o rapaz encerrou a trama com o peão Zeca (Erom Cordeiro). O beijo do casal, aguardado com ansiedade pelo público, chegou a ser gravado, mas não foi levado ao ar.

2004/2005

Senhora do Destino: Jenifer e Eleonora
A médica Eleonora (Mylla Christie) se apaixona pela socialite Jenifer Improtta (Bárbara Borges),  que já havia se relacionado com homens e relutou bastante até assumir que estava gostando de outra mulher. No final da novela, Eleonora e Jenifer passaram a  viver juntas e até adotaram uma criança: o pequeno Renato, um bebê que havia sido abandonado na maternidade onde Eleonora trabalhava.

2010

Amor e Revolução: Marina e Marcela
A trama de Tiago Santiago, produzida pelo SBT e ambientada em plena Ditadura Militar, colocou em horário nobre o beijo gay, ainda um tabu na concorrente Globo.  Marina (Giselle Tigre), dona do jornal “O Brasileiro” e Marcela (Luciana Vendramini), uma advogada conceituada, se beijaram pela primeira vez uma semana após o Supremo Tribunal Federal (STF) reconhecer a união homoafetiva. Outras cenas românticas entre o casal foram tiradas da novela porque pesquisa realizada pelo SBT mostrou que o relacionamento incomodava "a maioria das famílias brasileiras".

2010

Insensato Coração: Hugo e Eduardo
Depois de terminar seu namoro com Paula (Tainá Müller), Eduardo (Rodrigo Andrade) conhece o professor Hugo (Marcos Damigo), por quem sente uma atração. Eles acabam se relacionando, mas precisam enfrentar a fúria da mãe de Eduardo, Sueli (Louise Cardoso). Apesar de ter um quiosque frequentado por gays, ela fica indignada ao saber que o filho está se relacionando com outro homem. Sueli, volta atrás, resolve apoiar o romance do filho e se torna uma espécie de defensora da causa gay.

2007/2008

Duas Caras:  Bernardinho e Carlão
Bernardinho (Thiago Mendonça) só saiu do armário graças à madrasta Amara (Mara Manzan), que armou para flagrá-lo na mesma cama que Carlão (Lugui Palhares). O dono do  restaurante Castelo de São Jorge aproveitou a deixa e revelou sua orientação sexual. O casal, que chegou a formar um triângulo amoroso com Dália (Leona Cavalli), ganhou a simpatia do público, principalmente depois de cenas com declarações de amor.