Doutor pela UFG lança livro que muda a história da fundação de Goiânia

O livro “A Invenção de Goiânia — O Outro Lado da Mudança”, tese de doutorado em história do promotor de justiça Jales Guedes Coelho Mendonça, será lançado na quinta-feira, 3, às 18 horas, na Livraria Nobel do Shopping Bougainville.

Apresentação

Lena Castello Branco Ferreira de Freitas

Dentre as imerecidas graças recebidas ao longo da vida, registro a de ter lecionado para gerações de estudantes. Começando em sala de aula quando ainda cursava a licenciatura em História e Geografia na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da atual PUC-Goiás, alguns dos meus ex-alunos já se aposentaram. Em contrapartida, das últimas turmas de pós-graduação com quem compartilhei pesquisas e ideias, mestres e doutores estão em plena atividade, formando a nova leva de intelectuais e profissionais que vai aos poucos assumindo postos-chaves na sociedade goiana.

O autor do presente livro, Jales Guedes Coelho Mendonça, integra essa elite estudiosa e séria, sempre em busca de melhor capacitação para desincumbir-se de suas responsabilidades profissionais e sociais. Não tive o prazer de tê-lo como aluno, mas, desde alguns anos, venho acompanhando seu trabalho como pesquisador e cultor da história.

Jurista por formação e historiador por (irresistível) vocação, o jovem promotor de justiça brindou-nos anteriormente com a edição de “A Assembleia Constituinte Goiana de 1935 e o Mudancismo Condicionado” (Goiânia: Editora da UCG, 2008). Volta, agora, com a publicação de sua tese de doutorado, elaborada sob a competente orientação do professor Noé Freire Sandes, e recentemente apresentada e aprovada na Faculdade de História da Universidade Federal de Goiás.

Como diz o próprio título – “O Outro Lado da Mudança” –, o trabalho propõe-se inovar, desvendar e tornar conhecido o “outro lado” da história fundacional de Goiânia – vale dizer, o lado não divulgado, eventualmente escamoteado, desse momento decisivo da história de Goiás.

Evocando Paul Ricoeur, lembremos que o juiz e o historiador são “mestres no manejo da suspeita”. Assim sendo, o autor do livro em comento questiona, investiga, formula hipóteses, pesquisa, dialoga com as fontes, responde a dúvidas e aclara imprecisões. Em seu compromisso com a verdade histórica, identifica lacunas, inverdades e meias verdades onde tudo parecida dito e explicado. Com esse desiderato, recorre-se de fontes primárias e secundárias, com destaque para jornais publicados na Velha República e a década de 1930. Ao fazê-lo, percorreu arquivos regionais e nacionais, assim reiterando a importância da pesquisa documental na elaboração da história, inclusive completando e corrigindo a memória, por si mesma falha e seletiva.

Dentre as conclusões a que chegou, ressalta a comprovação do viés autoritário que presidiu a fundação de Goiânia. Para estabelecer um ponto de comparação, o autor debruçou-se inicialmente sobre a construção de Belo Horizonte, a capital mineira que foi erguida nos anos iniciais da Velha República, na vigência da primeira Constituição republicana. Ficaram evidenciados o respeito aos princípios constitucionais vigentes, bem como o papel desempenhado pela Assembléia Legislativa do Estado de Minas Gerais em todo o desenrolar dos fatos.

Em Goiás, pelo contrário, o processo de mudança da capital teve início e concluiu-se sob o regime de exceção instalado em 1930, que haveria de estender-se até 1945, com breve interregno democrático (1934 a 1937). A partir da documentação pesquisada, conclui-se que, mesmo quando aparentemente o assunto era tratado de forma democrática – como na designação de uma Comissão para a escolha do local onde Goiânia deveria ser construída – a decisão já havia sido tomada prévia e autocraticamente pelo interventor federal, Pedro Ludovico Teixeira.

Não obstante, o mesmo Pedro Ludovico – eleito governador constitucional em 1935 – empenhou-se em obter respaldo legal para a construção da nova capital, quando já estavam avançadas as obras, inclusive com dispêndio de vultosas verbas públicas. Nesse sentido, a Assembleia Constituinte aprovou e fez inserir no artigo 5º das disposições transitórias da Constituição do Estado de Goiás de 4 de agosto de 1935. Esse dispositivo legal não somente ratifica o local escolhido, como estabelece prazo para a transferência da capital e possibilita ao Poder Executivo levar, em caráter provisório, alguns dos seus órgãos administrativos para a nova sede.

São previstas, igualmente, salvaguardas econômicas para a Cidade de Goiás, que perderia o status de capital, com o consequente esvaziamento político, econômico e demográfico. A previsão de tais compensações resultara de um intrincado jogo político que o autor disseca com propriedade e segurança, a partir da análise de como surgiu e atuou o “mudancismo condicionado” – posição intermediária entre o “mudancismo” dos apoiadores incondicionais da nova capital, e o “antimudancismo” daqueles que a rejeitavam de forma peremptória.

Foi tumultuada a trajetória do projeto de lei nº 1, da Assembleia Legislativa do Estado de Goiás, que autorizaria a mudança da capital. De outra parte, surpreende a constatação da vitalidade dos partidos políticos de Goiás, do Império à Velha República. A imprensa partidária fazia eco e estimulava o debate político, a despeito de serem elevadíssimas as taxas de analfabetismo no estado. Entre 1930 e 1934, contudo, nenhum jornal oposicionista foi publicado em Goiás; os adversários do regime utilizavam-se dos serviços de periódicos do Triângulo Mineiro, região de fortes laços econômicos e sociais com o sudoeste goiano.

Como contribuição a latere, em suas pesquisas o autor consultou atas de fundação dos partidos políticos que vicejaram na Velha República em Goiás; surpreendentemente, encontrou documentada a participação de Pedro Ludovico Teixeira na fundação do Partido Democrata (1909), do Partido Republicano de Goiás (1916), do Partido Republicano Independente (1924). Em dias futuros, irá engajar-se no Partido Social Democrático (PSD), no qual se incluirá entre as lideranças mais expressivas.

A despeito do protagonismo dos partidos, fica clara a fragilidade do jogo democrático na década de 1930, com destaque para a tendência à personalização da política e o menosprezo pela atividade parlamentar. Em que pese o esforço de alguns, não há espaço para divergências, nem para o exercício do diálogo em busca de consenso. A despeito da promulgação do Código Eleitoral, as mudanças havidas na superestrutura não se compatibilizavam com a imutabilidade das estruturas da sociedade, nem com a longa duração de ideias e mentalidades.

De outra parte, personagens esquecidas que atuaram nos primórdios da construção de Goiânia são retiradas do esquecimento pelo autor, a exemplo do engenheiro civil Carlos Haas, que elaborou o primeiro estudo sobre a nova capital de Goiás. Intriga o fato de Haas não ter sido chamado para integrar a Comissão de Localização da cidade a ser construída; entretanto, permaneceram válidas algumas das sugestões formuladas por ele.

Ao longo da pesquisa, fatos inusitados vêm a lume, alguns dos quais impactantes. Como a existência de dois Relatórios da referida Comissão de Localização da nova capital: o primeiro, privilegiando o sítio de Bonfim, não é levado em consideração e literalmente desaparece, até que circunstâncias posteriores o resgatassem do limbo. O segundo, oficialmente aceito e divulgado, consagra a região próxima a Campinas, que já fora escolhida in pectore pelo interventor, adepto de um local “neutro”, onde não se visse obrigado a compartilhar a liderança com políticos ou autoridades.

No plano estadual, são imediatas as repercussões da crise nacional que passara a atemorizar o país, a partir de novembro de 1935, após a chamada Intentona Comunista. Tudo conspirava para levar ao golpe do Estado Novo, inclusive a simpatia pelos regimes autoritários que predominavam em muitos países europeus.

Em meio a profunda crise política, a efetivação da mudança da capital de Goiás é viabilizada com o decreto nº 1816, de 23 de março de 1937. O projeto de lei em tramitação na Assembleia Legislativa, com esse objetivo, simplesmente desaparece. No decreto, foi ignorado o disposto na Constituição estadual, bem como esquecida a existência de promessas formais dos governantes. Com efeito: não se concretizaram as compensações à Cidade de Goiás, nem atendidas as reinvindicações há muito reclamadas pela população vilaboense. Relativamente à antiga capital, prevaleceu, afinal, uma política de terra arrasada, que somente em dias futuros haveria de amenizar-se.

Com argúcia, Jales Guedes Coelho Mendonça reporta-se à preocupação – presente ou subjacente nos documentos – de preservar-se a imagem dos atores envolvidos em atos e fatos menos éticos, pertinentes à mudança da capital. Inclusive no desaparecimento de atas da Assembléia Legislativa, que não foram publicadas pela imprensa oficial, nem localizadas em sua versão original manuscrita.

Como peça importante para a construção da história de Goiânia, é enfocado o livro “Como Nasceu Goiânia”, de autoria de Ophelia Sócrates do Nascimento Monteiro. Publicada pela Editora Revista dos Tribunais (SP), sua primeira edição foi distribuída pelo Gabinete Militar do governo de Goiás. Reimpressa e divulgada, essa obra assumiu foros de verdade absoluta, passando a constituir-se em versão oficiosa da mudança da capital goiana, o que foi corroborado pelo teor repetitivo e bajulatório de outras publicações da época.

Muitos outros temas são esmiuçados e perquiridos em “A Invenção de Goiânia: O Outro Lado da Mudança”, de Jales Guedes Coelho Mendonça. É de justiça reconhecer que o livro vem contribuir, de maneira decisiva, para o aclaramento de zonas de sombra ainda presentes na história de Goiás, que pouco a pouco começam a dissipar-se sob a luz de pesquisas sérias, corajosas e bem orientadas, como a presente. De igual modo, suscita reflexões e questionamentos, relativamente ao papel do historiador na busca da transparência e da verdade, com vistas à construção da História. 

Lena Castello Branco Ferreira de Freitas, professora titular da Universidade Federal de Goiás, é doutora pela Universidade de São Paulo.                                      

Nota da redação do Jornal Opção: O título “Doutor pela UFG lança livro que muda a história da fundação de Goiânia” não é de autoria da professora Lena Castello Branco e tampouco do autor do livro. É de responsabilidade do jornal. A apresentação não contém título.

Fonte: Jornal Opção