A poética meditativa de Jamesson Buarque

Data: 14 de junho de 2015

Veículo: Jornal Opção

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Miguel Jubé

Especial para o Jornal Opção

“Meditações” é o primeiro livro da coleção “cabeça de poeta” publicado pela martelo casa editorial (assim mesmo, leitor, tudo em caixa baixa). A editora goianiense começou do trato entre os amigos Lucas Mariano e eu, Miguel Jubé, na metade de 2013. A ideia era criarmos uma editora em que, eu como coordenador editorial e ele como diretor de arte, conseguíssemos atingir um padrão de excelência para as nossas edições. Depois de estudos, pesquisas, contato com autores pretendidos inicialmente, a martelo oficializou-se no começo de 2014, contando com duas coleções.

Pela mesma cabeça de poeta, estão no prelo: Edmar Guimarães, Glauco Mattoso, Bocage, Laurindo Rabello, Luís Delphino, Heleno Godoy, Wesley Peres, Paulo Guicheney, Horácio Costa e, dentre outros, a tradução do jovem poeta dinamarquês-palestino Yahya Hassan, cuja poesia tem chamado a atenção do público especializado e do público não especializado pelo mundo. A coleção “ideia e memória” publica prosa científica em humanidades e literatura e possui, dentre alguns de seus autores, o próprio Jamesson (sairá pela martelo, em organização conjunta com Goiandira Ortiz, “Teoria da lírica”, em dois volumes), Antonio Carlos Secchin, Luiz Costa Lima, Marco Lucchesi e Carlos Nejar.

Jamesson Buarque, poeta pernambucano radicado em Goiás (quase um goiano com sotaque), é da linha dos poetas que também são críticos/teóricos. O grau de interferência de um fazer no outro, nesses casos, é sempre arriscado – pode levar a uma erudição hermética ao leitor geral comum, o que não seria interessante, pois denotaria, de certa maneira, a supressão do mundo pela via do incompreensível. Não é este o caso de Jamesson, poeta que vincula a práxis da poesia à práxis do existir e, por isso, está no grupo daqueles de mais forte resistência.

Depois de “Os delírios” (1998), “Novíssimo testamento” (Ed. UFG, 2004), “Outra Troia” (Arte Pau-Brasil, 2009) e “Pluviário perpétuo” (PUC-GO/Kelps, 2011), circulam para o público suas “Meditações”, em edição criteriosa da martelo casa editorial.

 

Às “Meditações”

 

Sem saída

 

Portanto, deu no rádio: “Fique calmo

Tome uma taça cheia de silêncio

E só. Evite qualquer dose de arsênio,

Inclusive de carne. Deixe um palmo

 

De distância – no mínimo. Use um salmo,

Se for preciso. Seja contra anúncio

De ‘Vem por aqui’. Mas se algum prenúncio

De porta aberta para terreno almo

 

Apontar-se a seus lábios, seja esperto:

Quer Fortuna que ali tenha esperança

E que troque desterro por vontade.

Saiba: depois do errado vem o certo

E passo a passo chega a melhor dança”.

Entretanto, veloz se abisma a idade.

(p. 36)

 

‘Sem saída’ é uma das composições mais bem elaboradas da obra. Em seu verso pórtico cabe a plena função introdutória “Portanto, deu no rádio […]” pela imagética que explode ao nosso vislumbre, uma materialização com plena clarividência pela antecipação do anúncio. Ao ouvirmos ou lermos esse excerto, criamos em nós mesmos nossa mais íntima sensação de um momento que persegue uma lembrança latente e, nessa reconstrução, levam-nos intensamente à lembrança do ser humano que somos e fomos. Enxergamo-nos sentados ao lado de um rádio ou no trânsito, em ônibus, carro, trem ou metrô, ouvindo aquela notícia que se espalha dentre outras notícias pelo cotidiano.

Também enxergamos outros homens e outras mulheres na mesma situação, e também pela lembrança encadeada desses outros seres humanos chegamos à percepção mais completa do que somos: como no epílogo do livro, o poema ‘Revelação’, podemos pensar que a vida, sua vivência e sua finalidade, é “como uma rosa […] / […] / suporta chuva e outonia / presenteia a pessoa amada / ou simplesmente existe aí” (p. 131).

Dessa anunciação prévia (“Portanto, deu no rádio […]”), depreende-se uma série de imagens reconstrutoras de vidas, sempre encadeadas pela signótica da Fortuna latina ou pelo hasard, no sentido em que vivemos sempre do acaso (sorte ou azar…), e por isso devemos apenas viver, construir e colher as memórias que nos são oferecidas por cada instante, sem nos prendermos a elas, tampouco ocultá-las.

À excelência de um soneto, a resolução fluida e macia do primeiro verso em sua chave de ouro (último verso), quando se retoma a voz lírica principal (que normalmente confundimos com aquela do próprio poeta) para afirmar, das reflexões proficuamente imagéticas carregadas pelo discurso radiofônico, que passamos, por isso, estamos.

 

Por uma poética meditativa

Quando aparece em sua “Nota editorial” que “Meditações é um livro da ordem dos dias”, isso porque cabe à poesia meditativa não somente dizer o cotidiano, como ordená-lo de maneira cognoscível e, pelo exercício dialético interposto, resolvê-lo (ou buscar, no mínimo, possibilidades de resolução) num ambiente ao qual se chega aos poucos – a maturidade.

Esse caminho pôde ser visto no percurso do poeta inglês John Donne, o qual, tanto em suas “Meditações” quanto em seus “Sonetos de meditação”, estabeleceu leitura de mundo para o novo homem (o homem moderno) e condensou, na sua lide contemplativa/meditativa, alguns discursos. Estão contidas nessas “Meditações” de John Donne os lemas “nenhum homem é uma ilha” e “se te perguntas por quem os sinos do­bram, saibas, eles dobram por ti”; o legado meditativo, que no século 20 teve em T. S. Eliot seu maior representante, desdobra-se e desenvolve-se também na poesia de Jamesson Buarque, especificamente nos poemas de “Meditações”.

Temos a eterna busca pela maturidade (ou a reflexão da necessidade de sua compreensão e apreensão) no primeiro poema da segunda parte (“Meditações breves”), composta de um todo de trinta e seis poemas:

 

Do amor-1

Poderia ser um café da manhã em dia inesperado

mas também à aurora do aniversário

 

Aquelas maneiras de saber do outro exatamente

na verdade, quase, que exatamente é da Aritmética

jamais do amor

 

Certa reclamação de modelar a conduta

a conduzir, sob medida, o outro

 

Isto de hálito apropriado ao beijo, seja ao despertar

ou depois de uma carteira de cigarros

 

Isto é amor

e nisto se convive

até quando o silêncio ocupar a casa

(p. 23)

 

Ora, suspender o óbvio e captá-lo sem o des­­locar não foi nem nunca será pouco, ao menos na prédica da modernidade (tomamo-la aqui em meados do pré-Romantismo inglês e alemão). Essa relação se concretiza na passagem da corte para a cidade – as razões de mun­do e humano passam a ser outras, e a condição do humano ganha de vez seu destaque. Se nos prendêssemos à possibilidade de separação, nun­ca nos relacionaríamos – Isto é amor / e nisto se convive / até quando o silêncio habitar a casa.

Na terceira parte do livro, ‘Canção de Mallarmé’, Jamesson condensa a poética geral de seus vinte e seis anos desde a primeira publicação, recolhendo, pela experiência de seu sujeito empírico, o desenrolar e o talhar da vida pela alegoria do sujeito mulher (e da própria palavra, que no poema, ambas, se envolvem, são uno, uma engendrando a outra). Em seguida, a quarta parte, outro poema longo que compõe o livro, ‘Eros contra Afrodite’, faz a retomada de um dos temas mais intrigantes ao nosso tempo – a vaidade, em sua pequena reconstrução teogônica.

O maior poema do livro (que abarca cerca de quarenta por cento da obra) possui quarenta e oito estâncias – cada uma delas, um ciclo meditativo que se amálgama ao restante da obra, como a presença do rinoceronte, relacionando as imagens prosaicas à animalesca absurdidade constante a que somos submetidos pelo simples fato de vivermos (eis que nos recriamos em nosso próprio bestiário). O crítico e poeta paulista Claudio Daniel destaca ainda, no conjunto do livro, entre outros, ‘Autorretrato’, ‘Das cidades’ e ‘O elefante’.

É preciso, portanto, ler para ter as “Meditações”, em que percorre a consciência complexa da condição humana as perspectivas de relações quantos às diversas inscrições; como nas palavras mesmas deste poeta, há percepção e impulso depurativo “dos fatos históricos e sociais que afetam a vida pública e privada e do entendimento de que a poesia intervém visceralmente na integridade toda do mundo”.

Por que o livro de papel ou do tato do ato de ler

Há os que não estão convencidos de que o livro ainda perdurará por muito tempo (arriscaria dizer sem hesitar que enquanto durar a humanidade) – seja porque é um elemento de inscrição histórica que, desde o seu surgimento, intensificou e modificou paradigmaticamente as relações humanas, seja porque ele não é de todo um objeto substituível pela tecnologia informatizada, o conhecido e-book, produto a que não é dispensado mais do que 1% da produção editorial brasileira.

O projeto gráfico-editorial de Meditações, que envolve desde a escolha da técnica mista sobre papel de Patrícia Ferreira como base de arte até aquela dos materiais de impressão de capa e sobrecapa, cujas texturas e composições diferenciadas interferem diretamente no efeito estético oferecido pelo projeto ao leitor, confirma o que é o livro impresso em sua necessidade (de tato) para realização do ato de leitura. Não somente de tato, as Meditações permitem o descobrimento do material como realizador da leitura.

Se há vantagens nisso? Creio que sim: pegar o livro como objeto, manuseá-lo, colocá-lo na estante e retirá-lo em alta-madrugada, redescobrindo-o (e bom se esse livro permitir a sensação tátil) ainda move e comove pessoas. Deveria sê-lo, claro, muito mais amalgamado em nossa cultura, comovendo mais e mais pessoas, mas isso é outra história – por enquanto, continuemos nossas resistências.

Miguel Jubé é coordenador editorial da martelo, professor de literatura e doutorando em Estudos Literários pela Universidade Federal de Goiás.