Data: 22 de novembro de 2016

Fonte/veículo: Diário da Manhã

Link da notícia: http://www.dm.com.br/cotidiano/2016/11/moradores-questionam-uso-politico-da-regiao-noroeste.html

Existe uma Goiânia dentro de outra Goiânia.  Uma Goiânia em que a cor vermelha do chão batido começa – a duras penas – a sair das portas das casas. Composta por bairros como Jardim Curitiba, Finsocial, Vila Mutirão, dentre outros, a chamada região Noroeste cresceu e hoje se tornou fronteira para o desenvolvimento de Goiânia.

Muitas das casas surgiram através da autoconstrução. Ou seja, sem esperar financiamento do Estado (BNH ou Caixa Econômica), que, na maioria das vezes, quis/quer capitalizar em cima da venda das residências.

Explode pelas beiradas uma cidade dentro da cidade que deveria ter permanecido periferia, território segregado, mas que acumulou lutas e fincou vida urbana aos arredores de um manancial, o Caveirinha, até se aproximar dos demais bairros e comunicar um desarranjo social que explicita as desigualdades sociais, mas também crescente poder de compra, sonhos de consumo e realizações materiais.

Com cerca de 350 mil integrantes, o conjunto de setores que atiça políticos em períodos eleitorais tem vida comercial ativa, com a circulação de milhares de moradores e visitantes, gente que não faz tipo, estudantes, donas de casa, criminosos colados em gente do bem e um exército de trabalhadores como o eletricista-pedreiro-encanador Douglas Martins, que corre de domingo a domingo atrás do metal para pagar a escola da filha.

As mais recentes pesquisas socioeconômicas na região produzidas pela Universidade Federal de Goiás (UFG) e Instituto Federal de Goiás (IFG) revelam que Vila Mutirão, Floresta, bairro Triunfo, Nova Esperança, dentre outros, cresceram não em virtude das obras dos políticos, mas do esforço próprio dos trabalhadores, que realizam mais horas de trabalho do que a maioria dos moradores de Goiânia.

Na mesma rota que pega para o trabalho, Douglas leva o filho ao CMEI com o sonho de ver o caçula tornar-se “doutor” sem ter que pagar mensalmente por isso, como faz com a filha “Verinha” em uma faculdade que se alimenta de bolsas universitárias e mensalidades.  “Toda vez que sigo ali pela avenida do Povo, no Curitiba, vou andando com esse pensamento: no futuro ter uma vida melhor para minha filha. Às vezes  preciso sorrir pra não chorar. Ela olha pra mim sem entender”, justifica.

O caráter político dos bairros revela um bolsão de miséria em decadência, mas acima de tudo de demandas enormes. A cada pleito eleitoral candidatos chegam com promessas de entregar definitivamente escrituras – parte delas já foi repassada a alguns simbólicos moradores. Mas os ‘gestores’ não o fazem de imediato, pois pretendem manter no controle os bairros, dosando a arma para perpetuação de poder. A democracia é um jogo de cartas marcadas nas cidades segregadas. Na região Noroeste, então, é uma armadilha. Todos os direitos são repassados com cadeados sem chaves.

Por isso a região é sempre uma obra inacabada, imprecisa, líquida, frágil nas ações de criminosos, políticos e alguns policiais que olham torto para a antiga zona de pobreza que ainda insiste em ser mancha criminal.  “Aqui a blitz é todo dia. Queria mudar só por isso, pois todo mundo é encarado como ladrão, traficante, estuprador”, diz o dono de uma borracharia, que pede anonimato. “A região é rica, cresce, evolui, só a abordagem que não evolui”, reclama. “Tem dia que é para pegar IPVA atrasado, mas tem hora que é só pra arrasar com o povo, Fico grilado”.

E o que precisa civilizar não civiliza, caso dos carros de som que passam rebaixados e ensurdecedores pelas ruas. A fiscalização ambiental é inexistente.

Por isso a polifonia de horrores se forma com a verbalização do leiteiro, do vendedor de detergente que anda aos gritos e da música do som automotivo pilhado em um funk que fala “Oh, coisa louca hein…(há…há)/ Oh, tô chegando hein!/ Oh, que que isso, hein?/ Oh, coisa louca, hein…”.

Os ecos dos bairros dominados pelo batidão das indústrias culturais imobilizam outras manifestações.  O funk e sertanejo batem forte, balançando o chão.  A cidade cultural que deveria ali existir fica submersa.

A partir do Plano Diretor, é possível observar uma dinâmica socioespacial reveladora de uma Goiânia antidemocrática: em uma reta de pontos infinitos se colocou de um lado os bairros das elites, ao redor do shopping vitrine da cidade e de seus condomínios fechados. Do outro ponto, em sentido infinito, se dispôs a região Noroeste, remota, apartada, segregada.

Os detentores das riquezas se afastaram dos pobres ao exigir dos políticos que passaram pelo Palácio das Esmeraldas e Paço Municipal um acordo de não aproximação.  Permitem um absurdo: a doméstica gasta duas horas para chegar do  Tremendão ao Alfaville.

O que não contavam é que o capitalismo – apesar de todos os males – tornou a riqueza móvel, permitindo o trabalho acumular prosperidades. Os estigmatizados, os estropiados, tornaram-se consumidores.

A geógrafa Renatha Cândida da Cruz, em pesquisa finalizada no ano passado, revela como esta região considerada grande bolsão de pobreza tornou-se espaço para uma nova classe trabalhadora.  A pesquisadora afirma que ocorreu uma significativa mudança de 1979 até o início desta década, quando o conjunto de bairros adquiriu nova formatação: “Com base nas análises, constatamos que a população da Região Noroeste é uma representação da nova classe trabalhadora, justificada pela baixa escolaridade, as longas jornadas de trabalho, embora com intensas modificações na renda e no padrão de consumo”.

 


Finsocial, um dos primeiros bairros da região Noroeste: moradores foram ‘jogados’ para longe das regiões centrais e sul da cidade

Através do estudo é possível observar que a região é composta, acima de tudo, por gente que trabalha – e muito. “Possui uma população bastante jovem e, como consequência, um grande percentual de pessoas economicamente ativas. Quanto mais próximo de Goianira, há um maior contingente de pessoas não naturais no município de Goiânia”, conclui a pesquisadora.

Em sua perspectiva de estudo, Renatha Cândida combate a ideia de que exista uma nova classe média na região. Ao analisar os dados, a pesquisadora que realizou o estudo para a UFG entende que o que é novo, de fato, a renovação da classe trabalhadora.

 

Moradores sequestrados pela política

 

Pesquisas socioeconômicas realizadas tendo em vista a distribuição espacial de Goiânia revelam que existe uma melhora na qualidade de vida dos moradores da região Noroeste. Mas ao mesmo tempo ocorre um “uso” das necessidades básicas dos residentes. A campanha eleitoral que findou demonstra a existência de um grupo político que vampiriza os moradores sempre que precisa conquistar o poder.

Com um grande nicho de votos e laços de solidariedade, devido ao histórico de conquistas dos lotes por meio da luta popular, estes moradores são atraídos pelos políticos.

A pesquisa realizada no âmbito do Instituto Federal de Educação (IFG), através do Observatório do Mundo do Trabalho, orientada por Walmir Barbosa, indica que a Região Noroeste – na capital – é a com maior demanda de diversos equipamentos e serviços, inclusive os educacionais. Ou seja, busca-se legitimação para o poder no local, mas ao mesmo tempo se entrega pouco. “Um dos motivos se deve ao passado de luta pela moradia, já que os residentes conquistam à conta gotas a casa de fato e de direito, através da escrituração. Em sua maioria, pode ver, são moradores sequestrados, o que fere a carta da ONU, a Habitat, sobre moradias”, diz o advogado Carlinhos Antônio, que conhece a história da região.


Jardim Curitiba: barulho dos carros de som revela que Código de Posturas do Município não vale para região

De acordo com Maria de Lurdes Alves, que pesquisou a migração em Goiânia, a região Noroeste é fruto de uma condução das políticas urbanas voltadas para atender aos empreendedores imobiliários.  Em seu estudo, ela afirma que no final da década de 1970 e início dos anos 1980, a formação do espaço urbano de Goiânia ocorreu a partir de dois grandes processos: “Adensamento exagerado e pontual de alguns bairros e da dispersão da periferia”.

Ainda no início do século, a pesquisadora da UFG apontou três agentes que influenciam diretamente na ocupação do solo urbano. “Primeiro, o Estado que agiu com seus investimentos públicos e normatização legal do espaço urbano; segundo os empreendedores imobiliários, que esteve historicamente acoplado ao Estado e com o objetivo de aumentar as suas taxas de lucros, impondo ao governo as alterações no aparato normativo em vigor; e em terceiro, os migrantes, que antes eram chamados de sem-terra, agora conhecidos como sem-teto, que passam na cidade a forçar a ocupação de áreas vazias, assumindo ora e outra a condição de posseiros urbanos”.

Ao segregar, tentou-se, de fato, desagregar a vida mental e social destas pessoas, como reconta pensadores do direito das cidades, caso de Lefebvre. Um dos questionamentos da pesquisa realizada por Renatha Cândida diz respeito exatamente a falta de espaços para a prática cultural na região. A pesquisadora sugere novas investigações, por exemplo, sobre o que fazem os moradores no final de semana, já que inexistem equipamentos públicos que produzem sociabilidades, fora os bares e igrejas.

O vereador Djalma Araújo (REDE Sustentabilidade), militante da região Norte, que é vizinha, aponta a falta de perspectivas culturais no conjunto de bairros do lado. “Sou habitante da região Norte, minha vida está ali no Itatiaia. Temos, graças a Deus, o Campus Samambaia, os pubs, os centros de discussão que surgem ao redor. É universitário entrando e saindo toda hora, com novidades, projetos culturais, diversidade, isso oxigena a região. Mas não vejo essa circulação saudável de ideias nas regiões próximas. Temos que descentralizar o que existe de bom. Isso é fato: falta política pública e interesse. Falta democracia”, aponta.