'Não temos pena de morte, temos morte sem pena', diz especialista em Direito Penal

Data: 02 de setembro de 2015

Fonte/Veículo: Bahia Notícias

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O processo penal como instrumento de defesa social será discutido no Seminário do Instituto Baiano de Processo Penal, que acontece em Salvador, entre os dias 2 e 4 de setembro. O debate será conduzido pela professora de Direito Penal e Direito Processual Penal da Universidade Federal de Goiás, Bartira Macedo Santos. Ao Bahia Notícias, a professora falou sobre a ausência de políticas de segurança pública no Brasil e dos impactos disso nos índices de violência. Bartira ainda crítica o índice de mortes cometidos por policiais no exercício da profissão. “No Brasil, nós não temos a pena de morte. Nós temos a morte sem pena. Tantas pessoas foram mortas pela polícia dessa forma, como foi chacina do Cabula, e outras mortes”.  Para ela, ao eliminar uma pessoa, a polícia está “executando, sumariamente, uma pena”. “A própria polícia julgou e executou a pena de morte. A essas pessoas foi negado o direito ao direito penal, o direito ao processo, o direito de serem julgados”, comenta. A professora ainda analisa que a guerra deflagrada contras drogas produz “muito mais cadáveres do que as mortes causadas pelas drogas”. “Poucas pessoas morrem por abuso de dosagem, mas muitas pessoas morrem em razão da guerra contra as drogas”. Ela indica como o principal autor dessas mortes o Estado. Sobre a redução da maioridade penal, Bartira acredita que a proposta vai tornar a situação mais “caótica” do que já é. “A proposta de redução é uma proposta irresponsável, populista e contrária a tudo o que tem se pensado, tudo que as universidades, as academias têm produzido sobre violência e justiça criminal”, frisa. Confira a entrevista completa na coluna Justiça.

 

Vivemos uma era de paixões, de extremismo, e de um sistema de segurança que não consegue diminuir os índices de violência no país. Com isso, muitos buscam fazer justiça com as próprias mãos. A senhora acredita que o Processo Penal Brasileiro permite o surgimento de justiceiros?

Você falou da questão da violência - a que mais preocupa a sociedade. Existe a violência particular e existe a violência estatal, a violência praticada pelos agentes do Estado, principalmente as polícias. Quando a gente se pergunta sobre violência, quando a sociedade se pergunta como reagir à violência, como reduzir a violência, nós temos que pensar em termos de políticas públicas. As políticas públicas de redução da violência são políticas públicas de segurança, que necessariamente passam pela polícia, pois normalmente espera-se que a polícia resolva os problemas da criminalidade, e ela não consegue, porque não se reduz a violência com a repressão. Para você reduzir a violência é preciso de políticas públicas na área da educação, da saúde, do esporte, do lazer, emprego para as pessoas, melhorar a qualidade de vida das pessoas. Acontece que a segurança não é uma política pública no Brasil. Apesar da segurança ser uma preocupação, ela não é ainda, uma política pública, uma política de governo, uma política de Estado. Então a gente se pergunta: o que temos hoje no Brasil em termos de políticas publica de segurança? Aí você olha para a União e não encontra um desenho de políticas públicas. A União deveria ter um protagonismo maior na indução de políticas públicas de segurança. No entanto, o que ela tem feito nos últimos anos é financiar a compra de armas e viaturas. Não tem um programa, uma diretriz nacional para redução da violência. Atualmente está sendo gestado, elaborado pelo Ministério da Justiça, um pacto nacional de redução dos homicídios. Acontece que agora em julho, no dia 30 de julho, durante o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, o ministro da Justiça foi chamado para apresentar o plano e ele não apresentou. Ele não falou de orçamento, não falou sobre o que seria o plano. Ele fez a fala e disse assim: ‘Estamos trabalhando para que a segurança seja uma política de Estado’, ou seja, não é uma política de Estado ainda. Não existe política pública de segurança. Aí a Constituição de 1988, ao falar de segurança pública, basicamente a coloca na responsabilidade da polícia. Lá no artigo 144, a Constituição coloca as atribuições de todas as polícias. Só que você não tem uma ação integrada entre as polícias, você não tem uma ação integrada entre União, Estados e municípios. A violência acontece no município, mas quem tem as informações sobre isso é o Estado. O Estado sabe, no município de Salvador, qual bairro que tem mais violência, que tipo de violência, que horas que acontece. Essas informações o Estado tem. Mas essas informações não são passadas para o Município. Não existem ações do município, em conjunto com o estado, para fazer políticas e ações voltadas no sentido de reduzir essa violência...

 

E prevenir...

Exatamente, de prevenção. Aí o que acontece, hoje tem o paradigma dominante de tratar a segurança como uma questão de guerra: guerra contra o crime, guerra contra as drogas, e a própria preparação das polícias é uma preparação voltada para a guerra. O que acontece é que a situação de guerra afasta a situação de direito. Em qualquer lugar onde há guerra não há direito. A lógica da guerra é a lógica da eliminação do inimigo. Se eu estou em uma guerra, para ganhar preciso eliminar o meu inimigo. Essa lógica da guerra tem produzido muitas mortes no Brasil. A polícia nunca matou tanto, apesar de nós estarmos no Estado Democrático de Direito. Formalmente estamos num Estado Democrático, mas a polícia nunca matou tanto. E a polícia nunca matou tanto com o apoio do próprio Poder Judiciário, dos Poderes constituídos, inclusive o Judiciário.

 

Aqui na Bahia a gente vive um caso desses, das mortes no Cabula e muitas vezes essas mortes são disfarçadas como autos de resistência. Na sua concepção é preciso acabar com essa ferramenta, que protege muitas vezes os policiais que cometem delitos sob o manto do serviço, de estarem em exercício profissional?

Isso só é aceito porque de alguma forma o judiciário está chancelando isso. Exigir do Estado segurança dá-se apoio a ideia de guerra. E a guerra é mais violência e eliminação de pessoas. A forma jurídica para justificar, assim, para dar uma aparente legalidade à forma de chancelar esses atos, juridicamente, tem sido os autos de resistência, e também de eliminação, de que aquelas pessoas mortas são traficantes. Como se a pessoa que é traficante pode ser eliminada tranquilamente. É essa a ideia.

 

E isso muitas vezes sem a deflagração de um devido processo contra aquelas pessoas...

No Brasil nós não temos a pena de morte. Nós temos a morte sem pena. Tantas pessoas foram mortas pela polícia dessa forma, como foi chacina do Cabula, e outras mortes. Toda vez que a polícia mata pessoas e justifica essa morte porque a pessoa era traficante, ao fazer isso, na prática, a polícia está aplicando a pena de morte. Está eliminando a pessoa, está executando sumariamente uma pena. A própria polícia julgou e executou a pena de morte. A essas pessoas foi negado o direito ao direito penal, o direito ao processo, o direito de serem julgados. Foi negado em um Estado Democrático de Direito. Quem pratica crimes responde a um processo e está sujeito a uma pena. Se a polícia vai, mata e justifica que a pessoa era criminosa, o próprio Estado está negando a essa pessoa o direito ao direito penal. O direito penal e o processo penal existem justamente para proteger os indivíduos. Nós indivíduos, quando nós cometemos um crime temos direito a um processo, a um julgamento, e aí então se condenar, ficará sujeito a pena. Isso é uma proteção do indivíduo. Quando o Estado mata, ele está enganando o direito penal e o processo penal. O direito penal e o processo penal pertencem a uma sociedade civilizada. E o que a gente tem visto é uma barbárie.

 

O Supremo Tribunal Federal discute se é pertinente a descriminalização do porte de drogas para usuários. Há um debate sobre o reflexo que essa descriminalização pode trazer para a diminuição dos índices de violência, o numero de processos que tramitam na justiça por conta da lei das drogas. Gostaria de saber sua concepção, se essa descriminalização pode trazer um impacto para a luta contra as drogas que, muitas vezes, as polícias travam nas periferias?

Até a década de 1980, os Estados Unidos estavam na Guerra Fria e o inimigo era os comunistas. Ao final da Guerra Fria, com essa ideia de guerra de acordo com a disciplina penal, inventaram um novo inimigo, que é a droga, o traficante. Então há toda uma guerra inicial contra o traficante. O que isso gerou? Um super encarceramento, a população carcerária excedeu, a violência aumentou, o número de mortes aumentou, e se a gente pensar assim, o número de mortes decorrentes das drogas é infinitamente menor do que o número de mortes em torno da proibição das drogas, das mortes causadas pela guerra contra as drogas. A guerra contra as drogas tem muito mais cadáveres do que as mortes causadas pelas drogas. Poucas pessoas morrem por abuso de dosagem, mas muitas pessoas morrem em razão da guerra contra as drogas. Aí nós temos, além de, o principal fator criminoso, o principal autor dessas mortes é o Estado, são as polícias. A guerra às drogas causa muito mais mal que as drogas em si. Eu penso que as drogas devem ser regulamentadas, legalizadas. Não faz sentido você ter drogas lícitas como o álcool - que também mata em razão de acidentes de trânsito- por exemplo, mas você não vê pessoas brigando, se batendo nas portas dos estabelecimentos que vendem bebida. A legalização das drogas, acredito eu, que ela vai diminuir a violência. Acredito que o uso e a venda das drogas devem ser legalizadas, devem ser regulamentadas. A gente tem que saber quem está produzindo, quem está vendendo, onde, tem que haver esse controle, a gente precisa de um mecanismo que pense esse controle.

 

Na discussão de medidas de combate à violência, uma que tem sido posta em discussão inclusive no Congresso, é a redução da maioridade penal. A senhora que acompanha muito a discussão da defesa social, saberia mensurar os impactos dessa redução da maioridade penal nos índices de violência? Realmente pode ser eficaz ou vai deixar tudo como está, já que o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) não é aplicado muitas vezes?

A redução da maioridade, da idade penal não vai deixar as coisas como estão. Ela vai piorar muito. A redução da maioridade penal vai tornar mais caótico algo que já é caótico. Nós não temos no sistema carcerário vagas nem para os adultos, maiores de 18 anos. Então a proposta de redução é uma proposta irresponsável, populista e contrária a tudo o que tem se pensado, tudo que as universidades, as academias têm produzido sobre violência e justiça criminal. Além de não resolver, a redução da maioridade penal vai pegar as crianças, os adolescentes, que estão em situação de risco. O Estado nega a elas o direito a educação, nega a elas a possibilidade de um trabalho, nega a elas um espaço na sociedade e oferece a elas somente a exclusão, por medo do sistema penal.

 

A senhora acha que essa medida foi aprovada diante desse papel do medo?

É um ato de irresponsabilidade essa aprovação. A grande mídia trabalha com o medo e os políticos ficam, de certa forma, reféns do populismo. Os políticos se elegem com o discurso populista penal, com discurso de maior endurecimento da postura penal. Esses políticos que se elegeram com essa plataforma populista, para eles, a violência não pode diminuir. Se a violência diminuir, eles perdem seu eleitorado. São os políticos que precisam fomentar esse ciclo vicioso da violência, senão eles perdem seu eleitorado, sua plataforma eleitoral. O crime precisa estar acontecendo para eles estarem em evidência. E essa ideia ainda é uma ideia de guerra. Na falta de políticas públicas, se fomenta a guerra e o populismo, ações que só tendem a aumentar a violência.

 

A senhora acredita que essa divisão da sociedade com essa guerra deflagrada entre bons e maus tem algum sentido do ponto de vista jurídico? Tem alguma relação?

A Constituição diz que um dos objetivos da República Federativa do Brasil é promover uma sociedade justa e igualitária, e a dignidade é um dos fundamentos da república. A cidadania, a dignidade, a pluralidade, e a construção da sociedade livre, justa e solidária. E nós falamos de discriminação, então todas essas políticas elas são inconstitucionais, elas violam a constituição federal. Viola a própria ideia de estado democrático de direito.

 

A senhora fala muito sobre a ausência de uma política pública de segurança, a ausência de um projeto nacional de segurança. Para a senhora qual seria o modelo de segurança ideal para o país? Como é que a violência pode ser reduzida? E o que a sociedade pode fazer para que esses índices reduzam sem que elas precisem partir até para linchamentos?

Primeiro, não podemos retroagir nas conquistas históricas no direito penal e no processo penal, como por exemplo, a redução da maioridade penal. Nós temos que garantir as conquistas civilizatórias. A sociedade deveria exigir dos Estados políticas públicas, exigir dos Estados mais responsabilidade, que cumpram as leis, exigir do Estado que não se limite a matar as pessoas, e não concordar em ratificar essa matança que está acontecendo. A sociedade deve ter uma atitude no sentido de não abrir mão do direito de cidadania, que não justifica a diminuição dos direitos do cidadão, a negação da dignidade humana em prol do combate a violência. A gente precisa reconhecer os criminosos como seres humanos, e como seres humanos eles devem ser tratados. Reconhecer em cada pessoa a sua humanidade, e a sua existência enquanto gente do direito. E que o Estado respeite o direito das pessoas. Isso é inerente ao ser humano.