Cem anos de transformação

Data: 12 de agosto de 2015

Fonte/Veículo: O Hoje

Link direto para a notícia: http://ohoje.com/jornal/ler/noticia/22325/titulo/cem-anos-de-transformacao 

 

Duas grandes obras completam 100 anos em 2015 e falam muito, não apenas sobre a sociedade da época, mas sobre os dias atuais

12-08-2015 00:00

  

José Abrão

O mundo e o Brasil eram muito diferentes 100 anos atrás. A Europa estava em guerra, o movimento sufragista pedia direito de voto para as mulheres em diversos países ocidentais, Albert Einstein publicou a teoria geral da relatividade e David Hilbert descobriu a existência dos buracos negros. No Brasil, a república era jovem e militarizada, oligárquica, extremamente desigual e instável, altamente analfabeta e com questões raciais e sociais efervescentes. Naquele ano, duas grandes obras foram lançadas e servem hoje para compreender muito do que foi e muito do que é  a sociedade atual.

Para os brasileiros, a mais importante delas é Triste Fim de Policarpo Quaresma, de Lima Barreto. É impossível falar da obra sem citar o autor: marginalizado, anarquista e neto de ex-escravos, Barreto era controverso e extrema­mente ácido em suas críticas ao país em que vivia e especi­al­mente à ignorante e sonhadora elite intelectual da época. Triste Fim, sua obra-prima, foi publicada em formato de folhetim no Jornal do Commercio e depois em livro, pelos meios do próprio autor, em 1915. O enredo acompanha Qua­resma, um ufanista que ama o país na mesma proporção em que é ingênuo, chegando ao ponto de tentar mu­dar o idioma oficial do Brasil para o tupi.

Marginal, Barreto publicava os próprios livros, chegando a ter de contrair empréstimos com agiotas. Depois de sua morte, foram mais de 30 anos para que sua obra com­pleta fosse republicada. “Lima Barreto foi um escritor incômodo, que de um lado atacava os poderosos de seu tempo (inclusive no seio das instituições literárias) e, de ou­tro, privilegiava, na representação literária, a perspectiva dos oprimidos. Sua concepção do lugar e função da literatura na sociedade destoava radicalmente da que era defendida e posta em prática em seu tempo (o período da belle époque). Predominava então uma literatura da opulência, associada aos salões da elite carioca, com uma visão cor-de-rosa da vida social”, explica o professor da faculdade de Letras da UFG, Cássio Tavares.

Mesmo hoje, o autor ainda é incômodo. “O importante a se observar é que a cultura literária é mediada por instituições, como a escola, a universidade, o Estado, a mídia. Essa mediação não é neutra, e tende a se inclinar para os interesses da classe dominante. Lima Barreto continua um ilustre desconhecido na maioria dos espaços”, destaca Tavares. Sobre a obra, o professor destaca a ironia do autor. A república passava por uma crise de identidade nacional. O que unia o Brasil, um problema que existia desde a época da colônia e que os intelectuais tentavam solucionar voltando-se para o que era da terra: a natureza, o indígena. Isso vindo de uma elite que vivia do campo e seguia a moda francesa, ao mesmo tempo que era extremamente racista, ou seja, não fazia o menor sentido. “A força do romance está justamente em criar situações cômicas em torno de um protagonista, cuja ingenuidade consiste apenas em levar a sério a interpretação que a elite intelectual brasileira vinha fazendo do Brasil. O passo do romantista é irônico”.

Botando sem dó o dedo na ferida da desigualdade e do racismo, o professor acredita que a obra permanece relevante para a atualidade. “Trata-se de um romance sobre o Brasil. E um romance muito revelador ainda hoje, porque, embora situado no auge da República Velha, aborda aspectos de nossa constituição cultural que se incorporaram num plano pouco consciente e que nos modelam até hoje em alguma medida”.

O homem e a máquina

Outra obra muito importante do mesmo ano foi A Metamorfose, de Franz Kafka. Se trata de uma novela cur­ta, na qual o caixeiro viajante Gregor Samsa acorda uma manhã para descobrir que virou um enorme inseto. O autor também escreveu outras grandes obras como O Processo e O Castelo, mas é difícil compará-los em importância, embora A Metamorfose provavelmente seja a obra mais conhecida do público. O autor tcheco passa muito da sua realidade, assim como a da Europa naquele momento. Sua obra é cheia de conflitos entre familiares e um retrato nada belo sobre alienação e burocracia.

Reflexos de sua vida: teve uma relação turbulenta com o pai e escrevia contos entre os intervalos de seu emprego em uma empresa de seguros. A repetição do trabalho, a falta de tempo, a monotonia que o impedia de fazer o que queria, mas que era obrigado a aceitar para pagar as contas era o cerne dos seus textos.

O professor Tavares destacou que a obra, além de curta, também é mais acessível, ao contrário dos romances do autor que trazem uma narrativa fragmentada. O professor acredita que o livro carrega tons expressionistas e que o poder está na metáfora. “O princípio consiste em deformar. Da realidade para tornar visível a sua natureza essencial e expor o seu sentido profundo. Toma-se um elemento que nem sempre é muito visível na realidade cotidiana, mas considerado o elemento central pa­ra a determinação do sentido dessa realidade (no caso de A Metamorfose, a desumanização). Trocando em miúdos: Gregor leva uma vida alienada, a ponto de perder seus traços essenciais de humanidade; Gregor é como um inseto; Gregor é um inseto”.

Mas o maior trunfo da obra foi seu impacto, tão intenso que influenciou fortemente dezenas de autores pelo mundo. “A realização foi tão eficaz que depois se tornou modelo para muitos escritores, fixando-se como referência, por exemplo, para o surrealismo e para o tão frutífero realismo fantástico latino-americano. Aí reside, penso, a principal medida da importância de A Metamorfose”, declara Tavares.