Poeta Luiz de Aquino: "Professores do meio acadêmico muitas vezes torcem narizes aos vultos goianos"

Data: 26 de julho de 2015

Veículo: Jornal Opção

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Em 2015, quatro literator goianos têm seus centenários celebrados. Ainda que esquecidos em muitos meios, eles recebem destaque em eventos.

 

Adalberto de Queiroz

Especial para Jornal Opção

Virtualmente, propus uma conversa ao poeta Luiz de Aquino, uma conexão entre Goiânia e Hidrolândia, onde reside. Eu, dublê de poeta e empresário, animador cultural, provoquei o membro da Academia Goiana de Letras (AGL) a fazer um balanço da fraterna amizade literária mantida com o ficcionista José J. Veiga, um dos grandes Cen­tenários que Goiás celebra em 2015.

De sua parte, Aquino faz o que é devido. Depois de ter protegido o acervo de Veiga como fiel guardião, Aquino com o apoio do Sesc Goiás montou uma bela sala-museu com o acervo que ao poeta foi confiado pela esposa de J. Veiga. Na quinta-feira, 30, o Aquino falará sobre esse e outros temas, além de autografar alguns de seus mais de 20 livros publicados. A conversa integra a programação da 1ª Semana Cultural dos Amigos do Jaó.

 

As amizades literárias são cada vez mais raras. Como o sr. situa a sua tão profícua amizade com J. Veiga?

Creio ser necessário esclarecer essa tão propalada amizade entre mim e José Veiga, ou mesmo corrigir o termo. Havia, desde antes de conhecê-lo, uma grande admiração pelo pouco que havia lido de sua lavra –– alguns contos e eventuais publicações em periódicos. Conheci-o em abril de 1978, na casa de Dona Geny, no Largo do Rosário, em Pirenópolis, onde hoje há a pousada Dona Geny. Desde então, cuidei de manter a proximidade, com a troca esporádica de cartas (foram muito poucas) e as minhas visitas à sua casa, na Glória, Rio de Janeiro. E para ficar claro, sua casa era um apartamento no solene edifício de frente para a Praça Paris, parte do Aterro, com vistas, pois, para a barra da baía de Guanabara, o Museu de Arte Moderna, o Monumento aos Pracinhas, o Aeroporto Santos-Dumont e Niterói do outro lado, completando o belíssimo panorama.

José Veiga era um homem discreto, inicialmente de pouca conversa, mas não era uma pessoa “fechada”. Permitia-nos chegar e ouvia-nos atento. Descobri que, se fosse de seu agrado, ele poderia bem esticar a prosa e tive a alegria de vislumbrar o conteúdo daquela caixa-de-segredos que era ele, ao contar de coisas vividas, de informes lidos ou ouvidos e, melhor ainda, de suas impressões.

Tinha um hábito que considero de alta valia –– a de sempre escrever aos autores que lhe enviavam livros, especialmente os novos. Lia, considerava, destacava as qualidades, não fazia referências a falhas e se expressava sempre com estímulos para a continuidade do ofício. Detectei isso não apenas no que ele próprio me escrevia, mas em correspondências dele a outros companheiros da minha relação.

Notei, desde o começo, que ele não respondia aos meus comentários à sua obra. Ouvia em silêncio e sempre achava um modo de responder com a abertura de um novo tema a partir das minhas próprias falas. Somente uma vez, quando eu comentava uma passagem de seu livro “mais recente” (gaguejei sobre o nome do livro) e ele me lembrou, gentilmente, “Aquele mundo de Va­sa­barros”, que pronunciou pausadamente, com a costumeira clareza de um bom locutor (o que ele de fato era).

Curiosamente, somente sobre o meu primeiro livro, ele me fez um comentário oral, algum tempo depois da costumeira carta de agradecimento e incentivo. Disse apenas que achou interessante o meu jeito de terminar um conto: “A poucas linhas do final, eu parava para imaginar como você encerraria aquele conto em tão poucas linhas” –– e fez-me crer que esse item era digno de nota.

Eu estranhava o fato de ele nunca anunciar suas vindas a Goiás. Elas eram, costumeiramente, em abril, em férias. Ele se hospedava com Dona Geny, sua prima, e em seguida visitava ir­mãos em Brasília e Ipameri, além de alguns amigos em Goiânia, como sua afilhada Gláucia Baiocchi, o professor Gomes Filho e Eli Brasiliense. E havia as vindas eventuais, cumprindo compromissos literários combinados pela editora e pelas universidades. E eu sempre era informado e o procurava.

Nota-se, pois, que eu não era um desses amigos da sua intimidade. Ele sabia que nos veríamos nos eventos acadêmico-literários e mesmo em suas duas ou três visitas à Barraca do Escritor, na Feira Hippie (Praça Cívica). Tivemos, pois, uma amizade literária, fomentada pela minha insistência, mas bem acolhida por ele. A evidência disso foi justamente o fato de, no dia seguinte à sua morte, a viúva Dona Clérida ter ligado para dizer-me da vontade dele –– a de que me fosse entregue seu acervo literário para que eu o instalasse aqui em Goiás, pois “ele não queria ser esquecido” –– palavras dela para mim, ao telefone.

 

A vaidade, o ciúme, a inveja parecem prevalecer no mundo das artes e literatura (bem como no do jornalismo). Apesar disso, a história está cheia de exemplares correspondências entre amigos literatos, com lições de estilo e afetivas. O afeto em literatura é uma quimera?

É curioso notar que a nossa amizade era diferente, por exemplo, das de tantas outras que, algumas décadas atrás, marcavam as relações entre escritores. Não são poucas as publicações de trocas de correspondências entre autores distantes –– como Fernando Sabino e Mário de Andrade, o primeiro em Belo Horizonte, o outro em São Paulo. Ou entre Carlos e Mário, na mesma geografia… Minhas idas ao Rio e as vindas de José a Goiás, bem como o uso regular do telefone, justificam as raras cartas. E hoje, há 16 anos de sua morte, a correspondência se faz pela Internet, de modo instantâneo e muito mais prático. O que me convence de que houve, sim, entre nós, um bom nível de confiança foi o fato de ele ter me recomendado como a pessoa a cuidar de sua memória.

 

As novas gerações têm razões de sobra para conhecer Veiga, Eli Brasilense, Bernardo Élis e Carmo Bernardes. A geração de 15 foi especial na literatura feita em Goyaz. Por que deveria um jovem do século XXI ler escritores centenários?

Muitos dos bons e ótimos escritores do século passado carecem de maior atenção nos dias de hoje. A tevê e o cinema podem ser os veículos de perpetuação dos nomes de muitos deles. Dos poetas, pouco se fala, por exemplo, de Manuel Bandeira e Gilka Macha­do, dos ficcionistas, a memória nacional é ingrata para com José Lins do Rego e o nosso Bernardo Élis (ainda reverenciado no meio acadêmico, mas aos poucos minimizado na memória popular).

 

O sr. labutou sozinho pela preservação de um importante acervo até obter apoio para a sala-museu J. Veiga. Que missão o levou a lutar contra tudo e todos por uma ideia? A memória de um ficcionista, como Veiga, é mais valorizada fora de sua terra? Por que nossos suplementos, se é que existem, omitem essa efeméride?

José Veiga é pouco referenciado em Goiás e acredito que consegui um grande feito ao procurar as instituições comerciais de Goiás –– os dirigentes José Evaristo dos Santos, da Fecomércio, e Giuglio S. Cysneiros, diretor Regional do Sesc –– que guardam pessoas sensíveis que fazem as vezes de autoridades culturais não só por terem acolhido minha proposta, mas por tudo o que se vê acontecer em sua esfera de trabalho.

O meio acadêmico goiano cuida pouco de sua obra, ele não tem merecido, de graduandos, mestrandos e doutorandos locais, a atenção do tamanho de sua projeção nacional e internacional (agora mesmo, é traduzido e publicado na Holanda –– mais uma língua a que chega a literatura da nossa goianidade).

Tenho escrito sobre autores da nossa terra e lancei, no começo do ano passado, a ideia de destinarmos o ano de 2015 para festejar o centenário de quatro grandes entre nós –– José J. Veiga (é jota-ponto, e não Jacinto ou Jacintho, como teimam alguns menos informados), Eli Brasiliense, Bernardo Élis e Carmo Bernardes. Há outros notáveis, como o morrinhense Pedro Celestino (que se destacou mais como político que como escritor) e Octo Marques (autor de livros, mas conhecido mais por sua arte pictórica) e todos merecem as homenagens que lhe prestam a Academia Goiana de Letras (AGL) e o Instituto Histórico e Geográfico de Goiás. Mas esse meio acadêmico, em que o aluno é o mais lembrado, é norteado por professores que muitas vezes torcem narizes aos vultos goianos.

Por que digo isso? No meio universitário, temos muitos professores adventícios que procuram, sim, divulgar autores de suas relações, gente de sua região de origem. E há outros, inclusive goianos, que consideram o nativo muito arroz-com-pequi (usam mesmo essa expressão) e ridicularizam, ou buscam fazê-lo, o que produzimos. Esses professores gostam muito de nós quando, no ofício jornalístico, significamos notas nas colunas impressas que resultarão no enriquecimento de seus currículos, mas jamais fazem uso de nossos textos em suas salas de estudos e de aulas, e buscam recomendar aos seus alunos a procura de obras alienígenas para seus trabalhos de conclusão, suas monografias e teses.

Nos quatro notáveis que este ano se tornam centenários, destaco a elevada qualidade de sua linguagem. Veiga e Bernardo são dotados de um lirismo emocionante. Eli nos brinda com a narrativa clara e elevada, sem perda do entendimento pelo leitor comum. E Carmo enriquece-nos com a musicalidade rítmica de um excelente contador de causos, dotando sua prosa de um vocabulário telúrico o bastante para significar um dos mais ricos glossários do linguajar dos sertões de Minas e Goiás. Não compreendo como se estuda num curso de graduação em Letras neste Brasil Central sem fazer uso exaustivo desses autores. E o triste é constatarmos que esses cursos, tanto os de bacharelado quanto os de licenciatura, despejam no mercado profissionais de pesquisa e ensino sem a base mínima para fazerem jus a seus títulos.

Lembremo-nos, por exemplo, que dispúnhamos, até há pelo menos vinte anos, de excelentes suplementos literários. Jornalistas-escritores como Modesto Gomes, Aidenor Aires, Miguel Jorge, Domingos Félix de Sousa, Brasigóis Felício e outros mais foram excelentes editores nos suplementos dos jornais. Mais recentemente, a AGL manteve suplemento, tendo por editores Coelho Vaz e, depois, Iuri Rincon Godinho e eu próprio, juntamente com Eurico Barbosa. Esses editores deram vez e voz a escritores do passado, sim. Não existe, na literatura, tema novo –– tudo o que pro­duzimos hoje diz respeito à nossa visão, não somos novidadeiros –– e por isso mesmo é que recorremos à História das Letras. O que seria da literatura universal sem Cervantes, Camões e Shakespeare? E o que seria da nossa poesia, em Goiás, sem Leodegária de Jesus, Yeda Schmaltz, Joaquim Machado, José Décio e Léo Lynce? Mas, infelizmente, em Goiás os cursos de graduação em Letras omitem esses ícones.

 

Qual a importância do incentivo que o sr. recebeu como Menes­trel, vindo de uma figura da gran­deza do Veiga? E, algo mais, um lugar no paraíso para um amigo: seria para o Veiga?

Pois bem! Se o tema é a minha amizade com o José Veiga –– ou o Zé-Veiga, como o chamávamos em Pirenópolis –– devo detalhar o começo e a duração daquela jornada de oito anos, até que eu encontrasse o abrigo do Sesc de Goiás.

Assim que recebi o telefonema de Dona Clérida (a viúva de José despediu-se desta vida dois anos e poucos meses após o desenlace do marido), procurei minha amiga Dênia Diniz, bibliotecária e professora da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), e ela se motivou tanto quanto eu. Fomos ao Rio para que Dênia conhecesse o espaço e o acervo do meu amigo. E foram muitas as viagens, culminando com uma permanência de Dênia e sua filha Marina (então pré-adolescente) por mais de uma semana, procedendo ao levantamento e à catalogação dos livros e objetos que viriam para Goiás. O governo ajudou-nos com o transporte e a Academia Goiana de Letras, tendo José Fernandes na presidência, cedeu-me uma sala na Casa Altamiro, onde abriguei os livros e outras publicações, juntamente com móveis e objetos, quadros e troféus e medalhas, etc.

A peregrinação esticou-se por quase oito anos. Chegou-se a empenhar verba para aquisição de uma casa em Corumbá, imóvel esse que foi a última morada do menino José, filho de Luiz da Veiga, na cidade, mas algumas ações de interesses outros boicotaram a aquisição. E como nada acontece por acaso, nas minhas incontáveis viagens ao Rio e a Corumbá, consumi muito dos meus parcos ganhos mensais, até descobrir, surpreso, que na sua terra natal o contista de “A Estranha Máquina Extraviada” não era lido nem mesmo pelos pa­rentes próximos. Seus leitores conterrâneos estavam em Goiânia e Pirenópolis. De toda a família Veiga, percebi o interesse apenas de três sobrinhos.

Tentei, como havia tentado antes, despertar o interesse de Pirenópolis, onde também não encontrei eco. Em Goiânia, bati à porta da UEG, da PUC e da UFG, e fui tratado como visitante desagradável. A última descartada foi mesmo a da Universidade Federal e, ato contínuo, procurei o segmento do Comércio. No ambiente da Biblioteca, na Rua 19, instalou-se o Espaço José J. Veiga, inaugurado pelo imortal e primeiro crítico a manifestar-se sobre a obra do notável goiano Antônio Olinto, da Academia Brasileira de Letras (ABL), por escolha minha. Isto se deu em 2007, com apoio da Prefeitura de Goiânia (a sensibilidade do poeta Kleber Adorno, então secretário da Cultura, que viabilizou a vinda de Antônio Olinto) e, estranhamente, naquele momento a autoridade estadual da Cultura compareceu ao evento apenas para participar do corte da fita, já que em nada contribuíra.

A propósito, do então presidente da Fundação Pedro Ludo­vico (depois, Agepel) Nasr Chaul, com o indiscutível apoio do governador Marconi Perillo em seus dois primeiros governos, obtive algumas passagens para o Rio de Janeiro e o transporte do acervo. Todas as demais despesas foram custeadas por mim. Ajuda pessoal e profissional, somente da bibliotecária Dênia Diniz, a meu pedido e por amor à causa e ela sequer é goiana.