Do brilho ao drama

Data: 07/10/2014

Veículo: O Popular

Repórter: Clenon Ferreira

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Antropóloga Suzane Alencar lança hoje livro sobre as diversas histórias e testemunhos sobre o acidente do césio 137

Clenon Ferreira08 de outubro de 2014 (quarta-feira)

Nas mãos do morador do Setor Aeroporto, a cápsula revelou um brilho azul fascinante em uma noite de setembro.” Diversas narrativas que adicionam histórias e testemunhos sobre a catástrofe radioativa em Goiânia são recontadas no livro Césio 137, Drama Azul: Irradiação em Narrativas. Escrita pela antropóloga e professora da Universidade Federal de Goiás (UFG), Suzane Alencar, a obra será lançada hoje, na Livraria Nobel do Shopping Bougainville, a partir das 18h.

Elaborado quase 30 anos depois do acidente do césio 137 em Goiânia, o livro analisa os diversos discursos produzidos após a catástrofe. O que Suzane faz é discutir a produção literária, artística, fotográfica, audiovisual e jornalística sobre o episódio, além de trazer uma narrativa dos inúmeros relatos dos goianos que acompanharam o desastre, inclusive as vítimas.

Césio 137, Drama Azul: Irradiação em Narrativas foi publicado pela Editora Cânone em parceria com a Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp). A obra é fruto de pesquisa de mestrado em Antropologia pela Universidade de Campinas (Unicamp), em que Suzane procurou investigar a vida e o sofrimento dos que viveram o efeito radiológico do césio e que até hoje convivem com os resquícios deste desastre.

Atualmente, Suzane é doutoranda no Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Suas pesquisas se inscrevem nos temas do drama, ritual e narrativa, da antropologia da ciência e da tecnologia.

Desde 2008 que Suzana dedica-se ao estudo sobre o césio 137, quando começou as suas pesquisas do mestrado. De acordo com ela, os goianos preferem deixar a catástrofe da radioatividade no passado, mesmo que ainda haja resquícios dessa história, três décadas depois.

 

Entrevista/Suzane Alencar

Devemos encarar o acidente como um desafio permanente”

A catástrofe radiológica mistura coisas que tendemos a pensar como domínios separados: a vida e a técnica, a tecnologia e a sociedade, os saberes técnico-científicos e os saberes sujeitados, o cosmos e a política”

08 de outubro de 2014 (quarta-feira)

Desde 2008 que a senhora começou a pesquisar os mais variados meios, principalmente o artístico, sobre o pânico da radioatividade em Goiânia. Como foi desenvolvido ao longo destes anos o processo de criação do livro?

O processo segue uma reflexão antropológica sobre os dilemas do narrar uma experiência traumática em um caso extremo e intensivo como a catástrofe radiológica de Goiânia no ano 1987. Eu precisei lidar com um deslocamento temporalmente constituído como um evento que afetava de modo singular o fluxo da vida cotidiana e as categorias temporais com as quais costumamos traduzir nossa experiência etnográfica. Notei que, por sua energia de desagregação, a catástrofe radiológica foi capaz de desorientar formas de agir e pensar até então disponíveis e de forçar cientistas, gestores públicos e moradores que lidaram com um agente radioativo incontrolável.


A linguagem que a senhora utiliza na obra é uma abordagem que explora as narrativas, o imaginário e a identidade cultural de Goiás. Qual a importante destas narrativas?
A catástrofe desafia o conhecimento técnico-científico disponível e nos obriga a lidar com nossa própria vulnerabilidade. Físicos, médicos, policiais, jornalistas, na medida em que ocupavam uma posição na trama dos acontecimentos de 1987, também foram afetados pela catástrofe, pelo medo da contaminação radiológica e pelo desamparo de saber que os acontecimentos ultrapassavam enormemente as capacidades de controle e a esfera do conhecimento convencional.


Então as narrativas vão muito além das complexidades e as extensões da catástrofe?
Com certeza. O relato da trajetória de objetos contaminados como, por exemplo, o dinheiro manuseado pelas pessoas naquela época pode alargar o poder de afetação do evento e nos conduzir a imaginar: quantas pessoas tiveram contato com esses objetos e poderiam sofrer as consequências da irradiação? E disso nós jamais saberemos. O registro dramático das narrativas revelam aspectos como esse que escapam à descrição objetiva dos acontecimentos.


Muito além de obras acadêmicas, a senhora utilizou jornais, obras artísticas, literárias e documentos oficiais para compor todo o livro. Qual a abordagem em relação às artes?
A criação artística e literária se esforça em construir significados a esses acontecimentos que ultrapassam o campo do inteligível. Na efervescente criatividade artística e cultural que permeou o ano de emergência do evento, 1987, o artista plástico Siron Franco criou uma série de obras sobre o acidente, que se apresentava para ele como um acontecimento que estava além da criação e da imaginação, terrivelmente fantástico e real. Cada notícia sobre o acidente e suas vítimas inspirava uma nova obra. Siron Franco compõe uma paisagem distópica em que a tecnologia se conjuga à vida humana para subvertê-la.


Trinta anos depois, quais são os olhares dos goianos para a catástrofe do césio 137 em Goiânia?
O acidente com o césio 137 não esgotou seu potencial de desafiar o conhecimento científico. Eu penso que devemos encará-lo assim como um desafio persistente e não como um fato do passado. A catástrofe radiológica mistura coisas que tendemos a pensar como domínios separados: a vida e a técnica, a tecnologia e a sociedade, os saberes técnico-científicos e os saberes sujeitados, o cosmos e a política. A catástrofe não afetou apenas o plano da organização social, mas também o pensamento e a vida das pessoas.

 

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