“A classe média vai pagar caro pelos efeitos da redução da maioridade penal”

Data: 12 de abril de 2015

Veículo: Jornal Opção 

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Sociólogo e professor da UFG alerta para danos aos jovens decorrentes da mudança na lei, como disparada de acidentes, do consumo de bebidas e da exploração sexual

 

A redução da maioridade penal envolve muito mais do que a mera questão da criminalidade e deve trazer efeitos colaterais perversos e que terão consequências diretas exatamente sobre quem mais a defende. Esse é o alerta do sociólogo Dijaci David de Oliveira, da Universidade Federal de Goiás (UFG), onde ocupa o cargo de diretor da Faculdade de Ciências Sociais (FCS).

Nesta entrevista ao Jornal Opção, o professor faz a ligação entre o ataque ao Artigo 228 da Constituição — o que estabelece a inimputabilidade dos os menores de 18 anos — sob o argumento de reduzir a violência, em meio a outros potenciais interesses de empresas e indústrias que financiam campanhas eleitorais, como os setores automobilístico e de bebidas. Em suma: a redução da maioridade penal não vai servir quase nada para reduzir a criminalidade, mas vai favorecer o lucro de mercados que ganharão mais consumidores com a redução da idade penal.

Dijaci, que tem doutorado em Sociologia pela Universidade de Brasília (UnB), com tese sobre desaparecidos civis, também faz observações sobre a relação entre as instituições policiais e a sociedade. “A polícia precisa criar uma política interna de retratação e de recuperação dessa imagem negativa”, afirma.

Elder Dias — A aprovação na CCJ [Comissão de Constituição e Justiça] da Câmara dos Deputados da proposta de redução da maioridade penal mostra o que é o Congresso Nacional na realidade ou isso é apenas sinal daquilo que a sociedade realmente deseja?

De fato, a sociedade deseja isso. Mas o desejo da sociedade é conforme o grau de informações que ela tem. E as informações que a sociedade recebe estão equivocadas. Passam para a sociedade uma visão de que a redução é a saída e ela está acreditando. É uma visão equivocada e temos de procurar informações de confiança e debater o assunto com mais profundidade para termos ideia do que realmente acontece. Dizem que o Congresso é mais conservador, mas, para mim, continua com o mesmo perfil de sempre. Só que, agora, é um Congresso que precisa fazer algo que a sociedade deseja para melhorar sua imagem, que é muito ruim. O grau de confiança no Legislativo é baixíssimo e procurarão dar respostas as mais eleitoreiras.

Elder Dias O Congresso tem a mesma rejeição que o Executivo, só que o foco, talvez, seja mais disperso.

Eu não diria que é só isso. Há uma confluência de interesses por trás da redução da maioridade penal. Há pessoas que, realmente, querem a segurança e acreditam que isso ajudará. Tem pessoas que estão sendo movidas por essa onda de insegurança e que acha que é preciso punir um garoto que cometeu tal crime. Mas também há pessoas que só têm interesses políticos. Isso é no mundo inteiro, no Brasil também. Eu mesmo acredito que exista muito mais um interesse econômico do que em segurança; aliás, eu diria que por segurança não existe nenhum interesse específico. Muitos vão olhar e dizer que com a maioridade penal não vai mudar nada em relação à segurança pública.

Marcos Nunes Carreiro — Como o sr. vê a questão da redução da maioridade penal diante desse quadro de um quadro onde impera a impunidade?

Quem defende a redução da maioridade penal está falando que, de fato, existe uma impunidade para os menores — o que não é verdade. Há os que apostam no encarceramento, que acham que, reduzindo a idade penal, esses delinquentes vão ficar mais tempo na cadeia. Veem o encarceramento como solução, o que também não é verdade.

E por que não é? É que estou tomando um segmento ínfimo para resolver um problema grave de violência. É como se houvesse dois caminhos, um com 98% de risco de morrer e outro com 2% do mesmo risco. Em qual você iria? Obvia­mente, todos iriam pelo caminho com 2% de risco, no qual se tem 98% de chance de sair vivo. Esses 2% são a porcentagem dos crimes provocados por adolescentes e os 98% são crimes referentes aos adultos. Por que dizer às pessoas que se vai resolver o problema da violência atacando os 2% e não os 98%?

Aqui, então, começamos a perceber que há outros interesses por trás da questão. Quando comecei a ler as propostas sobre redução da maioridade penal, acabei me deparando com outros projetos paralelos, como os que visavam permitir ao jovem dirigir aos 16 anos. Achei interessante a quantidade desses projetos, que eram mais de 50, assim como era mais ou menos o mesmo número para a questão da maioridade penal. Ambos têm o mesmo problema: esbarram no mesmo ponto da Constituição, o Artigo 228 [“São penalmente inimputáveis os menores de dezoito anos, sujeitos às normas da legislação especial”].

Elder Dias — E o que o sr. observou, particularmente, ao notar isso?

Ora, se eu quiser vender carro para quem tem 16 anos, será preciso mudar esse artigo, já que, se o garoto não pode responder penalmente, também não pode dirigir — afinal, se ele atropelar alguém, quem responderá pelo crime? Observei, então, que o senador Magno Malta (PR-ES) tem um projeto de redução da maioridade e outro para obter CNH aos 16 anos, usando o mesmo argumento, de que o jovem de hoje é “mais informado”. Por que dizer que ele quer resolver a questão da criminalidade e não dizer que ele quer que se vendam mais carros? Quem financiou a campanha de Benedito Domingos [deputado distrital pelo PP-DF, ex-deputado federal e autor do projeto de redução da maioridade que avança na Câmara]? E o projeto anterior, relatado pelo então senador Demóstenes Torres e de autoria do ex-senador José Roberto Arruda, quem o financiou? Quem financia boa parte de todas essas campanhas? Com certeza, vamos encontrar revendedoras de automóveis, que querem ampliar seus negócios.

Quem quer fazer uma política pública eficiente contra a violência não vai se preocupar com os 2%, mas, sim, com os 98%. E mesmo dentro desses 2%, no crime com que mais se preocupa, que é o de homicídio, vão ver que a incidência é menor ainda. Ou seja, se alguém quer resolver a questão dos homicídios é preciso focar nos adultos. Vamos, então, encontrando outra resposta à questão: percebe-se que não se quer reduzir a maioridade penal por conta da violência, já que os estudos demonstram que isso não ocorreria; o que se quer, de fato, é vender mais automóveis, porque há mandatos que foram financiados por fábricas ou revendedoras que querem alargar seu mercado e a barreira para isso é o Artigo 228.

Elder DiasO que o sr. está dizendo é que é preciso ir além da lei da redução da maioridade penal para entender o que realmente está acontecendo e conhecer os interesses envolvidos?

Exatamente. Toda lei não é construída a partir de interesses? Essas empresas querem vender mais, mas precisam convencer a sociedade de que isso é bom um garoto de 16 anos poder ganhar um carro de sua família para ter liberdade para ir à escola ou à faculdade. Estão vendendo a ideia de que o interesse é pela segurança, mas, na verdade, o que está se visualizando é venda de veículos. Se um deputado consegue aprovar uma lei assim, com certeza vai produzir um ganho para essas empresas de tal forma que isso vai reverter em mais recursos para sua próxima campanha. Há até mesmo uma disputa para ver quem consegue aprovar.

Elder Dias — Então aqui acabamos chegando a um velho problema, que é o financiamento privado das campanhas eleitorais.

Claro, o que está em questão tem muito a ver com financiamento de campanhas. Outro segmento que está bastante envolvido e quer retorno é o de bebidas. Pense bem: quantos milhões de jovens vão poder comprar bebidas porque a lei então vai passar a permitir esse consumo? Perceba que a redução da maioridade penal vai moderar todas as demais. Se ela muda, todas as demais serão afetadas. O professor Fran­cisco Tavares, da FCS, diz que “ora, pela lógica, se você pode mais (responder criminalmente), por que não pode menos (beber cerveja)?” Imagine o tanto de bebida que poderá ser vendida a mais, no Brasil inteiro, em benefício de uma indústria que financia campanhas.

Elder DiasDe fato, não há lógica em responder por crimes aos 16 anos e não poder exercer os supostos benefícios que lhe são tolhidos pela lei. Todas as leis restritivas vão cair por terra, já que o jovem poderá ser apenado.

Por isso, penso que o que mais está em questão no Congresso não é a violência.

Elder DiasA questão do combate à violência, com a redução da maioridade, é uma cortina de fumaça?

Como há uma sociedade envolvida pelo medo — porque se criou a cultura do medo —, ela vai acreditar que estão defendendo os “nossos” interesses por lá. Na verdade, o Congresso está defendendo o interesse de seus financiadores. Se estes querem vender carros ou bebidas para novos segmentos, um mercado poderosíssimo, vão usar esses artifícios. Ocorre que vamos ter o que chamo de efeitos perversos. Vão criar uma lei que causará mais problemas.

Vamos observar: que questões mais incidem na morte de jovens? Bebida e automóvel. Ou seja, as classes média e média alta vão comprar a ideia da redução da maioridade penal e vão entregar seus filhos a um risco muito maior de morrer, porque a probabilidade de crescimento do número de acidentes será grande e o risco de essas famílias perderem seus filhos também crescerá. No fim, a redução da maioridade vai aumentar a violência, já que vai aumentar o consumo de bebidas é uma das questões que mais influenciam na criminalidade do Brasil, assim como os acidentes automobilísticos também vão subir. A classe média vai pagar caro. Mas os financiadores das campanhas eleitorais não se importam com isso. Tampouco seus representantes que estão no Congresso.

Elder Dias — O sr. pode falar mais sobre esses “efeitos perversos”?

Eu trabalho com quatro fortes efeitos perversos da redução da maioridade penal. O primeiro é o aumento da incidência de mortes por acidentes de trânsito. Haverá seguramente uma pressão forte por venda de automóveis para esses jovens. Para a classe média alta, à primeira vista, será um prêmio não ter de levar seus filhos à escola, eles poderem ir sozinhos, serem “independentes”. Na verdade, só verão que isso não é um prêmio quando tiverem de enterrar um filho vítima de acidente.

O segundo efeito perverso é o aumento do consumo de bebidas alcoólicas. O álcool é, de longe, a droga que mais causa estragos na sociedade brasileira: internações, acidentes, mortes, suicídios, dependência. O terceiro efeito é o aumento da exploração sexual comercial, sob um segmento que tinha uma relativa proteção e passa a ser mercado prioritário. Imagine o tanto de revistas, sites e outros que vão poder utilizar um mercado legal, vender um produto novo para um público novo e com conteúdo novo, estampando jovens de 16 a 18 anos.

Elder Dias — Problemas, por exemplo, com aumento do turismo sexual, entre outras coisas.

Também, porque vai passar a ser legal esse segmento (acima de 16 anos) e jogando mais pressão sobre o que será a nova faixa ilegal (abaixo de 16). Por fim, o quarto efeito perverso será a exploração ilegal do trabalho. Vão pressionar para que certas proteções aos jovens caiam para empregar jovens dessa faixa (dos 16 aos 18), por exemplo, em atividades insalubres ou precárias. São efeitos seriíssimos para a sociedade. Ainda poderíamos pensar em outras consequências, mas bastam essas para pensar: será que vale a pena apostar nessa redução da maioridade penal? É uma aposta que será cara, especialmente para a classe média.

Cezar Santos — Sobre a redução da maioridade, independentemente se vai cair a criminalidade ou não, não se trata simplesmente de punir, isolar um pessoa nociva à sociedade, seja qual for a idade dela? Eu cito o exemplo de Champinha [Roberto Aparecido Alves Cardoso, menor que participou dos assassinatos de Felipe Caffé e Liana Friedenbach, em 2003, em São Paulo e está interditado civilmente por ter doença mental que coloca em risco a sociedade], cujo crime foi horroroso.

Mas há quanto tempo ele está preso? E ele continua encarcerado, não está solto. Existe um mecanismo que o mantém preso. O tempo em que ele supostamente poderia estar solto passou, mas ele continua encarcerado com outro mecanismo que o Ministério Público Estadual utilizou.

Cezar Santos — Normalmente, quem se coloca contra a redução da maioridade gira em torno do argumento de que é algo definitivo: “Países que adotaram não tiveram a redução da criminalidade.” Essa argumentação não empobrece o discurso?

Mas o que se faz que não se compara a outra coisa? Todas as políticas do Brasil são comparadas a alguma política do mundo. Para pensarmos que é uma política que vai funcionar no Brasil, pegamos um modelo que existe lá fora. Mas nós não temos nenhum país como nosso. Ou seja, qualquer comparação é problemática. Ainda assim, é considerado normal o uso da comparação para ter algum parâmetro. Então vejamos, por exemplo, o caso do México, que espalhou policiais municipais de tal forma que criou uma política totalmente desestruturada de polícias. Não tinha controle algum mais. E algumas polícias se tornaram verdadeiras organizações criminosas de prefeitos corruptos. Pense no Brasil, com 5 mil municípios, se já há dificuldades gigantescas no modelo atual, imagine com 5 mil polícias municipais. Seria o caos. No México, então, hoje extinguiram esse modelo.

O modelo mexicano serve como exemplo para refletir se a saída é estimular a criação de mais polícias. Provavelmente, um ou outro município poderia ter, porque sua estrutura é maior do que a de um Estado, como o caso de São Paulo. Nós temos mais de 50 países que adotaram a política de redução da maioridade penal. Preciso ver se houve efeitos. Se na maior parte deles a redução deu certo ou não, de qualquer forma eu teria um indicador importante.

A mesma coisa pode ser feita com modelos de encarceramento. Os EUA produziram um modelo de encarceramento expressivo. Muitos foram procurar o modelo americano para mostrar que o encarceramento foi importante para a redução da criminalidade e aplicá-lo no Brasil. Hoje, nós sabemos que o encarceramento em massa, como se chama nos EUA, não foi o responsável pela redução da criminalidade. Os estudos mais recentes — feitos com base em análise de regressão, pegando indicadores de economia, de qualidade dos investimentos nos quadros policiais — mostraram que a correlação entre encarceramento e redução da criminalidade foi quase irrisória. O que realmente fez cair a criminalidade foi a qualificação da polícia. Investiram em inteligência, em treinamento e, assim, a criminalidade foi reduzida.

Cezar Santos — O Estado paga bem a carreira policial?

Aí, entra outra comparação: os EUA podem pagar bem, são um país rico. E qual a nossa capacidade de pagamento? Goiás poderia pagar mais? Sim, porque, nos últimos anos, cresceu acima da média nacional. Essa diferença de crescimento é que tem de ser distribuída para garantir que consigamos remunerar melhor nossos policiais. Não vou comparar a Brasília, pois lá quem paga é a União, não o Estado. Mas Goiás em relação a outros Estados, poderia remunerar melhor, porque produziu mais riqueza, e isso significa que tem mais dinheiro para ser distribuído em forma de remuneração de professores, de médicos, de policiais.

Elder Dias — Se existem mecanismos para prender, existem também artifícios para soltar, utilizados por agentes públicos. Ou seja, no Brasil ainda há muito isso de, dependendo da situação, conseguir soltar alguém e, da mesma forma, dependendo da situação, prolongar a pena de alguém?

Teríamos de fazer um histórico do Direito Penal brasileiro. Por que algumas pessoas cometem crimes e nunca entram em uma prisão? E por que outros, que não cometem nada e ficam 20 anos na cadeia? Isso acontece no Brasil e em outros lugares do mundo. Existe uma lógica do sistema judiciário que precisamos compreender para saber como essas distorções acontecem. Um poder que deve muito à sociedade é exatamente o Judiciário. Temos uma forte observação do Executivo e olhamos o Legislativo com relativo distanciamento. Mas ignoramos o Judiciário, que é tão responsável quanto qualquer dos outros dois.

O Judiciário tem distorções monstruosas, pois toma decisões que beneficiam uma pessoa aqui e, ao mesmo tempo, outra pessoa que cometeu o mesmo ato está sendo punida de maneira extremamente rigorosa. Como funcionam essas decisões dos juízes e desembargadores que permitem essas distorções gigantescas? Se alguém deixa de pagar uma dívida pessoal tem uma punição rigorosa, mas aquele outro que sonegou R$ 100 milhões ganha é uma honraria. A pessoa que tem um excelente advogado e outra que precisa de um defensor público ambas teriam que ter uma decisão similar de um juiz, mas não é assim. Que se construa um parâmetro nacional claro para compreendermos a lógica de funcionamento da Justiça.

Elder Dias — Na semana passada, um policial [soldado PM Pedro Henrique Teodoro, do Grupo de Intervenção Rápida e Ostensiva (Giro)], morreu depois de, estando de folga, trocar tiros em uma boate com dois homens armados que, pelas informações, eram criminosos. E, mais uma vez, foi verbalizada em vários setores, como as redes sociais, a mensagem que reforça que os “direitos humanos” — ou as entidades ligadas aos direitos humanos — só protegem bandidos, e nunca os policiais, por exemplo. Como podemos esclarecer melhor o papel dos direitos humanos?

Essa é uma visão bem distorcida do que representa os direitos humanos. Os direitos humanos servem para todas as pessoas. Aliás, defender os direitos humanos é defender saúde, educação etc. Esses são direitos humanos conquistados ao longo de séculos de mobilizações sociais, de pensamento e organizações políticas. O pensamento liberal foi fundamental para constituir boa parte daquilo que hoje nós temos como direitos humanos, os direitos civis, os direitos políticos. Poder escolher nossos representantes, por exemplo, foi um direito conquistado, não foi algo dado.

Toda lógica de pensamento busca sempre os limites. Se já conquistamos o direito à educação, à saúde, o direito a votar e a ser votado, temos de ver o que falta. Alguns segmentos ainda estão fora desse campo dos direitos, então temos de aumentar esses limites, assegurar o que ainda não foi conquistado. Se uma pessoa é presa e tem direito a não ser torturada, então vamos garantir que isso funcione, porque é fundamental. E não é fundamental só porque achamos bonito, mas porque uma pessoa torturada vai falar o que não fez, vai confessar para parar de sofrer violência. Portanto, os direitos humanos defendem todas as pessoas: os policiais, os bandidos, as crianças, as mulheres. Mas há essa visão distorcida de que os direitos humanos não se preocupam com nada disso. Ora, se houver crianças fora da escola, por exemplo, as entidades ligadas a essa campo vão questionar esse problema.

Elder Dias — É certo então dizer que as pessoas e entidades ligadas aos direitos humanos buscam alcançar aqueles que estão à margem, os que não são beneficiados ou são pouco beneficiados pelo sistema?

A lógica dos direitos humanos é realmente amparar as pessoas que estejam à margem, que não têm ninguém por elas: a família não é capaz de fazer nada, a comunidade dela, também não. Alguém precisa se mobiliza para garantir isso. Podem questionar, por exemplo, que morreu um policial e ninguém foi lá fazer algo. Primeiramente, temos de observar que já temos várias instituições que vão amparar sua família. Pelo menos se espera que seu sindicato e sua associação de classe estejam atentos e façam alguma coisa, é o esperado. Ele tem uma estrutura com a qual pode contar. No caso do policial, agora se sabe que houve um fato e a sociedade precisa saber o que aconteceu. E aí temos mais direitos em jogo, que são o direito à segurança, à vida, ao ir e vir. O que aconteceu ali? Daí devemos, sim, solicitar que haja investigação, punição às pessoas que foram responsáveis. Não há nenhuma ação, nenhum grupo, pelo que eu saiba, que esteja defendendo quem matou o policial.

Cezar Santos — Não há uma desqualificação a priori do papel da polícia? Em qualquer fato, a acusação é logo de excesso do policial. Os meios acadêmicos e a própria imprensa colocam de antemão que a polícia está errada.

Existe uma forte cultura na sociedade de que a polícia é violenta e responsável quando acontece uma agressão ou morte. O que ocorre é que temos um histórico de participação da polícia em eventos nos quais ela não deveria ter participado ou onde se esperaria que ela tivesse tido outra ação. Há, sim, essa imagem negativa da polícia, que é muito forte, e isso de fato está presente na academia, na mídia, em vários lugares. Mas a polícia também é responsável por esse quadro.

Espera-se que toda instituição veja como seus atos estão repercutindo na sociedade e tente se corrigir. Nesse sentido, a polícia tem feito muito pouco. Não tem uma melhor comunicação, um assessor de relações públicas que explique os atos, que dialogue com a comunidade e até peça desculpas quando sai algo errado. Apenas quer passar a ideia de que está certa, de que não fez nada demais e de que é injustiçada. Não, a polícia comete equívocos. A universidade, quando ela, assume que errou e tenta fazer uma mudança. Uma empresa qualquer, um supermercado, quando expõe um produto de forma irregular, se retrata, faz uma modificação. É isso que se espera também da polícia, mas que não ocorre. Tudo começa pelo fato de que ela não julga internamente. Sabe-se de vários casos de policiais que cometeram ações ilícitas e passaram-se dez anos sem qualquer medida. Se a polícia não é capaz de punir um policial que cometeu desvio, como podemos confiar nela? A polícia precisa criar uma política interna de retratação e de recuperação dessa imagem negativa.

“Historicamente, a polícia tem imagem negativa na sociedade”

Cezar Santos — Há uma corrente que diz que isso seria resquício da ditadura, quando a polícia teve um papel exacerbado, até de coonestar o que acontecia. O sr. concorda?

Eu diria que isso vem de bem antes. O período da ditadura somente deu mais ênfase a um tipo de prática que, aliás, ocorrem mais na Polícia Militar que na Polícia Civil. É o que chamamos de militarismo, em que se impõe uma prática e uma cultura que levam os indivíduos a assumirem determinadas atitudes. O militarismo trabalha muito a hierarquização, a lógica da obediência, a submissão. Quando se conversa com um soldado do Exército, seu comportamento é totalmente diferente ao de qualquer outro jovem. Fui professor em Brasília e tive muitos alunos soldados. Eles sempre se dirigiam a mim colocando as mãos para trás e com atitude passiva, sem perguntar nem questionar. Isso porque foram treinados assim. Essa lógica do militarismo é bem anterior à ditadura e se dá num modelo de treinamento que surge lá atrás, com os espartanos. Com a ditadura, houve uma consolidação dessa prática. Após a ditadura, muitas instituições mudaram, mas a lógica militarista não permite uma mudança tão rápida.

Marcos Nunes Carreiro — E a resistência da sociedade à ação da polícia, isso vem de quando? Por que as pessoas a veem mais como um meio de opressão do que de auxílio?

No livro “Memória de um Sargento de Milícias” [romance de Manuel Antônio de Almeida, publicado em 1854] já se percebe que havia na história do Brasil essa visão negativa da polícia, retratada sempre como uma instituição pronta a bater, truculenta. Recentemente, um aluno que terminou o mestrado no Programa de Direitos Humanos, na UFG, narrou exatamente esse discurso, que existia já no Brasil colônia, e a preocupação dos dirigentes portugueses com o excesso de violência da polícia, que estava se tornando incontrolável. Essa preocupação está registrada nas cartas enviadas a Portugal. Li recentemente o livro “El Testigo”, sobre a violência policial no Equador, e vê-se que lá as práticas são as mesmas. O autor [Hugo España Torres], um ex-policial, relata os treinamentos, a organização policial interna, tudo aquilo que ocorre de forma a deixar o policial cada vez mais insensível. Por exemplo, narra que eram estimulados a criar animais de estimação, gatos e cachorros, e, depois de seis meses, tinham de pegar seus bichos e matá-los na frente do grupo, para mostrar que não tinham nenhum apego. No tiro ao alvo, colocavam o nome da mãe do soldado e ordenavam para que ele atirasse. Esse treinamento feito pelo polícia do Equador tinha como objetivo desumanizar a pessoa. Quanto menos sensibilidade os soldados tivessem, mais obedientes eles se tornavam. Então, se lhes fosse mandado atirar em qualquer um, ele atiraria sem titubear.

Cezar Santos — O sr. pode dizer se a polícia goiana é melhor ou pior que a brasileira de modo geral?

Em termos de desempenho, ela não tem se mostrado melhor. Não sei se é pior, mas melhor não tem sido. Quando se observam os dados da região Centro-Oeste, é possível ver Mato Grosso e Mato Grosso do Sul apresentando queda no número de homicídios, o Distrito Federal com relativa estabilidade e Goiás, nas últimas duas décadas, crescendo enormemente. Então, temos um indicador mostrando que, muito provavelmente, a polícia goiana não está entre as melhores. Mas é um indicador, teríamos de analisar outros dados para saber se realmente é isso. Agora, temos outro fator: vemos queixas feitas pelos próprios policiais nas audiências públicas, como a de que a Polícia Civil está sucateada e não tem equipamentos. Logo, a situação é muito precária. Não vemos investimentos. Temos falta de delegacias e delegados e investigadores em número insuficiente. Dessa forma, a polícia não tem como ser eficiente.

Para desvendar um crime é necessário ter equipamento técnico, é um trabalho que exige tecnologias das mais variadas. Se o criminoso deixou um botão na cena do crime, por exemplo, técnicas e tecnologias podem fazer daquele objeto uma peça importante para saber quem praticou o crime. Caso contrário, o botão será apenas um objeto insignificante. Um bom exemplo é o caso dos garotos que foram mortos em Luziânia, vítimas daquele maníaco [Adimar de Jesus Silva, que, preso, confessou seis mortes e foi encontrado morto em sua cela, em abril de 2010]. A polícia investigou e disse que não tinha nenhuma pista sobre os garotos. Aí uma mãe vai ao local, sem nenhum conhecimento específico, cava o local e acha uma parte do corpo do filho. Como uma instituição treinada não encontra nada e uma mãe consegue, com um pedaço de toco? Essa é uma demonstração evidente de que a polícia não é eficiente.

É preciso fazer um investimento significativo na Polícia Civil, que é quem faz a investigação e está em contato direto com os familiares. É essa a polícia que está mais próxima à comunidade, porque, se vai fazer uma investigação, é preciso estar perto. Ela é capaz de solucionar crimes? Em média, as polícias já elucidam muito pouco. Sem estrutura, menos ainda. A maior parte dos crimes que são elucidados parte de um cidadão que denuncia ter visto algo suspeito. Esse é o sistema que ainda mais funciona no mundo. É alguém que viu e passou a informação para a polícia.

Professor Dijaci David de Oliveira: “A sociedade brasileira valoriza muito mais o patrimônio do que o ser humano”

Cezar Santos — O Brasil tem índices de violência que são superiores a países em situação de conflito. Países que vivem guerra civil. Nesse ponto de vista, o Brasil é um país doente?

Não usamos mais a expressão “doente”, que já foi muito utilizada. Agora, essa situação é presente, por exemplo, em relação a acidentes de trânsito. Embora tenhamos, dos anos 40 para cá, reduzido muito a incidência proporcional de acidentes, morrem por ano em torno de 20 mil a 25 mil pessoas, um número absurdo. Outro drama são os homicídios, com dezenas de milhares todo ano. Temos de olhar bem para a cultura brasileira: desde crianças muitos de nós aprendem que não se deve levar desaforo para casa, que não se deve fugir de um desafio. Se sofrer um insulto, é preciso reagir. É preciso demonstrar que se é “macho”. Essa cultura da rixa e do desafio existe na juventude brasileira e é uma grande responsável pela forte incidência de homicídios e acidentes de trânsito. Por mais que se diga que os “pegas” matam, o sujeito acha que não vai morrer, ou acha que é mais importante demonstrar que é capaz de enfrentar o risco do que recuar.

Cezar Santos — E isso não é uma doença social?

Não vejo assim. É preciso desestimular essas práticas culturais, por exemplo, por meio da fiscalização. A impunidade, essa sim, produz distorções. Se há impunidade, isso de fato tem um efeito muito ruim. É preciso mostrar que haverá punição para que as demais pessoas vejam que não vale a pena arriscar e, então, deixar de fazer.

Elder Dias — O sr. tem um trabalho amplo, de doutorado, sobre os desaparecidos civis no Brasil, uma pesquisa de alguns anos atrás. O que mudou nesse tempo na questão dos desaparecimentos?

Nós continuamos a ter os mesmos problemas do inicio da pesquisa. Um deles é de que não temos dados. Essa produção de dados é crucial, mas é problemática no Brasil. Nós não temos a cultura de organização das informações, a própria polícia de Goiás reconhece isso. Os boletins de ocorrência continuam vagos, não citam a cor, por exemplo. Mas é claro que a cor interessa — para saber se aquilo tem a ver com brancos, com negros, com amarelos, com indígenas —, assim como o grau de escolaridade, a idade e a classe social, para saber sobre hábitos e práticas.

Ao fazer o cruzamento de informações, tenho um amontoado de informações, e isso dificulta. Aqui no Brasil não publicizam dados. Quando fiz minha pesquisa, tinha todos os dados do Canadá, de uma década inteira, mas nada tinha do Brasil, porque não se produzem dados. Desaparecimento não é crime. Então, se um garoto sumiu, não se tem a mínima ideia do que ocorreu. Pode ter sido um crime, um rapto, uma fuga ou simplesmente saiu sem falar nada. Pode ter sido uma centena de coisas, é um fenômeno multicausal. Mas, como não quem se queixa não sabe o que ocorreu, não vira nada. Então, continua a cultura policial de que isso é problema seu, porque não tem um crime evidenciado. Há uma visão negativa do jovem. Se some seu filho, você não poderá ter apoio, mas se sumir seu carro, aí sim, terá total apoio para encontrá-lo. O bem material vale mais do que seu filho, nessa lógica.

O desaparecimento é algo que desgasta as relações familiares e muitas famílias desmancham casamentos por não suportarem a dor. Veja a família do caso Pedrinho, por exemplo. Pense, eles ficaram 17 anos em busca do filho, sem notícias. Ninguém consegue pensar em mais nada numa situação dessas. Há uma deterioração da família, porque não tem almoço festivo, comemorações, não tem mais relacionamento interno. As famílias perdem dinheiro, porque passam a recorrer a investigadores particulares, cartazes, publicidade e outros meios que são onerosos.

Detectamos, no estudo, primeiramente o preconceito que se tem em relação ao jovem. Em segundo, uma falta de treinamento e de padrão da polícia para investigar essas ocorrências. Seria preciso ter mais intercâmbios para a polícia brasileira, isso é importante, precisam saber como é feita a investigação de desaparecidos no Canadá, Reino Unido, França, Espanha.

Na pesquisa, conseguimos descobrir que um terço dos desaparecimentos de mulheres é na faixa de 12 a 15 anos, justamente a que há a mais forte exploração sexual. É um tema que continua ainda em aberto. Temos uma legislação que prioriza o econômico em detrimento das pessoas. No Código Civil, usamos “ausente” para o desaparecido no dia a dia, e “desaparecido” para o morto do que não se encontrou o corpo, como é o caso de Ulysses Guimarães [deputado vítima de acidente de helicóptero no litoral de Angra dos Reis (RJ), em 1992]. Isso se dá por conta das questões de bens, ou seja, para que os familiares do desaparecido consigam mexer no patrimônio. É uma linguagem que se preocupa mais com o bem material do que com a pessoa. A sociedade brasileira valoriza muito mais o patrimônio do que o ser humano.

Frederico Vitor — Como o sr. avalia a experiência do Simve [Serviço de Interesse Militar Voluntário Estadual], que o Supremo Tribunal Federal julgou inconstitucional, causando a saída imediata de 2,5 mil militares das ruas de Goiás?

Foi uma aposta equivocada do governo. Quando deixam de empossar um policial para contratar um temporário, faz-se uma aposta mais barata, cujo preço agora fica muito caro. Desde o começo deveriam ter investido no quadro efetivo, porque em algum momento esse servidor terceirizado teria de sair. O Estado treina um funcionário e ministra um curso para alguém que vai sair daqui a três ou cinco anos. Isso é uma perda, algo ruim, um equívoco das políticas de terceirização. É semelhante ao que aconteceu na década de 90, com a pulverização de vários modelos de gestão, como a reengenharia. Queriam uma empresa mais enxuta, mandaram gente embora e perderam a memória técnica. Quando contrataram os policiais do Simve, investiram em policiais que ficariam apenas por certo período e que, ao sair, levaram toda a técnica e todo o conhecimento. É preciso investir em quem vai permanecer.

Ao perder esses 2,5 mil policiais tudo o que se investiu foi por água abaixo. O governo fez uma aposta num investimento equivocado, ao invés de chamar os aprovados dentro de um sistema legal. Mesmo que se chamasse o aprovado em milésimo lugar, teríamos uma garantia de que essas pessoas ficariam 10, 15, 20 anos dentro daquela corporação e todo o treinamento que receberam seria aproveitado. O Estado tem de estimular a manutenção de seu quadro de pessoal longos anos, porque custa caro o investimento em treinamento. Quando o mercado fala que falta gente qualificada, diz isso porque quer quadros mais qualificados ainda para economizar com o treinamento. Por exemplo, por que as empresas farmacêuticas não fecham acordos com as universidades para que invistam mais na academia e absorvam a mão de obra que sai qualificada de lá?

Marcos Nunes Carreiro — Jorge Paulo Lemann, presidente do Grupo Ambev, já faz isso: investe em formação de pessoal por meio de fundações que ele tem. Mas enfrenta dificuldades com isso no Brasil, porque as universidades são resistentes a receber tais doações, embora suas fundações tenham convênio com universidades americanas do porte de Harvard e Stanford.

Se há uma dificuldade de doar, mas se tem uma fundação, pode conceder bolsas. Isso funcionaria tranquilamente. Várias empresas já fizeram isso, embora realmente talvez haja dificuldade aqui no Brasil. Se você quiser doar R$ 50 mil à UFG, será algo complicado, porque a legislação brasileira apresenta várias limitações. Não se pode doar qualquer quantidade, mas apenas uma quantidade específica, conforme o que se vai abater no imposto. Poderia haver um sistema mais simplificado, para que qualquer um que quisesse doar o fizesse de forma fácil e rápida.

Geralmente um empreendedor que doa bolsas quer que façam por aqui mesmo no Brasil pesquisas que vão beneficiá-lo em sua empresa. Mas, se aqui ele não consegue encontrar uma universidade, ele vai recorrer ao exterior e montar essa estrutura. Mas, se ele requer algo que isso não existe no Brasil, também pode estimular. Pode investir na Embrapa [Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária], por exemplo, uma grande empresa. Ocorre que todo o conhecimento que ele vier a desenvolver tem de ser aberto, não pode ser apenas dele. Se ele encontra dificuldades com as universidades públicas, poderá fazer com as instituições privadas. A doação em si é algo que podemos resolver.

Cezar Santos — O suicídio ainda é um assunto tabu na sociedade, principalmente na imprensa. Sabemos que Goiânia tem um dos mais altos índices de suicídio no Brasil. Como o sr. lida com essa questão?

É preciso, sim, expor os dados. Existe a prática no Brasil de não divulgar dados, de forma geral. Em vários países, principalmente Estados Unidos, Canadá e Europa, se você quer conhecer alguma cidade, você tem acesso online sobre os índices de homicídios, sobre as regiões etc. Se alguém quer se mudar para uma cidade, é um direito saber esses dados. Mas no Brasil não temos isso, porque o governante está sempre pensando na próxima eleição. Acha que, se expor dados, estará expondo suas informações. Ora, essas informações têm de ser públicas.

Da mesma maneira, é o suicídio. Por que as pessoas estão se matando em Goiás? Ocorre que o suicídio acaba ficando na esfera familiar. Alguém terá de dizer por que acha que o filho, o marido ou a esposa se matou. E isso é mais delicado. Fora isso, existe uma opinião muito equivocada de que, se falar de suicídio, vai ser estimulada a prática, o que não é verdade, pois, se fosse assim, ao falar de homicídio o estimularíamos também. A questão é discutir o tema e compreendê-lo. É necessário aprofundar a discussão, pois existe o suicídio por incidência do consumo de drogas, em decorrência de doenças psíquicas, por causa da solidão etc. É preciso verificar a incidência e suas possíveis causas — por exemplo, pesquisar o uso de defensivos agrícolas, se isso pode ser um fator de distorção.

Cezar Santos — Não faltam estudos sobre esses casos? A academia não poderia ajudar a refletir sobre isso?

A academia tem realizado muitas pesquisas. Estudamos centenas, milhares de coisas. O problema é que estudar é uma coisa, outra coisa é fazer com que aquele conhecimento saia da academia e estimule um debate, uma discussão. Não é um debate simples. Algumas universidades têm feito isso de maneira mais eficaz. A UFG, por exemplo, tem trabalhado mais com sua assessoria de comunicação para divulgar aquilo que está sendo pesquisado na universidade. Agora, no caso do suicídio, não conheço alguém que esteja estudando os casos com profundidade — selecionando uma região, verificando os casos e os hábitos daquela comunidade ao longo de um determinado período, entre outras tarefas. Isso precisa ser feito, porque há municípios em Goiás com uma incidência muito acima da média nacional de suicídio. Talvez haja algum estudo na Faculdade de Psicologia da UFG ou em algum outro lugar, como o IFG [Instituto Federal de Goiás] ou a UEG [Universidade Estadual de Goiás]. Alguém precisa estar pensando nisso. É um estudo necessário, mas que demanda recursos financeiros e de pessoal para a pesquisa, o que em Goiás não é algo simples.

Marcos Nunes Carreiro — Só em Goiás ou seria no Brasil, de forma geral?

No Brasil, em geral, mas em Goiás mais especificamente. Em outros locais do País há agências financiando pesquisas, como no Rio de Janeiro e em São Paulo. E isso tem peso significativo. Aqui temos a Fapeg [Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Goiás], que, nos últimos anos, tem financiado muitas atividades e incentivado muitas pesquisas com bons aportes de recursos. É uma contribuição importante e esperamos que ela se consolide e se desenvolva mais. Mas falta, por exemplo, uma participação significativa do empresariado local, que ajuda muitíssimo pouco em pesquisas. É de seu interesse, também. Quando se estimula a pesquisa, é a sociedade que sai ganhando.

Elder Dias — As pesquisas apoiadas pelos empresários goianos, quando existem, se concentram no setor do agronegócio.

É fato que existe baixíssima doação para as universidades. Não falo apenas para a UFG, mas para qualquer universidade. Doa-se muito para eleições políticas, mas não para a ciência.

Elder Dias — Nos Estados Unidos parece ser muito mais simples e dinâmico o processo de doação para universidades. No Brasil, há muitos obstáculos burocráticos.

A nossa lei é muito resistente. Estive na Universidade de Arkansas (EUA) e fiquei impressionado. Todos os prédios eram praticamente fruto de doações. E a universidade é paga. A universidade tem uma biblioteca extraordinária feita com recursos de doação. Colocaram o nome do principal doador na biblioteca. Tinha uma sala de vídeo com o nome de outro doador. E todo aluno que forma lá tem orgulho de dizer que arrumou um emprego por causa disso e doa algo, nem que sejam 10 dólares.

Marcos Nunes Carreiro — Isso não vem da visão de que, no Brasil, em todas as áreas, ainda se tem o Estado como “o provedor”? Não seria preciso entender que o Estado não consegue arcar com tudo?

Há várias explicações. É uma cultura que tem a ver com a ideia de nação, de o indivíduo fazer parte daquela comunidade. Mas no Brasil mesmo temos várias formas de organização nesse sentido. Alguns municípios do Brasil nem parecem ter administração. Já em outros se vê algo bem organizado, com jardins etc. Aí se pergunta: por que tal município tem jardins e outro não tem nada? Evidentemente, a cultura estadunidense é bem diferente da nossa, com práticas bem diversas. Por exemplo, a ideia de sentir uma universidade como sua, isso a gente não tem aqui. Lembro-me de que Cristovam Buarque [senador pelo PDT-DF, ex-governador do Distrito Federal e ex-ministro da Educação] tinha a proposta de que o aluno que fizesse mestrado ou doutorado depois doasse, durante um ano, serviços à comunidade como compensação por aquilo que ele recebeu. E muitos colegas tinham uma resistência enorme a isso. Qual é o absurdo nisso? Quanto custa fazer um mestrado ou um doutorado? Por que não podemos doar nada de volta? Ou seja, é uma lógica de que o Estado precisa prover tudo e o indivíduo não precisa se comprometer com nada. Ora, é preciso se comprometer, sim. Espero que todos os alunos que entram no mestrado ou no doutorado o concluam, porque, se ele fizer três anos de doutorado e abandonar, são três anos de recursos públicos gastos à toa. Se fosse fazer uma pós-graduação dessas em instituição privada, pagaria caríssimo pelo curso.