“Falamos do corpo e da nudez e eles não são um problema, mesmo para as crianças”

Data: 05/11/2016

Veículo/fonte: Jornal Opção

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Da belga Com Cie Zoo, o espetáculo infantil “Dansé Étoffée sur Musique Déguisée” toca o abstrato com suas formas e cores e o corpo é só um dos pontos

Yago Rodrigues Alvim

Com balões coloridos, mangueiras de jardim, cobertores e bastões de madeira, o dançarino Mat Voorter se metamorfoseia num mundo de criaturas extraordinárias. Entre a poesia e o humor, criação e destruição, a performance “Dansé Étoffée sur Musique Déguisée”, coreografada pelo suíço Thomas Hauert, se desvia da narrativa linear e se desenrola imaginativamente ao som das sonatas e interlúdios de John Cage. No palco, as composições são interpretadas ao vivo pela pianista argentina Lea. Esse mundo, por mais complexo que pareça, é infantil e as crianças das mais diversas idades são convidadas, assim, a conhecerem mais da música e da dança contemporânea.

O trabalho da belga Com Cie Zoo, fundada por Thomas em 1998, é o único infantil dentre os diversos da cia. São mais de 15 espetáculos, que se localizam na improvisação. “Dansé Étoffée su Musique Dé­guisée” ganhou os palcos do Centro Cultural da Universidade Federal de Goiás pela Manga de Vento, mostra expandida de dança contemporânea, idealizada por Kleber Damaso. Abaixo, o performer Mat comenta (em livre tradução do inglês) o processo criativo e os lugares tocados pelo espetáculo, que dança e se expressa teatralmente e que se faz ainda uma obra das artes visuais, por suas texturas, cores e formas; sem contar, é claro, da música, de Cage, o John…

Como foi o processo criativo? Ele começou com as composições de John Cage e, depois, tornou-se outra coisa, pois as crianças o adoraram. Quando os balões apareceram e, com eles e os tecidos, as abstrações imagéticas?

A peça teve início com outro dueto, coreografado também por Thomas. Nele, tinha uma percussionista; e, em uma das cidades da Bélgica, onde o apresentamos, propuseram-nos a apresentá-lo mais uma nova peça — com outra composição, executada no piano. Eram composições de Cage.

Thomas aceitou a proposta e me convidou, pois sabia que eu era performer há muito tempo e tínhamos ainda uma amizade já de longa data. Eu crio figurinos para performers de dança (bailarinos) e a ideia dele era encher de materiais (tecidos de diversas texturas) o piano em que seriam executadas essas composições, de modo que influenciassem em como o público ouviria as músicas. A ideia ainda era criar um figurino que tivesse um material que modificasse os movimentos. Tivemos um mês para trabalhar nisso.

Nos ensaios, experimentamos alguns materiais, alguns tecidos muito elásticos e, assim, ele sugeriu que colocássemos alguns objetos dentro, também dos figurinos. Colocamos alguns bastões usados na arte marcial japonesa Aikido. Thomas foi a um shopping para pesquisar outros materiais e encontrou as meias-calças e os balões; brincamos com eles, criando formas com todos os materiais.

“Ah, e se usássemos hélio nos balões?”, perguntamo-nos e buscamos, depois, uma forma de segurá-los para que não voassem; foi quando os colocamos dentro das meias-calças e eles voaram tão lindamente. Criamos diversas criaturas, uma a uma. “Esse tem tetas; já esse parece um pênis”, curtíamos como adolescentes. E queríamos, cada vez mais, criá-los assim, com duas ou três tetas ou dois ou três pênis — ou como queira chamar. E fomos, aos poucos, deixando-os mais coloridos e mais abstratos. Com a música, improvisamos uma movimentação dentro disso. Pouco a pouco, encontramos um caminho, um percurso pré-organizado a seguir, mas de modo livre. Tínhamos, no final, uma peça de 40-50 minutos.

O sr. comentou das tetas e pênis e dá para ver isso na peça. No entanto, ela é para o público infantil. Se não fosse tão colorido, com as luzes que tem, seria um espetáculo bem sexual. Como vocês veem isso?
Poderíamos jogar com isso, mas não jogamos. Depende, exatamente, do público que se tem. Eu sei que é uma plateia de crianças, de jovens. No início, não era exatamente essa mesma peça; e, se a apresentássemos na noite, em um pub, talvez gay até, ou em outro, levaríamos o espetáculo para este lugar sexual — e nós não o queríamos. Já quanto às tetas e pênis, todos os têm — alguns tetas, outros pênis, alguns os dois — e isso, para as crianças, tem que ser lidado de um jeito natural. Todos tem pipiu… E a peça não é sobre o sexo, é sobre a naturalização do corpo e da nudez, que não são um problema. Provoca­mos isso, pois para nós, era uma forma de não nos podarmos. Afinal, por que ponderarmos isso?

Algumas das composições de Cage são bem tristonhas, solitárias. Vocês tocam este sentimento? No palco, o performer/personagem acorda sozinho em um mundo (novo) de sonhos. Se não, qual outro sentimento é apresentado?
Eu não vejo esse sentimento, tão claramente e as músicas não são tão tristonhas para mim. Eu as vejo um tanto mais rítmicas, subindo e descendo em ondas, e quisemos expor isso. Cage é um compositor de fortes ideais e concepções e, ainda, de uma visão muito aberta de como lidar com a música e também com a dança — afinal, ele foi muito influente neste mundo. Alguns amigos, inclusive, comentam o quanto ele teve propostas nas artes em geral — ele e seu parceiro, o bailarino e coreógrafo Mercier Cunningham; para alguns ainda, ele foi mais influente na dança que Cunningham, que estava apenas na música.

Cage esteve em vários campos da arte. E, quanto à solidão, pode ser que esteja presente, mas isso vem da plateia, de quem vê. Eu estou no lugar de colocar o espetáculo em jogo, dinâmico para que quem veja tenha diferentes perspectivas, e isso acontece — tenho respostas do público, às vezes depois do espetáculo. O único momento em que paro de me mover é quando vou para perto do piano, já ao final da peça.

Antes, eu não chego perto da música, somos concomitantes. Foi uma escolha minha e Thomas aceitou, pois o espetáculo funcionava para todos e de diversos modos.