"O conservadorismo sempre esteve presente"

Data: 23 de novembro de 2014

Veículo: O Popular

 

 Um dos mais respeitados historiadores do Brasil, principalmente quando o assunto é o golpe de 1964 e a ditadura militar, Carlos Fico, professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), acredita que esse período recente da história brasileira ainda carece de compreensões mais profundas sobre alguns aspectos. Entre eles, está o fato de poucos saberem que vários setores da sociedade brasileira, além das Forças Armadas, efetivamente apoiaram o golpe de Estado, como a Igreja e a imprensa. Segundo o estudioso, também pouco se sabe sobre a violência do regime contra opositores nos primeiros anos, uma fase da ditadura enganosamente encarada como mais “branda”, o que de fato não foi.Recentemente, Fico esteve em Goiânia para encerrar um ciclo de conferências na UFG sobre o assunto. Entre outros tópicos, ele abordou a relação da ditadura militar com a história do tempo presente no Brasil. Para o especialista, o tema ainda continua em aberto e afetando a atual conjuntura atual nacional. Mas diferentemente do que muitos temem, ele, no entanto, não vê a possibilidade de ascensão de um regime não democrático no País, embora vislumbre uma característica eminentemente autoritária entre parcelas da sociedade brasileira.Responsável pela área de história na Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), Fico também veio tratar de assuntos práticos em relação ao incentivo à pós-graduação no Brasil. Professor titular de História do Brasil, o pesquisador, em seus trabalhos mais recentes, aborda o papel dos EUA nas ditaduras do Brasil e da Argentina. Confira a seguir a entrevista que ele concedeu ao POPULAR:

 

Os 50 anos do golpe de 1964 fizeram de 2014 um ano de balanços da história recente do Brasil. Na academia, como agora na sua visita a Goiânia na UFG, o assunto foi tema de muitas discussões. O que mais emergiu nos debates de que o senhor participou ou presenciou?

O mais significativo foi o debate de alguns temas mais polêmicos, especialmente o fato de que houve mais violência logo após o golpe e também o fato de que setores significativos da sociedade apoiaram e ajudaram a dar o golpe, no sentido de que a responsabilidade não foi somente dos militares. As duas coisas não são muito admitidas. Quando a gente trata desse dois aspectos, em geral há surpresa entre as pessoas e até mesmo contestação.


A maioria das pessoas, então, tem muito arraigada a ideia de que a responsabilidade teria sido somente dos militares?

Sim, isso é muito forte. A própria denominação do golpe é “militar”. As pessoas associam os termos ditadura militar com golpe militar. Se a gente pode falar de fato de ditadura militar, com o golpe é diferente. Ele foi civil-militar. A expressão que muita gente usa da tal “ditabranda” pretende designar que os primeiros anos do regime militar não foram violentos. Mas na verdade foram muito violentos também.


Coincidentemente ou não, neste ano foi possível perceber a manifestação de certo conservadorismo no Brasil, que recentemente até culminou em pequenas manifestações pela volta de uma intervenção militar. Como o senhor analisa este cenário?

O conservadorismo sempre esteve presente. Agora, ganhou mais visibilidade, talvez, em função do debate eleitoral e também das redes sociais, mas sempre houve e continua havendo. Na sociedade brasileira, há setores conservadores que julgam que a própria ditadura teve bons momentos e que talvez fosse adequado haver de novo um governo muito forte. Essa é uma ideia recorrente no Brasil e continua sendo. Há setores da sociedade que têm perspectivas bastante autoritárias e admitem soluções autoritárias por parte do governo brasileiro. Aliás, é uma das causas fortes do próprio golpe de Estado em 64: esse viés autoritário, que ainda existe na sociedade brasileira. Não chega a surpreender.


Há 50 anos esse viés abriu caminhos para um golpe. Hoje, na atual conjuntura, seria possível acontecer de novo?

Não creio que hoje houvesse possibilidade para um golpe e a instauração de regime não democrático. Embora a gente tenha ainda uma democracia que precisa de aprimoramento, não vivemos numa estrutura que possibilite este tipo de regime autoritário. Já houve bastante experimentação na sociedade brasileira, desde o fim da ditadura militar, da democracia e suas práticas, sobretudo nas eleições. Houve episódios marcantes, como o impeachment de Fernando Collor, as manifestações sociais que volta e meia eclodem. Certamente esses aspectos impediriam a instalação de um regime militar, uma ditadura ou uma ação não democrática. Isso não significa que não existam ainda traços muito fortes de autoritarismo na sociedade brasileira, um problema que ainda precisamos enfrentar: essa aceitação com muita facilidade de soluções autoritárias.


Muito se critica e se fala sobre uma falta de noção da parcela mais jovem da população do que foi a ditadura militar. O senhor concorda com isso?

Essa é uma avaliação muito comum, mas eu não partilho dela. Porque eu também tenho a impressão, como historiador, que não é possível se cobrar não só da juventude, mas de qualquer grupo da sociedade, um aspecto de uma consciência histórica plena e permanente. Seria injusto até. A expressão clichê de que o brasileiro não tem memória traduz isso, mas a verdade é que em sociedade somente algumas pessoas têm uma consciência histórica plena. O que não significa que não se deseja que as pessoas conheçam a história. Essas efemérides, como os 50 anos do golpe, são inclusive muito boas para o contato com as pessoas. Sobre a ditadura, a imprensa fez muitos trabalhos bem feitos neste sentido, despertando um interesse muito grande, inclusive da juventude. Há muitas pesquisas sendo feito por jovens historiadores. Em todos os eventos de que participei, a maior parte das audiências era de jovens.

No início do ano, o senhor afirmou que neste não haveria tantas revelações sobre o golpe e isso de fato se confirmou. Mas o senhor já disse que somente cerca de 30% do acervo de informações sobre o período da ditadura foi estudado. É possível ter uma noção do que poderia emergir desse material restante?

É um pouco difícil falar, porque a documentação às vezes é surpreendente, mas às vezes é rotineira. Há aspectos que certamente ainda aparecerão, principalmente em documentos de órgãos de repressão que são pouco conhecidos e que vão se tornar mais conhecido no futuro, como é o caso da Comissão Geral de Investigações Sobre Corrupção (CGI), que foi criada em 68 e tinha a incumbência de ser uma espécie de tribunal de exceção. Esse acervo documental está sendo trabalhado por um orientando meu e é um acervo muito rico, que traz muitas revelações novas. Outra novidade tem a ver com a resistência hoje em dia no Brasil de diversos programas de pós-graduação, que é exatamente o enfoque regional que possibilita a compreensão de como foi o golpe e a ditadura militar fora do eixo Rio-São Paulo. Isso é muito interessante e tem havido revelações significativas. Em Santa Maria (RS), cidade importante na fronteira do Brasil, como grande contingente de universitários, o movimento estudantil apoiou o golpe, ao contrário da grande maioria de outros locais. O foco regional permite uma compreensão mais refinada sobre a repressão.


Entre muitos fatos sobre a ditadura, o senhor encontrou, por exemplo, provas históricas de que os Estados Unidos apoiaram a derrubada de João Goulart. Havia um temor da ascensão de uma ditadura de esquerda. Esse temor era real? Seria difícil analisar esse cenário hipotético?

Como você disse é difícil, mas, pensando em termos hipotéticos, era improvável a instalação de um regime comunista no Brasil. Por conta mesmo da sociedade, em função das convicções políticas da maioria do quadro político daquela época. O que havia era um medo grande diante das conquistas sociais que as propostas de reformas educacional, agrária, entre outros, prometiam. Essas possíveis conquistas geravam um temor e um desconforto muito grande na elite e em boa parte da classe média e esse temor era alimentado por essa propaganda anticomunista. Somente setores muito restritos da esquerda propunham isso, mas, por conta de toda a conjuntura, seria impossível a instauração de um regime comunista. Seria inclusive muito difícil a eleição de um governo com propostas de tais reformas.


Em pouco dias a Comissão Nacional da Verdade deverá apresentar seu relatório final. Já é possível avaliar o trabalho da comissão nestes quase dois anos e meio?

Eu tenho uma avaliação sim, mas quero esperar a divulgação do relatório final. Eu tenho muita expectativa de uma coisa muito específica. Eu não creio e não suponho que haja um relatório muito chocante, do ponto de vista factual. Sou um historiador que conhece bem o tema e talvez para o grande público e a imprensa pode até ser que haja alguma surpresa. Mas eu desejo muito que o relatório contenha recomendações para o aprimoramento da democracia brasileira com respeito à Lei da Anistia. Todos sabem que ela perdoou os responsáveis pelo crime de violação aos direitos humanos e pode ser que a comissão inclua nas recomendações ao Congresso Nacional e a outros setores da sociedade que reconsiderem a Lei da Anistia. Minha maior expectativa é em relação a esse ponto. Se o Congresso for instado pela Comissão e pela população a repensar a Lei da Anistia, isso talvez inicie um processo de debates que poderia ser muito útil.


Lançando um olhar geral sobre a produção acadêmica brasileira acerca da história recente do Brasil, estamos em um ponto satisfatório ou ainda haveria muito o que se fazer?

Sempre há muito o que se fazer. É uma especialidade que, ao contrário das demais, abrange um período que nunca se encerra. A história do tempo presente não é fechada. A história antiga, a medieval, a moderna têm um período delimitado, já a história presente está aberta. Há sempre temas novos. Embora tenha essa especificidade, há o fato de que desperta um interesse muito grande e há muita coisa sendo feita neste momento. Isso está até muito relacionado com a política, o que é inclusive uma dificuldade na medida em que o historiador tentar buscar um grau elevado de objetividade, que é difícil exercitar, porque estamos de algum modo envolvidos nos temas que estamos abordando.


Há cerca de dois meses a direção da Capes, da qual o senhor faz parte, anunciou que estaria autorizada pelo MEC e Ministério da Ciência e Tecnologia a contratação de professores estrangeiros por meio de organizações sociais. Qual sua opinião?

Temos na Capes um grande interesse que a pós-graduação brasileira como um todo se internacionalize, como a presença de pesquisadores estrangeiros no Brasil, assim como o envio de pesquisadores brasileiros ao exterior. É um objetivo essencial da Capes. Hoje há um sistema de concessão de bolsas para remeter brasileiros ao exterior, entre graduandos e pós-graduandos, além de professores. Somos a favor de todo tipo de procedimento que desburocratize a contratação de pesquisadores brasileiros para atuar no Brasil. Em alguns casos ainda há restrições e dificuldades. Às vezes a gente tem interesse de brasilianistas, por exemplo, historiadores de outros países que estudam o Brasil. Como há dificuldades em trazê-los, qualquer iniciativa que resolva isso é vista por nós como positiva. Há saídas legais como essa (organizações sociais). Esse diálogo com o cenário internacional é muito rico. No próximo ano, eu quero propor um grande debate aqui no Brasil sobre como nós podemos fomentar a pesquisa da história não brasileira feitas por brasileiros. Sobre que tipo de apoio historiadores brasileiros podem dar aos estudos da história mundial, um passo muito ousado, que qualificaria muito os pesquisadores brasileiros.

 

 

O conservadorismo sempre esteve presente. Agora, ganhou mais visibilidade, talvez, em função do debate eleitoral e também das redes sociais, mas sempre houve e continua havendo. Na sociedade brasileira, há setores conservadores que julgam que a própria ditadura teve bons momentos e que talvez fosse adequado haver de novo um governo muito forte”