As imagens e a saudade

Data: 27 de outubro de 2014

Veículo: O Popular

 

Mãe de Samuel Costa, Ambrosina Franco Costa guardou com cuidado o riquíssimo acervo deixado pelo filho

 Rogério Borges

Sebastião Nogueira

Ambrosina Costa, com a foto do filho: cuidado com o acervo

 

O quarto no apartamento amplo do Edifício Bemosa, no Centro de Goiânia, permanece tal qual Samuel Costa deixou. Na cama estreita, ladeada por quadros de Cléa Costa e Iza Costa, um dos grandes talentos da fotografia revelados em Goiás passou seus últimos dias. Sua mãe, a professora aposentada Ambrosina Franco Costa, hoje com 87 anos, guardou tudo e não se esquece de nada.

É uma dor tremenda. Às vezes quero mexer nisso aqui e até começo a organizar tanta coisa que ele trouxe da Europa quando veio da última vez, mas fico muito triste. Talvez seja exigir demais de mim.” Mesmo sofrendo a perda de um filho que tinha apenas 33 anos de idade, ela não deixou seus milhares de negativos, correspondências e objetos pessoais caírem no esquecimento.

A família era de Jataí, mas, quando os filhos mais velhos cresceram, Ambrosina e o marido se mudaram para Goiânia. O ano era 1968 e eles compraram um apartamento naquele que era então o edifício mais alto da capital, que só ocuparam dois anos depois. “Nem instalação elétrica tinha aqui. Fui uma das primeiras moradoras do Bemosa”, recorda a matriarca.

O prédio recebia, assim, um promissor aspirante a fotógrafo que, com 14 anos, já reconhecera sua paixão. “O Samuel trabalhava com o pai na fábrica de artigos de couro. Ele fazia umas bolsas lindas. Juntou dinheiro e comprou sua primeira câmera. Tinha apenas 8 anos de idade”, conta a mãe, que ainda preserva, em uma caixa, as imagens iniciais da primeira lente que Samuel teve nas mãos.

ENGENHARIA

Ele chegou a cursar Engenharia Elétrica na UFG, mas deixou o curso no meio para correr atrás de um sonho. “Quando tinha 21 anos, ele disse que queria ir para a Europa e foi. Chegou lá sem saber falar francês e pouco tempo depois já lecionava o idioma”, admira-se Ambrosina. Uma capacidade de aprendizagem que já havia mostrado antes, primeiro com a fotografia e depois com a música.

Uma irmã dele tinha aulas de piano, mas era Samuel quem tocava com a maior facilidade, sem que ninguém lhe desse lições. Chegava do cinema e começava a tocar a trilha sonora do filme.” Samuel fez trabalhos publicitários em Paris e passou a conviver com estudantes brasileiros que moravam na capital francesa nos anos 1970. Um deles ajudou agora a dar maior divulgação ao seu legado.

Ele merece um estudo biográfico mais detalhado, de maior porte”, opina o professor e escritor Luís Araujo Pereira, um dos organizadores do catálogo e que foi amigo de Samuel desde os tempos de Paris, onde estudava literatura. “Era um sujeito muito interessante, que gostava de cinema, de histórias em quadrinhos, de rock. Muito atencioso com as necessidades dos outros”, assinala, lembrando que nos anos 1970 o Brasil vivia uma ditadura militar e Paris era o destino de exilados políticos.

Lamento não termos conseguido incluir mais fotos nesse catálogo, mas tentamos mostrar a diversidade de seus assuntos fotográficos. Algumas não puderam entrar por conta de direitos de imagem”, esclarece Luís. “Infelizmente, pouca gente conhece sua obra. Samuel é alguém que ainda precisa ser descoberto.”

 

A morte precoce

Por algum motivo que até hoje Ambrosina Franco Costa não consegue explicar, ela começou a se interessar por uma doença que significava verdadeira sentença de morte nos anos 1980. “Tudo que saía em jornais, revistas sobre aids, eu recortava e guardava.” Isso a auxiliou a entender, depois, a tragédia que se abateria sobre sua família.

Tudo o que de pior aconteceu em minha vida, ninguém precisou me contar. Eu senti! Foi assim com o Samuel também.” Em 1986, quando o fotógrafo veio ao Brasil para uma de suas visitas costumeiras, a mãe o achou magro. Pouco tempo depois, ele disse que havia tido uma espécie de alergia no couro cabeludo e que ficara careca. “Ele estava me preparando”, acredita a mãe. Em 1987, Samuel telefonou e avisou que estava voltando.

Ambrosina estranhou o retorno repentino e, quando o filho chegou, em junho daquele ano, ela não teve mais dúvidas de que algo errado estava acontecendo. “Ele estava muito magro e tomava uma quantidade enorme de remédios que lhe faziam muito mal.” Certo dia, os dois sozinhos em casa, ela o deixou descansando na sala e foi à cozinha.

Ali eu tive um estalo: ‘ele está com aids’. O chão se abriu debaixo de meus pés.” Lendo as matérias sobre a doença que guardara, percebeu que os sintomas descritos correspondiam com os do filho. Foram cerca de três meses de dor e cuidados. Samuel morreu confortado por família e amigos. “Ele não falava de morte. Nunca!”, observa Ambrosina. Ficaram as recordações. Elas estão nas telas recebidas de presente, nas fotos, no olhar doce e saudoso de sua mãe.

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Curiosidades

 

■ Entre as fotos tiradas por Samuel, há registros de grandes nomes da cultura nacional. Ele fez fotos, por exemplo, de Maria Bethânia, Gal Costa, Gilberto Gil, Milton Nascimento, Lygia Fagundes Teles, Elis Regina, Caetano Veloso e Clementina de Jesus.

■ No exterior, os diretores Michelangelo Antonioni e Clint Eastwood e os filósofos Michel Foucault e Jürgen Habermas também passaram por suas lentes.

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