Porta para a liberdade

Educação e qualificação profissional são fundamentais para a ressocialização da população carcerária, alertam especialistas

Após meses ou até anos vivendo sob cárcere privado, as portas se abrem e do outro lado dos altos muros de concreto, um vasto mundo se apresenta. Quando a privação da liberdade individual deixa de ser uma realidade na vida de um presidiário, a sociedade se encontra diante de um grave perigo: a reincidência do ex-detento no mundo do crime. 
Embora distante dos discursos eleitorais e das promessas de campanha, a ampliação da oferta de trabalho e de educação nas penitenciárias brasileiras pode dar aos presidiários as ferramentas necessárias para a reintegração na sociedade, pois como ressalta a diretora executiva da Fundação dr. Manoel Pedro Pimentel, Lúcia Casali, a inserção social só é possível para a pessoa que tem educação e condições de gerar renda para sobreviver com um mínimo de dignidade. 
“Se isso vale na vida aqui fora, também vale para quem está preso. Você precisa dessas duas ferramentas quase como muletas para permitir que essas pessoas também caminhem na vida quando ganharem a liberdade”, pontua. 
“Quando a pena deixa de ser apenas uma revanche ou vingança privada, a sociedade ganha com a pacificação social. Da mesma forma, o reeducando ganha porque a educação e o  trabalho devem ser impostos de modo a conscientizar, restaurar, e com isso apresentar chances de alcançar a inclusão social”, destaca a advogada e educadora Conceição Cinti. 
Reeducando é o termo usado por educadores e gestores da Educação Penitenciária para nomear os sentenciados que utilizam o tempo no cárcere para estudar. Ao se tornarem reeducandos, deixam de ser apenas detentos e passam a ser aprendizes de um novo modo de enxergar o mundo e, consequentemente, de se relacionar com ele.
O gerente de Reintegração e Módulos de Respeito da Agência Goiana do Sistema de Execução Penal (Agsep), Édson Póvoa, acredita que o acesso à educação dá ao presidiário a chance de enxergar a vida sob uma nova perspectiva. “Oferecendo o estudo, você oferece a ressocialização como pessoa e, a partir disso, ele vai ter conhecimento do que fez e do que tem que fazer para melhorar”, pontua ele. 
O juiz da 1ª Vara Criminal de Goiânia, Jesseir Coelho de Alcântara, também é favorável ao trabalho e estudo dentro das penitenciárias. 
Ele explica que a chance de um ex-presidiário cometer novo ilícito é muito alta, daí a importância de novas perspectivas de trabalho ao deixar o cárcere. “Caso tenha acesso a cursos profissionalizantes dentro do presídio, o sujeito pode até sair empregado em uma parceria com empresas que poderiam contratar essa mão de obra especializada”, considera.

Alternativa
Além do risco da reincidência, existe ainda a questão da superlotação dos presídios brasileiros. Dados fornecidos pelo Departamento Penitenciário Nacional já apontavam que, em 2010, o Brasil tinha um número de presos 66% superior à sua capacidade de abrigá-los. 
O que fazer, então, diante da realidade constante da superlotação? A construção de novos presídios pode ser uma das soluções, mas não é suficiente. 
A Lei de Execução Penal nº 7.210 pode representar um dos caminhos na luta contra a superlotação, pois prevê que a cada 12 horas de trabalho ou frequência escolar, o preso tenha um dia reduzido na pena. 
Na opinião de Alcântara, o trabalho e o estudo podem servir como alternativa para o esvaziamento dos presídios. “Como nas penitenciárias, de modo geral, ainda não tem um lugar para os detentos trabalharem, a própria Justiça dá liberdade para pessoa sair, trabalhar, voltar e se apresentar. É o mesmo caso do estudo: o sujeito vai estudar e comprovar que está fazendo um curso, mesmo que seja um curso profissionalizante para ter a remissão da pena. Qual o intuito disso? Além de não manter a ociosidade, dá uma esvaziada nos presídios”, acrescenta o juiz. 
A professora do curso de Psicologia da Universidade Federal de Goiás (UFG), Mari Lúcia Pereira, também enxerga a educação e o trabalho como instrumentos importantes para a reinserção social, mas critica o regime trabalhista ao qual estão submetidos os presidiários brasileiros.
“É uma mão de obra muito barata, que não é regulada pela CLT (Consolidação das Leis do Trabalho). Então não significa exatamente uma relação de trabalho constituída”, critica. 
Mari Lúcia pondera que um ofício, por si só, não pressupõe a formação do presidiário. “O preso pode trabalhar em função da remissão da pena e da própria poupança que recebe, mas isso não representa uma mudança de comportamento quando ele cumprir sua pena e for solto. A pessoa precisa receber uma verdadeira capacitação, profissionalização e, junto com isso, um acompanhamento psicossocial integral e um tratamento digno no próprio trabalho e nas condições dele lá dentro”, ressalta.


Em meio ao triste cenário composto por prédios vigiados 24 horas por agentes armados, uma pequena edificação lembra vagamente o mundo lá fora: é uma escola que permite que o confinamento tome ares de liberdade. 
Enquanto se conversa com os professores e alunos do Colégio Estadual Lourdes Estivalete Teixeira, construído dentro da Penitenciária Odenir Guimarães em Aparecida de Goiânia, chega-se a esquecer, por um momento, que se está dentro de um presídio. 
No ambiente tomado por letras, números, histórias e atividades extraclasse que incentivam o livre pensamento, o trabalho em equipe e a imaginação, a vida ressurge sob formas antes desconhecidas para aqueles que ali se encontram confinados. “A gente até esquece que tá no presídio, pois a escola faz a gente lembrar da rua”, confessa Alan Kléber, aluno do 4º semestre da 3ª etapa da Educação de Jovens e Adultos (EJA). “Estudar todos os dias ajuda - e muito - o tempo a passar mais rápido”, completa. 
Quando questionada sobre o que mais gosta na escola, Ludmylla Haysla, aluna do 1º semestre da 3ª etapa da EJA tem a resposta na ponta da língua: “Gosto dos professores porque eles dão o melhor ensinando pra gente. Tem gente aqui que nem sabia ler e escrever e agora sabe”, relata. 
Foi na escola da penitenciária que Ludmylla soltou a voz e, pela primeira vez, cantou em público durante uma atividade extraclasse. 
André Fernando de Souza, aluno do 2º semestre da 3ª etapa do EJA,  teve uma surpresa ao ficar em sexto lugar este ano no 9º Concurso de Redação Goiás na Ponta do Lápis, promovido pela Tribuna do Planalto. “Eu não esperava por isso. Tô orgulhoso em provar pra mim mesmo que eu mudei”, afirma o jovem que aprendeu a gostar de ler dentro do presídio. 
E foi justamente dentro da biblioteca improvisada do Colégio Lourdes Estivalete Teixeira que ele foi encontrado pela equipe de reportagem. 
Para o diretor do colégio, Elton Brasil, a experiência de lecionar para presidiários também foi surpreendente, pois o educador não esperava encontrar, ali dentro, mais respeito por parte dos alunos do que o que costuma receber nas escolas em que leciona. “Nós chegamos com medo, mas a realidade é bem diferente. O respeito que eles têm aqui, lá fora não existe”, elogia. 
Dos 1.620 detentos que cumprem pena na Penitenciária Odenir Guima-rães, 203 estão matriculados no Colégio Lourdes Estivalete Teixeira. Destes, 42 estão cursando a 3ª etapa do EJA (correspondente ao Ensino Médio regular ) e 161 estão matriculados na 1ª e 2ª etapas do EJA (correspondente ao Ensino Fundamental regular).


Em 2011, a população carcerária de Goiás era de 11.163 presos frente à capacidade prisional de apenas 7.373. Em 2012, o número de detentos subiu para 11.861 enquanto a capacidade prisional permaneceu a mesma. Deste total, 3.672 têm entre 18 e 24 anos, 3056 têm entre 25 a 29 anos, 2.175 têm entre 30 e 34 anos, 1.646 têm entre 35 a 45 anos, 752 têm entre 46 a 60 anos e 110 têm mais de 60 anos.
O grau de instrução vai do analfabetismo ao superior completo, sendo que 1.067 são analfabetos, 3.392 têm apenas a alfabetização, 3933 têm o Ensino Fundamental incompleto, 1.452 têm o Fundamental completo, 1.224 têm o Ensino Médio incompleto, 679 têm o Médio completo, 78 têm o Ensino Superior incompleto, 35 têm o superior completo e 1 têm pós-graduação. 
Dos crimes cometidos contra a pessoa pelos 11.861 detentos de Goiás, 30 foram de sequestro e cárcere privado, 1000 foram de homicídio qualificado e 860 foram de homicídio simples. Já os crimes contra os costumes se dividem da seguinte forma: 513 estupros, 218 atentados violentos ao pudor, 44 corrupções de menores, 2 tráficos internacionais de pessoas e 1 tráfico interno de pessoas.
Os crimes contra o patrimônio se dividem entre: 897 roubos simples, 33 receptações qualificadas, 189 receptações, 111 estelionatos, 5 apropriações indébitas previdenciárias, 17 apropriações indébitas, 30 extorsões mediadas por sequestro, 43 extorsões, 440 latrocínios, 1.399 roubos qualificados, 913 furtos qualificados e 1.089 furtos simples. 
Já os crimes contra a paz e a fé pública estão divididos entre 37 usos de documentos falsos, 16 falsidades ideológicas, 6 falsificações de documentos públicos, 5 moedas falsas e 192 formações de quadrilhas. 
Os crimes contra a administração pública se dividem em: 11 peculatos, 2 corrupções passivas, 9 corrupções ativas e 1 contrabando. Entre os tipos de crime contra legislação específica os que mais se destacam são: 3.057 crimes de tráfico de drogas, 264 pela lei Maria da Penha e 216 porte de arma de fogo.

Fonte: Tribuna do Planalto