Todos contra o cigarro

 

Símbolo de glamour, o fumo se transformou em um dos maiores inimigos da saúde e é alvo de medidas restritivas quanto ao seu uso, divulgação e comercialização, como a lei antifumo, em vigor na capital há mais de três anos

 

Aos 13 anos, a aposentada Maria Pereira Ro­sa (70 anos) deu suas primeiras tragadas. O contato diário com uma colega de trabalho fumante, diz ela, foi fundamental para que o hábito se transformasse em um vício que já dura 57 anos.  Nesse período, ela tentou parar de fumar pelo menos dez vezes. No intento mais bem-sucedido, conseguiu ficar um ano e quatro meses longe do tabaco.
“Fui diagnosticada com enfisema e tomei alguns remédios que me ajudaram e ficar sem o cigarro, mas os medicamentos eram caros”, relembra. Ativa, ela cuida da casa sozinha, além de praticar hidroginástica e caminhada e  diz ser uma “fumante anti-cigarro”, pois é contra o uso do produto em locais públicos. 
E mais: quer se livrar do vício. “Não sei o que falta para isso acontecer, é mais forte do que eu”, desabafa Maria, que conta com o apoio das quatro filhas, nenhuma fumante, para abandonar o tabaco. Na maioria das vezes, porém, a insistência da família, assim como as propagandas que estampam as caixas de cigarros passam despercebidas, “entram por um ouvido e saem pelo outro”, admite. 
“As fotos até me deixam 'baratinada', mas viro a caixa e fica tudo bem”, explica a aposentada, que faz parte dos 11% de goianienses maiores de 18 anos que fumam, segundo pesquisa feita pelo Ministério da Saúde por meio da Vigi­lân­cia de Fatores de Risco e Pro­te­ção para Doenças Crônicas por Inquérito Telefônico 2011 (Vigitel). O estudo mostrou ainda que 14,8% dos brasileiros fumam.

Vício
A dificuldade para deixar o tabaco é justificada pela dependência que a nicotina provoca no cérebro, “que passa a trabalhar em função dela”, destaca o médico Luis Gonzalo Gomes Barreto, professor do departamento de Medicina da Pontifícia Univer­sidade Católica de Goiás (PUC Goiás) e pós-graduado em  Dependência Química pela Universidade Federal de São Paulo (Unifesp).
Gonzalo, um colombiano radicado em Goiânia há 30 anos, é coordenador do Am­bu­latório de Alcoolismo e e outras dependências químicas do Hospital das Clínicas da UFG (HC/UFG), pontua que o cigarro deixa um rastro de destruição no organismo. Afeta desde a boca ao sistema urinário, atingindo também a circulação. 
O enfisema, doença que afetou a aposentada Maria Pereira Rosa, é também uma das consequências do tabaco. “Nesse caso, o ar entra e sai do corpo, mas não é absorvido. O paciente, portanto, pode chegar a falecer por falta de oxigênio”, detalha Gonzalo. Os problemas circulatórios provocam, em alguns casos, a doença de Berger, apodrecimento de pés e mãos que leva à amputação desses membros. 
Os danos que o cigarro causa à saúde transformaram o produto, símbolo de glamour e virilidade (leia correlata), em um dos maiores vilões da saúde, combatido por autoridades diversas, como a Organização Mundial da Saúde (OMS). Dados da entidade mostram que o cigarro é a segunda maior causa de mortes no mundo: um em cada dez óbitos registrados é provocado pelo fumo.

Legislação
O Brasil é um dos países com políticas mais duras contra a tabagismo. Além da extinção dos fumódromos, propagandas, exceto nos pontos de venda, são proibidas, assim como expressões que podem mascarar o feito na nicotina, como “suave, light, leve, baixos teores e outros" (veja quadro comparativo).
Na capital, vigora lei antifumo que proibi fumantes de acender cigarros em lugares fechados. Em três anos, porém, a iniciativa não rendeu muitos efeitos práticos: as reclamações e aplicações são raras. Em 2011, segundo dados da Vigilância Sanitária de Goiânia,  responsável pela fiscalização, das 1.300 de­úncias registradas pelo órgão apenas dez tinham relação com o fumo. 
A mesma regra começou a valer para todos os municípios goianos neste mês, com a publicação no Diário Oficial de Goiás da Lei Antifumo, sancionada em julho pelo Governador Marconi Perillo. Segundo a Secretaria Estadual de Saúde de Goiás (SES-GO), cada cidade definirá as formas de fiscalização.

Ex- fumante
A dependência à nicotina é definida pela pedagoga Neide Rosa de Mesquita (45 anos) como uma ligação quase maternal. Há nove anos, depois de um Acidente Vascular Cerebral (AVC) provocado pelo tabaco, ela precisou abandonar os 40 cigarros que fumava diariamente. “Perdi uma mãe e ganhei 15 quilos”, compara, lamentando o aumento de peso. 
Deixar o vício não foi fácil e ela diz ter conseguido graças ao apoio do esposo e dos três filhos.  O grau de dependência era tão forte que durante um mês, mesmo com o lado esquerdo paralisado, ela seguiu tragando. Desde 2003, porém, ela não tem nenhum contato com cigarro.

Do glamour ao ostracismo

Já imaginou ver o bom velhinho fumando e oferecendo cigarros? Que tal um médico recomendando tabaco aos pacientes ou um bebê aconselhando a mãe a reforçar a marca preferida de fumo? Esses exemplos, um tanto insólitos atualmente, figuraram entre os principais argumentos da propaganda tabagista entre as décadas de 1920 e 1950. 
Segundo professores da Universidade de Stanford, nos Estados Unidos, essas peças  deixam claro como a indústria do tabaco utilizou informações falsas para camuflar os problemas de saúde ocasionados pelos seus produtos.  Eles compilaram imagens  dessa época de ouro do cigarro, que viajam o mundo todo em exposições itinerantes. (veja exemplos no quadro) 
Mas os antitabagistas não precisam mais ficar com o cabelo em pé por causa das propagandas. Os tempos mudaram. E como! “O cigarro foi do glamour ao ostracismo”, sentencia o coordenador do curso de Relações Públicas da Faculdade de Comunicação e Bibliote­co­nomia da Univer­si­dade Fede­ral de Goias (Fa­comb/UFG), Milson Braga.

Esquecimento
O cigarro, outrora símbolo de sofisticação, liberdade e virilidade, foi reconhecido pela opinião pública e pelas autoridades sanitárias como um dos maiores vilões  da saúde (leia matéria nesta página). Para Braga, a própria mídia compreendeu “que não dá para associar cigarro a bem-estar.” Prova disso é que o número de personagens  fumantes nas novelas é quase zero.
Nas raras aparições, como ocorreu recentemente com Manoela (Guilhermina Guinle) em Guerra dos Sexos (Rede Globo), provocam comoção, principalmente nas redes sociais. No entanto, o tabaco foi banido da mídia, mas não da sociedade civil. “A geração dos anos 1960/70, fruto da época do glamour, ainda é fumante ativa”, lembra o professor.  
Os remanescentes – que não são poucos – e os novos consumidores do produto são motivo de um cabo de guerra interminável entre órgãos de saúde e a indústria do fumo. Porém, impedir a produção do cigarro, diz Braga, implicaria em impactos econômicos. Entre eles, o fechamento de fábricas e ex­clusão de postos de trabalho.

Mercado
O Brasil é o segundo maior produtor de tabaco do mundo, atrás da China. Apesar da queda do número de fumantes, que já são menos de 15% da população, a indústria de cigarro vai muito bem, obrigada. Dados da  Associação dos Fumicul­tores do Brasil (Afulbra) apontam que a freada no consumo não impactou negativamente o faturamento do setor. 
Em 2009, o segmento faturou R$ 16,944 bilhões. No ano seguinte, o ganho foi um pouco maior: R$  R$ 16,992 bilhões. A carga tributária paga também é grande: 78,74%, e impede que medidas mais drásticas sejam adotadas. “O fumante é quem sempre sai perdendo”, analisa o professor da UFG.
Representantes da Orga­nização Mundial de Saúde (OMS) denunciaram, neste ano, interferência da indústria do tabaco em países como Austrália, que pretender adotar um novo pacote padrão de cigarros. De acordo com a nova legislação, as empresas serão proibidas de utilizar cores ou desenhos atrativos em torno de seus logotipos. Pelo jeito, o cabo de guerra deve continuar. E no mundo todo.

Fonte: Tribuna do Planalto