Espaços democráticos do saber

Bibliotecas comunitárias cumprem importante papel social ao democratizar o acesso da população aos livros e à internet...

Começou com uma reportagem no jornal. Em junho de 2006, a ex-secretária do programa Fome Zero, Iara Falcão, leu uma matéria sobre uma biblioteca comunitária criada por catadores de lixo, que foram juntando os livros recolhidos por eles em sua labuta diária na cidade de São Paulo.
Foi aí que ela teve a ideia de contribuir para melhorar o processo de aprendizagem das crianças de um dos bairros mais carentes da periferia de Goiânia, o Parque Tremendão. Desde 2003, ela já participava de um projeto desenvolvido por psicólogas e pelas irmãs São José para ajudar as mulheres da região, fornecendo atendimento psicoterapêutico gratuito a elas.
Mas, depois de ler essa reportagem, Iara acreditou que era possível fazer mais pelos filhos dessas mulheres, pois eles recebiam um ensino precário e não tinham acesso aos livros e à cultura. Logo, ela começou a escrever para os amigos pedindo ajuda e, claro, livros!
Assim nasceu a biblioteca comunitária Descobrindo a Criança, nome dado pelas próprias mães das crianças ao espaço dedicado aos jovens da região. Lá, tudo é fruto de doação, desde as obras literárias até o mobiliário. “Eu recebi a ajuda de um amigo de São Paulo que mandou mais de 40 livros. Teve gente pobre que deu dinheiro e a nós compramos primeiro aqueles livrinhos de R$1. Tudo o que está aqui foi comprado ou doado. A pintura das paredes é colaboração dos pais que vinham ajudar e arrumar alguma coisa”, recorda Iara.
Hoje, a biblioteca já conta com mais de 600 títulos e ainda dispõe de três computadores, uma impressora, teatro de fantoches e diversos brinquedos pedagógicos. Mas o espaço também é cedido pela comunidade católica Santa Paula Frassinetti. De acordo com Iara, o único recurso financeiro que eles recebem é das irmãs São José. “Lá dos Estados Unidos elas mandam uma ajuda para manutenção do prédio”, conta. 
As bibliotecas comunitárias disponibilizam livros e outros produtos culturais que seriam inacessíveis às comunidades mais carentes e, por isso, exercem um papel fundamental na sociedade, conforme destaca a professora de Biblio­te­conomia da UFG (Universidade Federal de Goiás), Eliany Alvarenga. 
Segundo ela, esses espaços são “um apoio ao processo de educação formal, um espaço a mais de informação e de atividades culturais. Hoje uma biblioteca constitui um grande centro cultural e nas comunidades carentes a dificuldade é grande porque os governantes não percebem que isso não é uma prioridade, é fundamental.”
Não é a toa que as bibliotecas comunitárias costumam oferecer, além dos livros, atividades que ajudam a melhorar a realidade local. Na Biblioteca Descobrindo a Criança, por exemplo, os trabalhos com as crianças incluem, além dos habituais empréstimos de livros, incentivo à socialização e produção de textos e atividades culturais como teatro e dança.
Atualmente, a biblioteca ainda conta com a ajuda de uma voluntária: Leiciane Alves da Silva, 18, que foi a primeira e uma das mais assíduas frequentadoras do local. A garota acabou se tornando professora das crianças do bairro e tem ajudado na alfabetização e desenvolvimento escolar de muitas delas. “A primeira proposta era só pegar o livro e depois devolver. Mas quando chegavam crianças que queriam ler e não sabiam, eu falei: vou ensiná-las a ler! Aí eu passei a trabalhar com elas. Às vezes eles precisam usar o computador para fazer trabalhos escolares e nem todos tem acesso, pois muitos deixam de fazer por não terem condição de pagar. Então eles vem para cá e nós fazemos juntos”, diz Leiciane.

Vidas transformadas
A Descobrindo a Criança também mudou completamente a vida dos irmãos Letícia Moraes Almeida, 14, e Felipe Moraes Almeida, 10. Aos 8 anos Letícia mal sabia ler e foi através da biblioteca que ela começou a desenvolver o hábito e a paixão pela leitura, o que a ajudou nos estudos.
O mesmo aconteceu com Felipe, que aprendeu a ler dentro da biblioteca, aos 5 anos. Os livros fizeram tanto sucesso em casa que conquistaram até a família das crianças. “Meu pai montou uma minibiblioteca dentro de casa. Aí quando eu entro de férias ou não venho, ele me manda ler”, conta Letícia, achando graça da situação. 
Resultados semelhantes podem ser vistos no Setor Madre Germana II, em Aparecida de Goiânia, onde funciona, desde o mês de abril deste ano, a Biblioteca Comunitária Ler é bom! A iniciativa partiu da blogueira Carolina Lima, que já participava das atividades do Posto de Assistência da região, o Maria de Nazaré, administrado pelo Centro Espírita Fraternal.
A ideia de criar a biblioteca surgiu da necessidade das crianças que moram próximas ao local. “É um pessoal muito carente, em todos os sentidos, desde a atenção até bens materiais. São crianças criadas só pelas mães ou pelas avós e filhos de pais usuários de drogas. O crack está invadindo esse pedaço e quando fazemos uma dinâmica sobre o que eles querem ser no futuro, tem criança que fala que quer ser ladrão”, afirma Alessandra Lima Biet, coordenadora da biblioteca.

Parcerias e doações
Foi através da divulgação no blog de Carolina e com a ajuda de amigos que a biblioteca foi angariando doações e montando seu modesto acervo, que hoje conta com 250 títulos. Além disso, ela reuniu um grupo de colaboradoras e passou a oferecer atividades às crianças, começando pelo café da manhã. “Primeiro nós recolhemos o pão que as panificadoras doam e preparamos o café, servido às 8h30. E depois dividimos as turmas: uma de adolescentes e duas de crianças e damos palestras a eles”, comenta ela. 
A voluntária Cássia Lima lembra que inicialmente as palestras tinham cunho religioso, mas depois o foco passou a ser mais amplo. “Nós percebemos uma grande necessidade de conversar sobre assuntos básicos, como higiene pessoal, drogas, sexualidade, autoestima, etc. Nos preocupamos em falar mais sobre isso do que sobre a religião mesmo.”
O resultado de tanta dedicação pode ser percebido no sorriso tímido de Yasmin Jamille Sousa, 8. Segundo ela, depois que passou a frequentar o espaço, a escrita na escola melhorou bastante. Para as irmãs Yasmin Lopes, 13, e Isabela Lopes, 9, não foi diferente. 
A primeira se apaixonou pelos clássicos literários e a segunda pelos livros infantis. A consequência de tanto amor foi o desenvolvimento da escrita e da leitura em sala de aula.

“Consciência política”

Apesar da grande demanda da população carente, as bibliotecas comunitárias ainda são iniciativas raras no Brasil. “É muito difícil mobilizar as pessoas a se interessarem para os problemas da comunidade. E, de repente, um grupo fica preocupado e faz o que deveria ser uma ação do governo. Então é uma coisa maravilhosa, de consciência política absoluta e raríssima no Brasil”, ressalta Eliany Alvarenga, professora de Biblioteconomia da UFG (Universidade Federal de Goiás). 
A grande maioria das bibliotecas comunitárias é sustentada por doações e consegui-las não é nada fácil. Criatividade, empenho e determinação são importantes ingredientes na conquista de donativos, que podem ir muito além dos livros.
A idealizadora da biblioteca Ler é bom, Carolina Lima, por exemplo, realizou uma campanha para levar as crianças ao cinema, emoção que elas ainda não conheciam. Ela espalhou cartazes pela cidade, fez propaganda em blogs e redes sociais e conseguiu proporcionar uma aventura única às crianças do Madre Germana II, em Aparecida de Goiânia.
Agora, ela se dedica à campanha de Natal das crianças. Movida pelo entusiasmo e a vontade de ajudar, Cássia já planeja outra atividade para janeiro de 2013, que é a arrecadação de material escolar.
Em pouco mais de sete meses de funcionamento, a biblioteca Ler é bom tem várias necessidades: faltam cadeiras, mesas, estantes e materiais didáticos básicos, além de livros. 
Já a biblioteca Descobrindo a Criança, no Parque Tremendão, em Goiânia, tem seis anos de vida e está bem melhor estruturada, mas ainda precisa de uma mesa adequada para os computadores. Outra ajuda importante vem do trabalho voluntário. “O que nós sonhamos mesmo é com a chegada de pessoas com disposição para estar lá, para trabalhar conosco e desenvolver atividades na biblioteca”, resume Iara Falcão, fundadora e responsável pela biblioteca. 
O pedido está feito. Falta agora candidatos para aceitarem esse desafio.

Fonte: Tribuna do Planalto