Vidas severinas

Na semana passada, durante sua conferência no 3° Colóquio de Biopolítica, realizado na Faculdade de Direito da UFG, o professor Castor Ruiz, do curso de Filosofia da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos), do Rio Grande do Sul, citou os versos de João Cabral de Melo Neto para chamar a atenção para as “vidas severinas”. “E se somos Severinos/ iguais em tudo na vida, morremos de morte igual, mesma morte severina: que é a morte que se morre/ de velhice antes do trinta/ de emboscada antes dos vinte, e de fome um pouco por dia”, diz um trecho do famoso poema do autor.

João Cabral escreveu Morte e Vida Severina, um “auto de Natal pernambucano”, como ele mesmo denominou, em meados da década de 1950, para falar da tragédia dos flagelados da seca do Nordeste – uma situação que até hoje, para a vergonha nacional, o País testemunha. O professor Castor Ruiz tomou de empréstimo o poema cabralino para ilustrar sua tese sobre a condição paradoxal das “vidas severinas” da atualidade, que não se restringem, na sua definição, aos retirantes nordestinos – “severinos” são todos aqueles excluídos social e economicamente, cujas existências só no plano formal são protegidas por nosso sistema jurídico.

Pois o paradoxo das “vidas severinas” é justamente este: apesar dos direitos fundamentais que lhes são garantidos pela Constituição Federal, na esfera concreta da realidade, elas não valem muita coisa. São “puras vidas nuas”, para usar a expressão do filósofo alemão Walter Benjamin, sujeitas a toda sorte de arbitrariedade e violência.

Na sua palestra, Castor Ruiz lembrou que, na Grécia e na Roma antigas, o mesmo direito que assegurava a proteção dos cidadãos não estendia tais garantias aos estrangeiros, cujas vidas eram consideradas “profanas” e “indignas” – tanto era assim que não constituía crime, da parte de um grego ou um romano, matar uma pessoa estrangeira. Na realidade brasileira, os “severinos”, de certa forma, são também “estrangeiros”, nesta acepção da Antiguidade greco-romana, em seu próprio país: os autores de crimes cometidos contra quem se encontra nessa situação de exclusão dificilmente sofrem algum tipo de punição.

As “vidas nuas”, segundo o pensador italiano Giorgio Agamben, são vidas “matáveis”, que podem ser sacrificadas seja pela vontade expressa do Estado, seja por conta da sua omissão. São vidas como as dos 14 moradores de rua assassinados nas últimas semanas em Goiânia, abatidos feito um bicho qualquer, sem a mínima chance de defesa. “Severinos”, como no poema, “iguais em tudo e na sina” e cuja morte não desperta comoção nem indignação. Essa indiferença do público, no entanto, para com a sina desses seres humanos “matáveis” tem um preço, que pode se revelar muito alto: afinal, numa sociedade em que se admite que há vidas humanas que podem ser exterminadas, todos acabam se tornando vítimas em potencial.

Fonte: O Popular