“O poder se tornou invisível”

Professor de filosofia Universidade de Coimbra, em Portugal, Alexandre Guilherme Barroso Franco de Sá tem se dedicado a refletir sobre a crise do Estado nacional e sobre o que ele chama de “ambivalência” do conceito de direitos humanos, que, segundo ele, ao mesmo tempo em que procura fundamentar valores como a dignidade humana, é usado como ideologia política para justificar a ação imperialista das potências ocidentais. Recentemente, o pesquisador, um estudioso das obras de Heidegger, Carl Schmitt, Foucault e Hannah Arendt e autor de livros como Metamorfose do Poder e Poder, Direito e Ordem: Ensaios sobre Carl Schmitt (ambos publicados pela Editora Via Verita, do Rio de Janeiro), esteve em Goiânia, a convite do Núcleo Interdisciplinar de Estudos e Pesquisas em Direitos Humanos da UFG, quando ministrou um minicurso no qual abordou estes temas e também conversou com O POPULAR. Leia a seguir a entrevista, na qual ele fala também das manifestações populares no Brasil e do fato de estarmos submetidos, hoje, a um “poder invisível”.

Rosângela Chaves 25 de agosto de 2013 (domingo)
Cristiano Borges
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Nos seus textos, o senhor sempre fala da crise do modelo dos Estados nacionais. Como se configura essa crise?

Nós não vivemos uma crise, vivemos vários crises do Estado-nação. Vivemos desde logo uma crise do conceito de Estado-nação, um conceito que foi sendo forjado ao longo da história moderna, que teve início no século 16, e que se centra no princípio de soberania dos Estados. Este modelo entrou claramente em crise no século 20. De certa forma, a Segunda Guerra Mundial é um grande momento em que este modelo entra em colapso, e que já tinha sido posto em causa antes disso, na Primeira Guerra Mundial. Hoje nós vivemos com estruturas políticas que herdamos desta tradição moderna, mas nos confrontamos com problemas para os quais o modelo institucional do Estado moderno não dá respostas. Então, temos de encontrar alternativas, mas alternativas que não partam para um completo colapso, um completo desaparecimento das instituições políticas. E esta é uma segunda crise, um risco maior que corremos hoje.

 

As recentes manifestações populares que ocorreram no Brasil e também na Europa e nos Estados Unidos são reflexo dessa crise do Estado?

Acho que são. No Brasil, vendo o que se passou, de fora, o que me parece é que há muito claramente uma rejeição a um conjunto de problemas que está associado a um determinado modelo político, a uma espécie de esgotamento deste modelo, mas nessa rejeição e nessa reação não há a capacidade de gerar alternativas, de pensar alternativas. De tal forma que muitas vezes o protesto vira o protesto pelo protesto, quer dizer, quando se pergunta às pessoas o que elas precisamente querem de alternativas, há gente que tem uma agenda própria, há gente que tem coisas que na sua vida pessoal gostaria que estivessem melhores e não estão, mas a capacidade de pensar de uma forma panorâmica, de uma forma englobante, os problemas e pensar um modelo alternativo, isso não parece existir nessas manifestações. De tal forma que corre-se o risco de que esse boom que se gerou no Brasil, desse grande movimento que se gerou no Brasil, resultar em algo completamente inconsequente.

 

O senhor acredita que possa haver um retrocesso político?

Acho que poder haver um retrocesso. O Brasil é um país onde há realmente muitas desigualdades econômicas e há um protesto natural contra isso, mas o protesto por si mesmo não resolve esses problemas. É preciso enquadrar esses problemas num plano institucional.

 

O senhor diz que entre as características da sociedade moderna está a ausência de uma cultura cívica. A crise não seria também da sociedade e não só do Estado?

É também da sociedade, claro. O Estado é a grande criação política da modernidade. Nós hoje temos um conjunto de autores, filósofos, que falam em pós-Estado, em pós-soberania, mas não oferecem verdadeiramente modelos alternativos ao Estado. Tudo que nos temos de alternativa ao Estado é pior do que existe. Portanto, eu não seria tão expedito em recusar as instituições que temos hoje. Eu acho é que temos de aperfeiçoá-las e temos no fundo de viver com elas e compreender também que não há instituições que sejam perfeitas. Quando eu digo que não se pode absolutizar os protestos, que os protestos por si só não resolvem nada, é porque não é possível dar tudo a toda gente, não é possível ter tudo ao mesmo tempo. Se nós virarmos para um conceito de cidadão, e isso está tratado a partir dos anos 1980, que é o de cidadão-consumidor, você vai virar o quê? Consumidor de direitos, de bens. Pensar o cidadão como consumidor é um empobrecimento muito grande do conceito de cidadão.

 

Mas a partir dessas manifestações não é possível que surja um novo civismo, o despertar de um interesse, um desejo por mais participação política?

Sim, no sentido em que há uma mobilização política da sociedade civil, isso em si mesmo é positivo. O que eu digo é que essa mobilização, que é generosa e que deve haver, ainda mais no Brasil que tem circunstâncias políticas e sociais que justificavam e justificam esse tipo de reação por parte da população, essas manifestações foram uma espécie de desabafo, são as pessoas a dizer que estão fartas, fartas de um conjunto de coisas. Mas estar farto com um conjunto de situações com que se depara diariamente por si não resolve as instituições. E, portanto, ao mesmo tempo em que eu vejo os protestos como positivos, um movimento positivo que ocorreu no Brasil e que ocorre neste momento, também creio que é importante ter uma consciência simultânea que esses protestos por si só não são suficientes para iniciar uma cultura cívica, uma cultura institucional, uma educação política, que envolva escolas, envolva universidades, envolva realmente uma formação cívica dos cidadãos que não se pode confundir nem se pode reduzir a ir para a rua protestar e reivindicar direitos ou vontades.

 

O senhor fala do paradoxo dos Estados-nação modernos que, ao mesmo tempo em que foram assentados em princípios de Estados não totalitários, como o respeito às liberdades individuais, a liberdade de expressão, a garantia do voto, etc., guardam elementos dos Estados totalitários. Que elementos são esses?

Todo um conjunto de elementos, por exemplo, vigilância, um certo enfraquecimento das instituições do Estado, coloca os cidadãos expostos a um poder de natureza diferente que se exerce diretamente sobre eles, por exemplo, poderes econômicos, financeiros, midiáticos. Repare, o que caracteriza na sua origem o Estado moderno? É o poder absoluto do príncipe, mas esse poder absoluto tinha, contudo, uma limitação. Era um poder visível, sabia-se onde estava esse poder. De tal forma que entre quem exerce os poder e quem está submetido a esse poder, há uma mediação, que é exercida pela dimensão da visibilidade. Acontece que hoje em dia é como o poder se ocultasse. O poder se tornou de certa forma invisível. O que quer dizer que o poder político se retira, se limita. Deixa todo um conjunto de áreas em que deveria intervir e entrega à autogestão. Por exemplo, a questão dos mercados desregulados que nós vivemos desde a década de 1990, e que a Europa neste momento está a descobrir as consequências, é um bom exemplo disso, de diminuição de poder político. A capitulação do poder político faz com que um conjunto de poderes, não políticos, exerçam seu poder sem mediação nenhuma porque são invisíveis, de certa forma são ocultos, junto a uma população que se encontra completamente exposta, desprotegida. Há inúmeros exemplos que poderia dar, por exemplo, a incapacidade dos Estados, dos governos, de fazerem face aos desafios ambientais globais. Por que são incapazes de fazer face a esses desafios? Porque não têm nesse sentido autoridade, não têm capacidade de exercer verdadeiramente um poder político em face de um conjunto de pressões, de interesses, de várias ordens, que deveriam ser controlados, determinados, regidos, moderados por eles, e não são.

 

Com relação às novas tecnologias, como a internet, elas também têm esse papel um pouco ambíguo, porque ao mesmo tempo em que ampliam as possibilidades de expressão do cidadão, também são passíveis de controle, como provou o recente escândalo de espionagem envolvendo os EUA...

Nós estamos ao limite, sem querer exagerar muito, de uma situação de quase desaparecimento daquela dicotomia, que mais uma vez é moderna, entre público e privado. Hoje, o que se opõe ao público, por exemplo, na internet, ou nas redes sociais, como o Facebook e o Twitter? Não é o privado. O privado, de certa forma, se presta ao discreto. Ou seja, tudo em princípio é público, tudo em princípio é partilhável. E essa publicidade, essa rede, no fundo também é um mecanismo de vigilância, de controle. Então, aquilo que se opõe a essa dimensão pública deixa de ser propriamente uma dimensão de reserva, de privacidade, e passa a ser exatamente o seu contraponto, o que é não público, o que deixa de ser discreto, escondido.

 

O senhor fala da “ambivalência” dos direitos humanos. Uma crítica que se faz ao conceito de direitos humanos é que a sua pretensão de universalidade seria muito mais uma visão de mundo do homem europeu, ocidental. Mas, por outro lado, se se concorda integralmente com essa crítica, pode-se cair no risco, em nome do relativismo cultural, de ser conivente com violências, por exemplo, a violência contra as mulheres no mundo islâmico. Como tratar essa questão dos direitos humanos hoje?

Os direitos humanos não têm um sentido, têm vários sentidos. Não são uma coisa, podem valer de várias maneiras. E certamente essa dupla componente existe. Por outro lado, os direitos humanos são uma ideologia ocidental. Uma ideologia com eficácia política muito concreta. Em nome dos direitos humanos, uma coligação de Estados ocidentais pode, à margem da lei internacional, da ONU, invadir um país soberano como o Iraque – para citar um dos traumas da primeira década do século 21 –, evocando inclusive argumentos que não foram verificados, que eram mentira, armas químicas de destruição maciça, etc. Portanto, por um lado, a defesa dos direitos humanos são a cobertura ideológica para ingerências militares, de natureza humanitária, que são, do ponto de vista político, geopolítico, plenamente questionáveis. No fundo, a criação de uma nova ordem mundial que supere o princípio de soberania dos Estados com base nesse direito de ingerência humanitária realmente começa no início do século 20, com a criminalização do inimigo derrotado – por exemplo, na Primeira Guerra Mundial, o imperador da Alemanha, foi citado para ser criminalizado, mas não foi entregue pela Holanda, onde ele se tinha asilado. Portanto, por um lado, retomando o discurso, os direitos humanos têm essa vertente: são uma ideologia. Mas, por outro lado, são um recurso filosófico importante, diria até indispensável, para pensar alguns valores fundamentais e para recuperar alguns valores fundamentais que hoje, pela situação em que vivemos, são postos em causa. O valor da individualidade, o direito de cada um a ser feliz a sua maneira – uma ideia que é grega, aristotélica: todos queremos ser felizes, mas a felicidade é algo intrinsecamente relativo, cada um tem uma maneira própria de ser feliz e isso tem de ser respeitado. O valor da dignidade humana – não é possível ser feliz sem meios de ser feliz, a questão dos direitos sociais aqui é fundamental. A questão da pluralidade, a pluralidade do homem, o mundo humano é um pluriverso, não é um universo. Portanto, há todo um conjunto de valores para os quais a noção de direitos humanos remete pela sua história, pelos seus fundamentos filosóficos, sempre precários. Mas que tornam os direitos humanos irredutíveis a seu papel de recurso ideológico usado pelos Estados hegemônicos para intervirem militarmente onde quiserem. Em face dessa ambivalência dos direitos humanos, nós temos de aproveitar a sua parte melhor.

 

“Ao mesmo tempo em que eu vejo os protestos como positivos, um movimento positivo que ocorreu no Brasil e que ocorre neste momento, também creio que é importante ter uma consciência simultânea que esses protestos por si só não são suficientes para iniciar uma cultura cívica, uma cultura institucional”

 

“Acontece que hoje em dia é como o poder se ocultasse. O poder se tornou de certa forma invisível. O que quer dizer que o poder político se retira, se limita. Deixa todo um conjunto de áreas em que deveria intervir e entrega à autogestão”

Fonte: O Popular