História da Geografia em Goiás XXI

Nesse chão dos Goyazes há presença do Altíssimo, já que chegamos ao tempo venturoso do natal. Por que não imaginar um Cristo aos moldes goianos que pisou, em criança, a magia dessa terra e que nos legou a beleza da natureza derramada em cerrados e caminhos na alegria dos dezembros?

Há uma Geografia que se estende pelos mapas encantados que o Cristo planificou no mundo nos diversos lugares por onde andou. Em ternura poética, Ele também caminhou e fez um mapa na cartografia de Goiás.

Há, então, pela magia de Deus, um alarido de maritacas no roi-roi dos cocos de guariroba. Há algo novo no tempo com a barrinha do dia que vem surgindo vermelha no horizonte. Nos socavões e nas grotas, nas chapadas e campinas goianas, há incontida ternura. 

Esse tempo que corre rápido como água ligeira na bica de aroeira ensina-nos a incerteza dos caminhos poeirentos, ziguezagueando no mistério do sertão envolto em solidão, mesma solidão que envolve doridamente o coração dos homens. 

Nos rumores dos leques abertos das palmeiras são compostas nênias de saudades. È o sentimento tão forte no coração, na alma enternecida, sentimento esse fortemente arraigado como a tabatinga dormindo amarela no barranco do rio. E a nossa alma quedando-se pelo peso da grande verdade é tal assa-peixe inclinando seu florão, sol morrendo no céu cor de rosa, balançar azul violeta da flor da lobeira e o curvar do pau terra sob o jugo de lembranças doridas...

É dezembro... E no barulho da chuva criadeira caindo, a grande mensagem vem surgindo de um caminho tão perfeito e luminoso que o homem não pode entender. Há procissão verde clara de sangra d’águas nos brejos, há velames balançantes com suas folhinhas prateadas, douradinhas e lixeiras compondo o cenário, sucupiras bailarinas com suas folhas ao sabor dos ventos que correm livres no cerradinho, na solidão perene da paisagem verde.

No tamboril das matas, abrigando ninhos de guaches balançantes perpassa a brisa anunciadora: há algo novo! Na beleza silente, a rolinha arrulha: “fogo – pagô, fogo – pagô”, nas copas das grandes cajazeiras. O tilintar do polaco no pescoço da vaquinha solta na capoeira é um anúncio longínquo avisando que Ele vem chegando!

Joaninhas faceiras, novidadeiras trazem recado de cada moita de mamacadela. Carregam o perfume da flor de São José e da seiva da aroeira, trazem mel de jataí e a linda lembrança: que Ele já está aí...

 É dezembro, que se reúnam tropeiros, boiadeiros, vaqueiros, meeiros, peões, gente da lida. Tragam a arroz pilado, o feijão na munha, o cuité com toicinho, a carne na lata, a cuia de farinha, o alho socado com sal, uma penquinha de jurubeba, café moído, açúcar de fôrma, verdurinhas da horta, polvilho, queijo curado e ovo de angola para grande festa do advento. Tragam o cutelo, o machado, a enxada, a foice, o enxadão abrindo triêro para que a Sagrada Família faça morada no meio do mato, junto do povo de botina amarela e pé no chão, lenço e chapéu na cabeça, mãos grosseiras sempre postas na benção da plantação.

Os rendados de São Caetano nas cercas de arames abaixarão contritos quando Ele passar. Passopretos nas sobras da roça de arroz estarão estáticos observando, a correição de formiga no triêro da matinha, abrirá passagem. O pé de cabaça recolherá seus muitos ramos, dando caminho para o pisado suave dos que O trazem.

Ele vem nas sombras dos angicos e carobas de um verde admirável. O pequi carregado de flores deixará cair uma chuva amarela sobre a sagrada Família caminhante. 

A cagaiteira balançará seus galhos na incontida alegria da passagem. Debaixo da Maria pobre uma parada para o descanso na brisa alegre do dia que começa, observando o bálsamo, a garapa e a caraíba livres no cerrado. A sombra do jatobazeiro derrama desenhos no verde da pastagem; tudo anuncia, tudo festeja porque o Menino Santo evém vindo, nos braços da Maria, dormindo...

Como o responso compungido: “Jesus na frente, paz na guia, como o poder de Deus e da virgem Maria”, a natureza vai se abrindo pressurosa: jaburus cismando junto às coivaras e galhadas caídas estremecem de júbilo. Perto das cabeceiras das aguadas um urutau pia, levando seu som para o seio profundo da mata, avisando aos mais distantes. 

Curicacas agitadas avisam que Ele chega e até o velho cavalo de arado, nas suas tantas pisaduras, oferece humildemente, a Ele, o doso magro.

Cheiros e ruídos expressam a novidade. O trovão lá no rumorão da chuva cobrindo a serra dá o seu sinal. Uma brisa reanimadora balança os galhos e os frutos avermelhados do xixá, uma curriola madura cai do galho sobre a mesa do carro de boi parado, esperando mais um dia na lida do engenho. O João de barro observa a passagem Dele enquanto amassa, na lama do rego d’água, o cimento de sua casinha e mesmo a galinha carijó, ciscando o lixo varrido do grande terreiro, anuncia a importante passagem, selecionando sementinhas para a esgabilança dos pintinhos assanhados.

Uma força nasce da terra cultivada, revirada, tombada, arada, vermelha. Quiabo nasce, mandioca cacau aponta suas folhas, o milho abre esporas para o sustento da sua caninha, feijão enrama, jiló é todo enfeitado de pequenos frutos verdes, quais brinquinhos de esmeraldas, abobreiras alastram seus ramos, colhidos para o refogado de cambuquira.

E tudo se esparrama: melancia com suas bolinhas rajadas aqui e ali no meio do arrozal, o feijão brabo na largueza do chão parado, maxixe derrama pela roça os seus frutinhos estrepentos e no estaleiro do chuchu, bracinhos vão se alongando preguiçosamente na festa permanente da vida, como a esperança que acalentamos e vamos estendendo ao longo da jornada...

Ele chegou! Acendam a fornalha comas toras de angico, ajuntem sabugos, cascas e gravetos para o começo do fogo. Tragam candeias e lamparinas, luzes de pirilampos.

Varram o chão batido do rancho e encham o pote com água de ternura. Jesus menino chegou na casa de pau a pique e encheu de luz as gretas das lascas de aroeira.

Deitem o Menino Santo na cama de forquilha, na maciez do colchão de capim mumbeca. Repousem sua cabecinha no travesseiro da paina da barriguda e o aqueçam com uma coberta de algodão, tecida em casa, depois de um chazinho de poejo.

E ao coaxar da saparia lá no brejo, ao piado das cobras no cupinzeiro do pasto e do crocitar das corujas no cruzeiro da entrada Ele dorme. Entre o murmurejo da água da bica, o batido do monjolo, o bufado dos bezerros no pastinho da porta da sala e as muitas luzes de estrelas, o Menino Santo ressona...

E na manhã radiante, da cor do diamante, como todas as manhãs do mundo, ao som da bicharada alvissareira, Ele segue caminho. José, ao lado de Maria, tem a tiracolo uma capanga de sementes, que vai jogando, semeando, espalhando... 

E vão pelo cerrado, inseridos em uma manhã de luz, recendendo alecrim, manjerona e arnica, semeando paz. É dezembro, é natal. Vamos semear o bem, nós também!

Na beleza evocativa do cerrado e da Geografia dos lugares goianos, tocados pela mão de Deus, o natal sempre acontece nas ternuras de cada caminho orlado pelo encantamento da natureza. Por tudo isso, na vida goiana, há perene beleza!

(Bento Alves Araújo Jayme Fleury Curado, professor, mestre em Literatura e Linguística pela UFG. Mestrando em Geografia pelo IESA da UFG, pesquisador e poeta. E-mail: bentofleury@hotmail.com)

Fonte: Diário da Manhã