Quando o preconceito mata

Assassinato em Recife do jornalista goiano Lucas Fortuna alerta País para violência contra minorias: 300 mortes este ano...

“Vou descer só para comprar um cigarro e já vou subir para dormir”, disse o jornalista Lucas Cardoso Fortuna, 28, por telefone, ao companheiro Héverton Vieira Barros, 30, enfermeiro. Era em torno de 20 horas de sábado, dia 17. Fortuna estava em Cabo de Santo Agostinho, a 40 quilômetros de Recife (Pernambuco) para atuar como árbitro em um campeonato de vôlei. Barros, na casa dos pais, em Goiânia. Durante o dia, a cada intervalo de jogo Fortuna ligava para o companheiro, mas a conversa que tiveram à noite viria a ser a última.
Na manhã de domingo, dia 18, Fortuna teria que trabalhar. Seria a primeira partida em que ele atuaria como árbitro nacional, segundo o pai, Avelino Fortuna, função que o jornalista aspirava há algum tempo. O desejo dele, porém, não foi concretizado. Os colegas não o viram no quarto do hotel. Decidiram fazer uma busca nas proximidades. Foi na praia de Calhetas, ali perto, que o encontraram. Vestido apenas com uma cueca, com sinais de espancamento e ensanguentado, morto. 
Em pedras próximas ao local onde Fortuna foi encontrado estavam a carteira e camiseta dele. Nem dinheiro ou documentos foram levados, segundo Avelino. O pai, que foi à Recife reconhecer o corpo do filho, diz que ele estava com a face deformada, costas com arranhões profundos e pés muito machucados. 
O companheiro há quatro anos de Fortuna diz ter absoluta certeza de que foi um crime motivado por homofobia. “Os fatos falam por si, a forma que ele foi encontrado. Felizmente o Lucas era uma pessoa da militância LGBT [Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais e Transgêneros], muito influente politicamente, muito querido e bem articulado e espero que isso, que essa formação acadêmica que ele teve, ajude a ressaltar ou enfatizar mais esse crime para que outros não aconteçam.” 
Fortuna foi um dos fundadores do Grupo Colcha de Re­talhos da Universidade Federal de Goiás (UFG), do Grupo Eles por Eles e do Encon­tro Nacional Universitá­rio da Diversidade Sexual (Enuds), além de diretor das ONGs: Associação Desportiva de Gays, Lésbicas e Transgê­neros (ADGLT) e Associação Goi­ana de Gays, Lésbicas e Trans­gêneros (AGLT). Ele também ajudou a organizar várias paradas do Orgulho LGBT de Goiás e lutava pela aprovação do Projeto de Lei Comple­mentar (PLC) 122. A matéria, em tramitação no Congresso, define a homofobia como crime. O mesmo já ocorre no caso da discriminação por motivos de cor, raça, etnia, nacionalidade ou religião. 
Laudo preliminar sobre a causa da morte do jornalista foi divulgado pelo Instituto Médico Legal (IML) do Recife na segunda-feira, dia 19. Nele é apontado que Fortuna morreu por afogamento. O documento também teria apontado a identificação de duas facadas na vítima, uma no pescoço e outra perto da orelha e que ele teria sido espancado. A investigação sobre o caso é realizada pelo Departamento de Homicídios e Proteção à Pessoa (DHPP), no Recife. Até sexta-feira, dia 23, a delegada responsável pelo inquérito, Gleide Ângelo, disse ao G1 Pernambuco, não haver novidades do caso. No dia 21, o Disque-Denúncia Pernambuco divulgou a oferta de R$ 3 mil como recompensa para quem repassasse informações sobre a morte do jornalista. As denúncias podem ser feitas pelo site: http://www.disquedenunciape.com.br, ou pelos telefones: (81) 3421-9595 ou (81) 3719-4545.
Um dia antes de Fortuna ter sido encontrado morto, o corpo de outro homossexual, de 27 anos, foi descoberto na mesma cidade, na praia de Gaibu, segundo foi divulgado pelo ativista do grupo pernambucano Leões do Norte Luciano Freitas. A morte desse teria sido provocada por pedradas
Até o dia 23 de novembro, levantamento do Grupo Gay da Bahia (GGB) contabilizava em torno de 300 mortes neste ano por motivos homofóbicos, 14 delas neste mês. Os dados divulgados no blog Quem a homofobia matou hoje? (http://homofobiamata.wordpress.com/) apresentam que do total de homicídios, 60% das vítimas são gays, 37% travestis, e 3% lésbicas. Entre os estados onde o crime teria ocorrido, São Paulo liderava com 41 ocorrências, seguido por Pernambuco, com 31, e Bahia, com 27. Goiás aparece com nove casos. Desses, seis foram assassinatos de travestis, quatro deles em Goiânia e dois em Rio Verde; os outros três são de gays, um em Goiânia e os outros em São Miguel do Araguaia e Jataí. 
Relatório sobre a Violência Homofóbica no Brasil, referente ao ano de 2011, realizado pelo governo federal, aponta que de janeiro a dezembro do ano passado, foram denunciadas ao poder público 6.809 violações de direitos humanos contra LGBTs, envolvendo 1.713 vítimas e 2.275 suspeitos. O levantamento revela uma média de 3,97 violações sofridas por cada uma das vítimas.

Adolescente agredida
Em Bela Vista de Goiás, no dia 12 de novembro, uma adolescente de 15 anos, lésbica assumida, foi agredida dentro da sala de aula de uma escola estadual por uma colega acompanhada da mãe e avô. A motivação teria sido homofóbica. 
A morte de Fortuna, aliada ao recente episódio da agressão à adolescente, acirraram em Goiás as discussões acerca da homofobia. Na segunda-feira, dia 19, a presidente da Comi­s­são de Direito Homo­afetivo (CDhom) da seccional goiana da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB-GO), Chyntia Bar­cellos, divulgou uma nota expressando repúdio e indignação pelos dois casos. 
Segundo a advogada, no dia 13, o presidente da Ordem, Ophir Cavalcante, e a ministra da Secretaria dos Direitos Humanos da Presidência da República, Maria do Rosário Nunes, celebraram acordo de cooperação técnica visando à adoção de providências conjuntas de enfrentamento à homofobia e em defesa da garantia dos direitos humanos da população LGBT. Os termos do acordo prevêem a criação de comitês para enfrentamento de práticas homofóbicas. Esses comitês receberiam da OAB incentivo e apoio.
“Sem dúvida, é uma ação importante, mas não suficiente. É preciso haver a urgente aprovação do PLC 122/2006, juntamente com a aprovação e criação de projetos estaduais e municipais que criem leis contra a homofobia e delegacias especializadas no Estado de Goiás”, defende Chyntia. Segundo ela, neste ano, a CDhom procurou mapear os casos de homofobia do Estado junto à Secretaria de Segurança Pública do Estado de Goiás e concluiu, junto com a Secretaria de Políticas para Mulheres e Promoção da Igualdade Racial (Semira), a necessidade de se incluir a orientação sexual da vítima nos boletins de ocorrência do Estado. “É uma medida simples, mas que pode contribuir na apuração dos casos.”

Autoridades, líderes sociais e amigos exigem justiça

Além da OAB-GO, outras entidades, instituições, políticos, familiares e amigos, de Goiás e outros estados brasileiros, se manifestaram, especialmente por meio das redes sociais e páginas na internet, sobre o assassinato do jornalista goiano Lucas Fortuna (veja no quadro). Na página do ativista do movimento LGBT no Facebook (www.facebook.com/lucaseagv) foram deixados inúmeros posts.  Alguns amigos de Lucas Fortuna adicionaram o nome dele em meio aos seus como identificação no Facebook. 
O Grupo Eles por Eles, um dos que Fortuna ajudou a criar, em 2000, promoveu na se­gunda-feira, 19, junto com a Se­mira, um manifesto na Praça do Bandeirante, em Go­i­­â­nia. O movimento pediu a apro­vação da PLC 122. “A ge­n­te fica até com medo de sair de casa tamanha insegurança e violência”, diz o presidente do grupo, Odílio Torres. 
Torres diz que o projeto enfrenta dificuldades no Senado com a bancada evangélica. Amiga há dez anos de Fortuna, Elaine Gonzaga, jornalista e integrante do grupo Colcha de Retalhos, informa que no dia 27 a militância LGBT vai à Brasília acompanhar audiência pública para discutir projeto do deputado federal João Campos (PSDB-GO) que permite a terapia de cura de homossexuais, o que é proibido hoje pela Resolução 01/199 do Conselho Federal de Psicologia (CFP). 
O psicólogo Mayk Diego Gomes da Gloria, coordenador do Grupo de Trabalho de Sexua­lidade e Gênero do Conselho Regional de Psicologia 9ª Região – Goiás/Tocantins, afi­r­ma que a categoria está mobilizada para que o projeto de Campos seja arquivado e a resolução do CFP, que proíbe tratar a homossexualidade como doença, reafirmada. 
Em relação à homofobia, o psicólogo diz não existir uma causa que possa explicar todas as atitudes e sentimentos negativos em relação a pessoas não heterossexuais. Segundo ele, existem fatores variáveis. Entre eles, a dificuldade de se entender a diversidade. “Se sai dessa linha hétero é considerada uma sexualidade dissidente e, se sai da norma, causa a estranheza do outro”.
Mas, se Lucas Fortuna “chocou” alguns, como dizem os amigos, ao fugir do padrão estabelecido pela sociedade, inclusive usando saia às vezes, em sua despedida, homens vestidos de saia, inclusive o pai do jornalista e o irmão único dele, Hugo Fortuna, 25, foram “muito bem” recebidos na igreja de Santo Antônio de Goiás, onde foi celebrada a missa de corpo presente (21).
“O padre fez uma linda homenagem ao Lucas, falando que todos nós temos um pouco de culpa, pois, no cotidiano, cometemos atos de opressão e de preconceito,” disse o o assessor jurídico do Ministério Público de Goiás Lucas Carvalho, amigo do jornalista.

Fonte: Tribuna do Planalto