Busca irrefreável pelo melhoramento do corpo vai além do aspecto cultural

Data: 23 de novembro de 2014

Veículo: Jornal Opção

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Após morte de mulher devido a um procedimento estético, ficou a questão: por que as pessoas, independente do sexo, procuram fazer drásticas mudanças em seu próprio corpo?

Marcos Nunes Carreiro

 

Costuma-se dizer que a literatura serve para tudo e para nada. Serve para quem, por meio da catarse, quer aliviar a carga diária de estresse; e também lança mão do conforto a quem escreve ou cita. Afinal, alguém pode dizer que na vida há infortúnios, ou simplesmente lembrar que “no meio do caminho tinha uma pedra.” Mas a literatura também pode dar muitos parâmetros a respeito de temas da sociedade de uma época.

 

Nesse sentido, a literatura brasileira tem episódios muito interessantes. Veja, por exemplo, D. Cláudia, uma mulher com “saudades do poder”, muito bem retratada em Esaú e Jacó: “As duas saíram de casa, uma lépida, a outra melancólica, e lá foram a escolher uma quantidade de objetos de viagem e de uso pessoal. D. Cláudia pensava nos vestidos da primeira recepção e de visitas; também ideou o do desembarque. Tinha ordem do marido para comprar algumas gravatas. Os chapéus, entretanto, foram o principal artigo da lista. Ao parecer de D. Cláudia, o chapéu da mulher é que dava a nota verdadeira do gosto, das maneiras e da cultura de uma sociedade. Não valia a pena aceitar uma presidência para levar chapéus sem graça, dizia ela sem convicção, porque intimamente pensava que a presidência dá graça a tudo”.

 

Machado de Assis dá a perfeita impressão de alguém que, naquele início de século XX — Esaú e Jacó foi publicado em 1904 —, se importava com beleza e status, em uma época em que a beleza de uma mulher era avaliada por meio das roupas que vestia e dos calçados e adereços que usava. É bom lembrar que em meados do século passado, seguindo a moda francesa, muitos vestidos mal deixavam os tornozelos femininos à mostra. Por isso, àquele tempo, os pés das mulheres, mesmo quando envoltos por botinas de couro, representavam o começo e o fim do corpo desejado. E o corpo? Bem, restava ao rosto, cabelo e pescoço concentrar indícios de beleza, ou a sua falta.

 

Por isso, já nos anos 1900, eram diversas as receitas caseiras e os artifícios industriais para melhorar aspectos físicos ou encobrir defeitos, sobretudo nas grandes cidades, locais em que a exposição da aparência física era alvo de olhares privilegiados. A grande questão é que, àquele tempo, a beleza comprada tendia a permanecer na superfície dos corpos, isto é, ainda era possível distanciar a beleza criada artificialmente, passível de ser retirada à hora de dormir, da considerada natural. Algo praticamente impossível nos dias atuais.

 

A razão da constatação vem do fato de que, atualmente, os artifícios para melhoramentos estéticos não podem ser retirados na hora de dormir, uma vez que passam a ser a própria beleza — ou a falta dela — da pessoa. Porém, procedimentos estéticos têm feito vítimas ao longo da história. Desde a década de 1960 que a imprensa brasileira alerta para os riscos decorrentes de certos procedimentos, como alergias e infecções.

 

O último caso fatal, em Goiás, ocorreu no último dia 24 de novembro, quando Maria José Medrado de Souza Brandão morreu vítima de uma embolia pulmonar após procedimento estético. A auxiliar de leilão passou mal depois de ter passado por uma sessão de aplicação de hidrogel para aumentar das nádegas e acabou falecendo. Ela já havia feito uma primeira aplicação, mas segundo relatou a família, como o resultado não a agradou, recorreu a outra clínica.

 

À esq., Maria José Souza: vítima não apenas do trabalho mal feito, mas de fatores que vão além do aparente; à dir., Na história, Raquel Rosa representou o instrumento de um contexto social que defende corpos perfeitos (Fotos: Reprodução/Facebook / André Sardinha/ Portal Catalão )

 

Maria José procurou, na internet, locais que realizavam o procedimento e encontrou Raquel Policena Rosa, que se apresentava como biomédica e residia em Catalão, mas viajava com frequência para Goiânia para realizar as aplicações de hidrogel em salas de hotéis e clínicas alugadas.

 

Após a morte da auxiliar de leilão, uma grande discussão em torno do tema circundou a imprensa goiana, o que resultou na prisão de Raquel Rosa. A questão é: por que as pessoas aceitam ser submetidas a procedimentos estéticos nas mãos de profissionais duvidosos e em locais pouco confiáveis? Uma das respostas para a pergunta — há várias — está na machadiana D. Cláudia, apresentada no início da reportagem: se, no século XX, o chapéu de uma mulher mostrava a verdadeira face do gosto, das maneiras e da cultura de uma sociedade, atualmente, o corpo é o termômetro para essa avaliação.

 

Ou seja, é uma questão cultural. Por isso, tratamentos estéticos — cirúrgicos ou não — são cada vez mais vistos como uma modificação necessária na vida de uma pessoa, independente de ser mulher ou homem (veja matéria na próxima página). Além disso, com um número crescente de possibilidades para o rejuvenescimento, fica cada vez mais difícil aceitar-se enrugado, manchado e flácido, características desprezadas pelo padrão de beleza adotado no Brasil.

 

Mas é a falta de cuidado que chama a atenção. A espera por uma solução das tristezas do corpo é tão grande, que, às vezes, o senso natural de sobrevivência é deixado de lado, pelo menos para algumas pessoas. Isto é, devido à pressão social pela perfeição corporal, algumas pessoas sobrepõem o alcance de um objetivo à própria vida. Tal reflexão não visa agregar culpa a ninguém, mas apenas analisar que, a busca irrefreável pelo aperfeiçoamento estético continuará causando problemas.

 

Um corpo tão naturalmente tropical como o Brasil

 

Livro da historiadora Denise Bernuzzi mostra como surgiram os conceitos de beleza

 

No Brasil, favorecido pelo clima, o culto ao corpo é antigo. Além dis­so, temos uma população predominantemente jovem, se comparada à so­ciedade europeia, e que vive em um país cuja beleza é louvada mundialmente. Logo, atribui-se ao Brasil a ideia de que, se o país possui uma be­leza física natural, o corpo brasileiro também deve ser naturalmente belo.
A literatura também ajudou bastante na formação desse conceito. Evoquemos José de Alencar.

 

Quem nunca ouviu falar de Iracema, a virgem dos lábios de mel, cujo cabelo era mais negro que as asas da graúna? A beleza de Iracema era tanta que a lagoa onde se banhava a mais bela filha da raça de Tupã foi batizada como Lagoa da Beleza, onde se as mães lá mergulhassem suas filhas, estas se tornariam formosas e amadas pelos guerreiros.

 

A pele morena da bela índia inundou os pensamentos da época e — por que não dizermos? — até hoje inunda. Afinal, mesmo que a fase indianista da literatura brasileira tenha passado, quem nunca imaginou Iracema como a “moça do corpo dourado do sol de Ipanema”, cujo “balançado é mais que um poema”, a coisa mais linda que já viram passar?

 

A questão é demasiadamente filosófica, mas, se o Brasil é identificado como um “gigante pela própria natureza”, o corpo do brasileiro teria o dever de representá-lo. Natu­ralmente, isso não ocorre. Entra aí, então, o artifício de um pequeno remendo no corpo para “corrigir” aquilo que deveria ser natural.

 

Nesse caso, uma cirurgia estética bem-sucedida conseguiria naturalizar aquele corpo “desprovido das forças que lhes deveriam ser naturais. Ela operaria uma conversão, tornando o corpo mais próximo de uma imagem de potência e resistência, as quais, por direito natural, são entendidas como a essência da vida física, principalmente quando se é brasileiro”, diz a pesquisadora brasileira Denise Bernuzzi em seu livro História da beleza no Brasil.

 

O conceito da beleza natural surgiu, de modo efetivo, nos Estados Unidos da década de 1950, sob a égide de que “o verdadeiro glamour é natural e elegante.” Porém, a mensagem deixava em suas entrelinhas o fato de que, para obter essa beleza natural era necessário um trabalho minucioso e constante.

 

No Brasil, conforme a tese de Denise Bernuzzi, o lema “50 anos em 5”, divulgado pela campanha eleitoral do presidenciável Jus­ce­lino Kubitschek, indicou o caminho para condensar o tempo e eliminar distâncias “outrora insuperáveis”, garantindo à época a vontade de alcançar seus objetivos rapidamente, passando pelo rejuvenescimento de velhos costumes e valores.

 

Assim, o conceito de JK ajudou a estabelecer aquilo que era pregado pelos astros hollywoodianos da época: a liberação corporal, assumindo certa naturalidade. “Todo flagrante sobre a suposta artificialidade das aparências adquiria um perfil demasiadamente pesado para aqueles anos de aceleração da corrida rumo ao desenvolvimento ur­bano, industrial e de uma crescente liberação corporal”, diz Bernuzzi.

 

Nesse momento, algumas jovens deram adeus ao laquê e, na década seguinte, logo abandonariam os sutiãs de bojo. Nas propagandas de sabonete e xampu, logo começaram a aparecer mulheres de cabelos soltos e molhados, exalando sensualidade e certa nudez. Com a nudez, apareceram as características corporais fora do padrão e, com elas, as críticas. (M.N.C)

 

Naturalidade corporal defendida ao pé da letra

 

Nos dias atuais a questão da naturalidade tem assumido seu significado literal. Não são raros os casos de mulheres que cobram, por exemplo, a inserção de mulheres com “corpos reais” em propagandas, isto é, de mulheres que não sejam as top models, cujo corpo é um modelo a ser seguido. A última polêmica com relação a isso veio com a nova campanha da marca de lingeries Victoria’s Secret.

 

 

A campanha veio com o slogan “The Perfect ‘Body’” (“O ‘Corpo’ Perfeito”) para promover sua nova linha de sutiãs, chamada “Body”. Isto é, o adjetivo “perfeito” faz menção à linha de sutiãs e não exatamente ao corpo das várias das modelos da marca, as famosas Angels, que posaram ao lado do slogan. A polêmica veio no fato de que muitas mulheres não gostaram do trocadilho, visto que a peça publicitária sugere que as Angels têm o “corpo perfeito”.

 

Tratou-se de uma jogada de marketing, mas logo vieram as reações. Não foram poucas as mulheres que foram à internet se manifestar contra a campanha. Uma das manifestações usou a hashtag #iamperfect (#eusouperfeita) para expressar a revolta, Outras chegaram a mostrar mulheres “reais” posando de lingerie para se opor ao “body shaming”, ação de envergonhar certo estereótipo em favor de outro. No geral, o “body shaming” favorece, por exemplo, as magras em detrimento das outras mulheres não inseridas nesse padrão de beleza. (M.N.C)

 

A procura incessante pela beleza também atinge os homens 

 

 

No século XIX, eram tantos os artifícios para “maquiar” a beleza de uma mulher que José de Alencar recorreu a uma crônica para expressar uma preocupação dos homens:

 

Imagine-se na posição desgraçada de um homem que, tendo-se casado, leva para casa uma mulher toda falsificada, e que de repente, em vez de um corpinho elegante e mimoso, e de um rostinho encantador, apresenta-lhe o desagradável aspecto de um cabide de vestidos, onde toda a casta de falsificadores pendurou um produto de sua indústria. Quando chegar o momento da decomposição deste todo mecânico — quando a cabeleira, o olho de vidro, os dentes de porcelana, o peito de algodão, as anquinhas se forem arrumando sobre o toillete — quem poderá avaliar a tristíssima posição dessa infeliz vítima dos progressos da indústria humana!”

 

E condição do homem do século XIX descrita por Alencar na crônica Moedeiros falsos e falsificadores da mulher, nos dias atuais se estende também às próprias mulheres, uma vez que, hoje, os homens são também alvo das investidas da indústria estética, algo que não era socialmente aceitável até o início dos anos 1920. Em seu livro, Denise Bernuzzi narra que o homem considerado belo nas primeiras décadas do século XX deveria ser robusto e ter “muque”. Leveza e flexibilidade ainda não faziam parte do charme masculino.

 

Porém, isso não significa que os homens eram totalmente desprovidos de cuidados com a aparência. No Brasil, algumas práticas básicas eram comuns na rotina de ambos os sexos, como lavar os pés antes de dormir e pentear os cabelos no começo do dia, tanto na cidade quanto na zona rural, que abrangia a maioria do território brasileiro na época. Além disso, todos os homens temiam a calvície. “O medo da calvície era certamente suplantado pelo receio das doenças venéreas, aliviado mais tarde com o uso de antibióticos, ou então pelo antigo temor da impotência”, relata Denise.

 

Denise conta, por exemplo, a história do Rodolfo Valentino, um dos primeiros símbolos sexuais do cinema norte-americano. “Seu sucesso”, narra a pesquisadora, ocorreu justamente “em meio à propaganda destinada a estimular os homens a serem vaidosos e a cuidarem sozinhos de sua aparência”, como fazer a barba — apenas a partir de 1901 que a grande parte dos homens nos Estados Unidos passou a se barbear sem a ajuda de um barbeiro. O astro exibia nas telas um rosto liso, diferentemente dos barbudos de até então, mas que não deixava de ser viril, masculino.

 

Atualmente, não raro, é possível encontrar homens em salões de beleza não apenas cortando o cabelo, mas fazendo as unhas e se submetendo a limpezas de pele. Depilações masculinas também estão em alta. São os chamados metrossexuais, caso, por exemplo, do ator Chris Hemsworth, eleito o homem mais sexy do mundo neste ano. (M.N.C)

 

 

 

Um corpo baseado no corpo do outro

 

Alexandre Herbetta: “Bem sucedido quem se aproxima do corpo ideal”

As transformações físicas são algo recorrente nos grupos humanos desde sempre, mesmo antes da publicidade e das fortes pressões sociais conhecidas atualmente. Assim, mesmo dentro do universo de pessoas que, influenciadas pela cultura, procuram transformar seus corpos, é preciso levar em consideração as diferenças das motivações. Há aquelas que querem fazer uma modificação razoável, mas há também quem queria se transformar em algo semelhante ao outro, isto é, para parecer, por exemplo, com uma celebridade.

 

Esta variação, de acordo com o antropólogo e professor da Facul­dade de Ciências Sociais da Universidade Federal de Goiás (UFG) Alexandre Herbetta, é importante de ser considerada, visto que aponta para uma extrema racionalização da aparência física. “Note-se que o termo aparência parece central nestas transformações, apontando a imagem, como locus central das relações sociais, da identidade e, da percepção de sucesso. Assim, considera-se uma pessoa bem sucedida quem se aproxima — quase nunca se atinge — deste corpo construído, que representa uma imagem um tanto padronizada”, analisa.

 

Herbetta ainda percebe outro ponto: o que a imagem física considerada ideal não é daqui — Brasil, América do Sul —, mas tem como referência o corpo do outro. Muitas vezes, assemelha-se ao corpo do colonizador, da aparência eurocentrada, “isto é, branco, de olhos claros, cabelos lisos, etc.”

 

Com relação à cirurgia plástica, especialmente as de cunho apenas estético — em direção à beleza das celebridades —, o professor relata que há, então, no Brasil um culto exa­gerado à imagem do euro­peu/colonizador e uma indústria de produção destes corpos bastante eficiente, competente e rentável. “Há se não me engano cirurgiões plásticos brasileiros mundialmente reconhecidos. Eles próprios celebridades”.

 

Assim, de acordo com ele, se a beleza ou o belo é uma busca antiga, “é impressionante pensar no que se percebe como belo atualmente, diferentemente do que se pensava antes. Em segundo lugar, no que esta percepção de beleza operacionaliza na sociedade: relações, conquistas, etc. E, em seguida, que tipo de lugar dá margem a estas considerações, ou seja, um país colonizado, ocidental, urbano e industrializado — que é, certamente, diferente do que se entende como belo em outras populações”, diz. (M.N.C)

 

Uma questão psicológica

 

Renato Lucas: “Insatisfação com o corpo só será saciada se tratarem a alma” Fernando Leite/Jornal Opção

 

As pessoas avaliam a própria imagem corporal em função de normas sociais e culturais, principalmente, as de estética. Esse conceito vai ao encontro da tese defendida pela historiadora Denise Bernuzzi de que a publicidade é um dos principais fatores para que as pessoas procurem fazer melhoramentos físicos, sobretudo por meios cirúrgicos. Segundo ela, “a crescente globalização publicitária de um padrão de beleza no qual o sucesso está sempre junto às aparências jovens e longilíneas, à pele impecavelmente lisa e firme, aos cabelos sedosos, aos lábios carnudos e aos dentes rigorosamente brancos e alinhados”, explica o sucesso mundial das cirurgias estéticas.

 

De fato, no Brasil, por exemplo, a partir da década de 1960, a imprensa passou a contribuir significativamente na valorização de passar o próprio corpo a limpo por meio do bisturi, manuseado por cirurgiões tornados em celebridades. Contudo, pode-se ir além.

 

A questão dos melhoramentos físicos, além de cultural, também passa pela psicologia. É possível ver isso na motivação das pessoas em procurar procedimentos. Os dois principais são: retardar os sinais de envelhecimento e dar um up na autoestima. A primeira questão é externa, cultural. A segunda é puramente interna, visto que passar o corpo a limpo tende a ser um recurso para combater os sentimentos de vulnerabilidade subjetiva e a ideia de fracasso afetivo-econômico-social, muitas vezes atribuído às falhas físicas.

 

E isso está mais ligado a mágoas internas, à autoimagem da pessoa. É o que faz, por exemplo, uma pessoa no peso ideal ser capaz de olhar no espelho e se ver gorda. A explicação está no fato de que há duas imagens de corpo: a física e a imagética. O corpo físico é o visto, mas nem sempre o sentido. Esse último é um corpo simbolizado, feito de palavras. Por isso, há certas regiões do corpo que são tabus para cada indivíduo.

 

Segundo o psicanalista Renato Mendonça Lucas, quando há o conflito entre essa dualidade dos corpos — físico e simbólico —, ocorre uma discrepância tão grande que faz a pessoa querer mudar. Mas mudar onde? No corpo físico, visto que, a mudança interna não é possível de maneira imediata.

 

Ele cita o exemplo de quem faz cirurgia bariátrica — redução de estômago: “A pessoa muda o corpo, mas se esquece de que ela também tem um estômago na cabeça, simbólico. Então, ela corta o estômago físico para atender a uma demanda imediata, mas o estômago simbólico ainda está acostumado com o prazer proporcionado por comer, afinal o prazer oral é um dos primeiros que temos na vida. Após a cirurgia, é necessário haver uma reeducação alimentar e esse prazer oral terá que ser reduzido, fazendo com que a pessoa precise achar outras fontes de prazer, que não são tão imediatas. Ou seja, causa problemas seriíssimos”.

 

Desse ponto de vista, para que a pessoa fique satisfeita consigo mesma, é necessário menos que uma cirurgia: “A insatisfação com o corpo nunca será saciada, se a pessoa não tratar a alma, o corpo simbólico”. (M.N.C)

 

Cabe ao médico dizer à pessoa se as razões da cirurgia são ou não legítimas 

 

As cirurgias plásticas começaram, no Brasil, entre as décadas de 1920 e 1930, em grande parte, incentivadas pela imprensa. Era comum, por exemplo, ler textos como o do escritor Berilo Neves:

 

Nada melhor para a myopia do que a visão de um bello corpo. Certas mulheres, em maillot, curam instantaneamente as conjuntivites… Por outro lado, as pernas tortas, as barrigas esfericamente imensas, os hombros derreados, os braços em forma de caniço — agravam as enxaquecas, fazem subir a febre, e podem acarretar uma crise de meningite… Nas casas onde ha muitas pessoas feias, os médicos entram com frequência… A fealdade é um toxico como o sulfato de cobre [sic]”.

 

E a crítica à feiura, segundo re­lata a pesquisadora Denise Ber­nuz­zi, não era exclusividade dos textos de Neves. A intenção à é­poca era, de fato, acabar com a feiura, “expectativa que passou a contar, cada vez mais, com a possibilidade das intervenções no corpo, não apenas cosméticas e dietéticas, mas também cirúrgicas”.

 

E o imenso progresso na área, a partir da década de 1960, cumpriu a missão de difundir excessivamente o recurso, que atualmente alcançou limites impensados quando esse tipo de cirurgia começou a ser feito. Em 2013, por exemplo, pela primeira vez, o Brasil ultrapassou os Estados Unidos na realização de procedimentos cirúrgicos estéticos, assumindo a liderança mundial em número de cirurgias feitas.

 

De acordo com o relatório divulgado pela Sociedade Internacional de Cirurgia Plástica Estética (Isaps), o país foi responsável por 1,49 milhão de cirurgias em 2013, 12,9% do total mundial — 11,5 milhões. Dos 19 tipos de operação analisados, o Brasil liderou dez: lipoaspiração (227.896 casos); aumento das mamas (226.090); correção de seios caídos (139.835); rejuvenescimento vaginal (13.683); abdominoplastia (129.601); e transplante de cabelo (8.319).

 

 

O Jornal Opção procurou o cirurgião plástico Sérgio Aidar para falar sobre essa procura excessiva de cirurgias, muitas vezes, desnecessárias. Segundo ele, o fator econômico é o principal incentivador do crescimento dos números de cirurgias feitas: a população aumentou seus rendimentos e o preço dos procedimentos caiu devido ao grande número de profissionais que há no mercado. Acompanhe:

 

No início, durante as décadas de 1920 e 1930, as cirurgias plásticas não eram populares, devido aos vários riscos. Atualmente, esses riscos são bem menores, mas ainda existem. Como o sr. enxerga essa questão?
Um mesmo procedimento cirúrgico, cuja morbidade era alta há 50 anos, já não é hoje. Isso significa que, através de estudos, foi possível conhecer melhor: a patologia, a forma que o corpo evolui melhor no pós-operatório, qual a melhor droga para fazer a anestesia, qual a melhor técnica para fazer a cirurgia, quais são os melhores materiais para usar, entre outros. Ou seja, por meio de todos esses estudos, houve um aprimoramento da cirurgia como um todo e não apenas a plástica. Então, a grande chance, hoje, é de que a cirurgia dê certo, a não ser que seja uma cirurgia de urgência e com o paciente debilitado. Felizmente, na cirurgia plástica, o paciente está com saúde e ele só a fará se todos os exames derem bom resultado. Tendo uma equipe e equipamentos de alto padrão, os riscos são extremamente reduzidos. Mas isso não significa que pode haver alguma complicação. Tudo é possível, mas a obrigação do médico é a de reduzir a chance de fracasso ao máximo, dentro dos conhecimentos existentes atualmente.

 

Por que há tanta procura por cirurgias plásticas atualmente?
O primeiro fator é econômico. Há 20 ou 30 anos, a quantidade de cirurgiões plásticos no Brasil era mínima, ao contrário de hoje, em que há uma grande oferta de cirurgia plástica qualificada no mercado. Isso porque há muitos formadores desses profissionais no Brasil, que se tornou importante no ramo. Tão importante que pessoas do mundo inteiro vêm aprender cirurgia plástica no Brasil. E com tanta gente qualificada no mercado, o preço cai. Esse fator, aliado à melhoria do poder econômico da população nos últimos anos, fez com que as pessoas tivessem muito mais condições de gastar dinheiro com esse tipo de cirurgia do que há alguns anos.

 

Muitas pessoas, que não têm necessidade de se submeter a uma cirurgia, o fazem por se sentirem insatisfeitas com o próprio corpo. Como cirurgião plástico, como o sr. avalia a grande insatisfação que as pessoas têm apresentado em relação a si mesmas?
Há dois tipos de procura: aquelas pessoas que querem reparar algum dano físico, por acidente ou doença, caso do câncer de mama ou nariz, por exemplo; e, pelo outro lado, há quem procure a cirurgia plástica por um fator estético. Essas pessoas, geralmente, querem se submeter à cirurgia por razões variadas: profissionais, emotivas, entre outros. Cada um sabe de seus defeitos. Às vezes, é possível, outras não. É preciso tomar muito cuidado porque, muitas vezes, o paciente te procura para resolver um problema que não é da cirurgia plástica. Isto é, a pessoa quer mudar algo, principalmente na face, achando que aquilo irá resolver um problema seu. E quando o médico entra “na onda” do paciente, muitas vezes, é quando aparece o mal resultado.

 

O sr. pode citar algum exemplo de casos em que o paciente quer fazer uma cirurgia pelos motivos errados?
Sim. Uma mulher que tem problemas com o marido. O casamento está ruim, o relacionamento não está dando certo. Então, ela resolve fazer uma cirurgia plástica para segurar o marido. Isso vai dar certo. De jeito nenhum. Ela provavelmente irá fazer a cirurgia e, depois, quando as coisas não saírem como ela queria, ela colocará defeito na própria atuação do médico. E isso é muito mais comum do que se pensa. É preciso tomar cuidado e conversar bastante previamente com os pacientes. O médico, na verdade, tem que se tornar o psicólogo: ouvir o paciente para conseguir orientá-lo e alertar que a cirurgia plástica tem limites. Nem sempre o que foi idealizado pelo paciente poderá ser feito.

 

Quais procedimentos são mais procurados?
Há alguns procedimentos mais procurados, como lipoaspiração. Próteses de mama também viraram febre. Costumo dizer que há dois tipos de mulher: as que já colocaram prótese e as que querem colocar. E, quando a mulher vai envelhecendo, ela quer fazer a face. Essa é a evolução das cirurgias realizadas hoje. Mas varia também por idade. Pacientes mais jovens procuram lipoaspiração e próteses de mama. Eventual­mente, fazemos modificações no nariz ou na orelha, mas não é tão comum.

 

E qual a média de idade?
Varia de 16 a 65 anos. Pró­teses em mulheres mais jovens, entre 16 e 30 anos. A plástica de barriga vai dos 35 aos 50. E a face é um pedido, geralmente, de pessoas entre 40 e 65 anos.

 

Há muitas pessoas jovens.
Sim. Às vezes, a própria família traz a jovem para colocar uma prótese, tirar uma gordurinha, ou arrumar o nariz e a orelha.

 

E por que isso acontece?
Isso é interessante. Muitas vezes, os pais estão muito mais incomodados do que os próprios pacientes. Eles veem na filha ou no filho algo que não está bonito. A mãe vê os seios da filha que não cresceram, ou, ao contrário, os seios estão muito grandes. Essas questões fazem com que esses filhos não tenham uma relação social normal. Por isso, os pais trazem os jovens para que isso se resolva por meio da cirurgia plástica. Isso ocorre com bastante frequência. (M.N.C)