Laços literários

Ex-professor da Faculdade de Letras da UFG e atualmente lecionando no Instituto de Estudos da Linguagem da Unicamp, Mário Frungillo é uma autoridade em literatura alemã no Brasil. Com a experiência de ter estudado na Alemanha e ministrado cursos sobre autores e obras germânicos, Mário é hoje um dos mais respeitados tradutores de obras alemãs para o português. A Editora Estação Liberdade acaba de lançar dois desses trabalhos: o clássico Effi Briest, de Theodor Fontane, e o romance A Lenda do Santo Beberrão, do austríaco Joseph Roth. Nesta entrevista, Mário mostra que os contatos entre a literatura brasileira e alemã são bem maiores do que imaginamos.

 

Você estudou na Alemanha e tem profundo conhecimento sobre a literatura de lá. Percebe traços do imaginário ou de escolas literárias da Alemanha na produção literária brasileira?

Talvez seja mais apropriado falar em autores individualmente que em escolas. Para dar alguns exemplos: já no século 19 se pode perceber que, além dos autores franceses e ingleses, nossos poetas e escritores também demonstram interesse por alguns autores alemães. Basta pensar, por exemplo, na epígrafe da Canção do Exílio, de Gonçalves Dias, que são versos de um poema de Goethe. Gonçalves Dias também é autor de uma tradução de A Noiva de Messina, de Schiller. Há referências a E. T. A. Hoffmann nas Noites na Taverna, de Álvares de Azevedo. Um poema de Heinrich Heine, O Navio Negreiro, é possivelmente uma das fontes de inspiração para o poema homônimo de Castro Alves. Heine também parece ter sido um poeta muito apreciado pelo simbolista Alphonsus de Guimaraens. O Fausto, de Goethe, é uma referência importante no Memorial de Aires, de Machado de Assis. E um de nossos escritores contemporâneos, João Silvério Trevisan, escreveu um belíssimo romance, Ana em Veneza, em que narra um encontro fictício entre o compositor brasileiro Alberto Nepomuceno e Ana, uma mucama que teria acompanhado a mãe de Thomas Mann, nascida no Brasil, quando ela foi levada ainda menina para a Alemanha. A referência mais explicita é à novela Morte em Veneza, mas toda a obra de Mann comparece ao longo do romance.

 

Você está com dois trabalhos de tradução de obras alemãs que acabam de ser lançados: Effi Briest, de Theodor Fontane, e A Lenda do Santo Beberrão, de Joseph Roth. Gostaria que falasse sobre esses dois trabalhos e das razões que o levaram a escolher essas duas obras para traduzir.

Fontane é o grande nome do realismo alemão e Effi Briest é sua obra mais conhecida. Ele se baseou num caso real de adultério para refletir sobre a sociedade prussiana de seu tempo. Fala-se muito na situação social e política da Alemanha recém-unificada, sobre o governo de Bismarck. A condição da mulher naquela sociedade também é um dos temas centrais do romance. Fontane não é cruel como Flaubert, e nem tão atormentado por dilemas morais como Tolstói, dois autores ao lado dos quais é sempre colocado por causa da temática em comum. Mostra uma profunda simpatia humana por sua heroína e, ao descrever como a história segue seu curso inevitável, em estrita obediência às regras e ao conceito de honra então vigentes, faz o leitor sentir claramente o quanto tudo aquilo se tornara para as próprias personagens um formalismo vazio, cumprido mesmo a contragosto. É profundamente triste. Apresentar esse autor ao público brasileiro era um antigo projeto que agora foi possível realizar. Já o livro de Joseph Roth não foi escolha minha, eu o traduzi por encomenda da Editora Estação Liberdade depois de concluir Effi Briest. Mas foi uma bela surpresa e fiquei feliz por ter conhecido o livro desse modo. É um belo relato sobre um bêbado, uma figura completamente à deriva com quem de súbito acontecem várias coisas que o fazem pensar em uma sequência de milagres.

 


Você tem acompanhado a produção alemã recente? Ela dialoga com o Brasil?

O que sei é que recentemente algumas obras brasileiras do nosso século 19, como Memorial de Aires, de Machado de Assis, e Triste Fim de Policarpo Quaresma, de Lima Barreto, foram traduzidas lá e tiveram uma boa recepção.

 


A questão da língua, do idioma afasta leitores brasileiros da literatura alemã?

O alemão não deve ser mais difícil que o russo. E cresceu bastante o número de obras traduzidas, e de pessoas trabalhando nesse campo. .

 

No ambiente acadêmico, há interesse por estudos da literatura alemã?

Sim, há muito interesse, não só pelas obras literária em si, como também pela crítica e pela teoria desenvolvidas na Alemanha. Nos últimos tempos aumentou também o interesse pela reflexão realizada pelos românticos alemães. Autores como Novalis e os irmãos Schlegel têm servido de inspiração para algumas abordagens recentes do nosso romantismo, abrindo uma via ainda não trilhada pelos estudos do nosso século 19.

 


Se alguém quiser ler um livro de um autor alemão, qual clássico você indicaria? Por quê?

É bem difícil recomendar apenas um único livro. Mas vai aí uma sugestão bem óbvia, embora também bem pessoal: A Montanha Mágica, de Thomas Mann. É um romance que nos dá uma ideia do impacto da 1ª Guerra Mundial sobre a civilização. Nele, Mann se confronta com as tradições culturais europeias e procura compreender como puderam desaguar naquela catástrofe que acabou engolfando o mundo todo. Acho também fascinante a maneira como ele tenta combinar numa síntese o amor pela morte dos românticos (de Novalis, por exemplo) com o interesse pela vida (que ele encontrou num poeta como o norte-americano Walt Whitman).

Fonte: O Popular