Em reportagem sobre o desarmamento, professor da Faculdade de Ciências Sociais é entrevistado

Jornal Opção, de 31 de outubro a 06 de novembro de 2010

Violência

Me dá sua arma aí

Campanha para estimular o desarmamento no Brasil passa a ser anual, a partir de 2011. Militantes acusam governo federal de adotar silenciosamente práticas totalitárias no País

Sarah Mohn

Umas das cenas mais impactantes do filme campeão em bilheteria na história do cinema brasileiro, o longa-metragem “Tropa de Elite 2”, traz à tona um tiroteio entre polícia e traficantes numa favela do Rio de Janeiro. A priori, nada novo quanto ao motivo pelo qual a guerrilha urbana havia sido instaurada: no roteiro ficcional, o Batalhão de Operações Especiais (Bope) invadira um dos morros habitados da Cidade Maravilhosa para resgatar armamento que teria sido roubado da polícia por líderes do tráfico de drogas. O curioso é que, escrachadamente, o filme explica que o assalto ao distrito policial onde eram guardadas as armas e munições roubadas havia sido realizado pela própria polícia, ou por sua parcela corrompida, antes de ser escondido na favela.

Na vida real, casos que atestam a fragilidade da polícia brasileira em resguardar seu próprio armamento são frequentemente estampados em noticiários da imprensa. Alguns dos fatos mais curiosos têm sido vivenciados por moradores de Fortaleza (CE), cidade em que um terço da população reside em favelas (dados do IBGE). Lá, em janeiro deste ano, dois assaltantes se vestiram como mendigos antes de render três policiais militares que patrulhavam uma praça. Roubaram duas pistolas e um colete à prova de bala.

Quatro meses depois, em maio deste ano, a Polícia Militar do Ceará apreendeu, numa operação que durou dois dias, dez armas das mãos de bandidos. Duas delas eram de uso exclusivo da polícia. Anos antes, em 2007, também em Fortaleza, 12 fuzis desapareceram de dentro da reserva de armas do Quartel do Comando Geral da Polícia Militar e nunca foram localizados. 

É em meio à guerrilha urbana protagonizada por polícia e bandido no Brasil, e que a cada novo episódio expõe a vulnerabilidade da sociedade civil, que o cidadão brasileiro deve aguardar o retorno de um debate que parecia adormecido. Juntando-se à indigestão de “Tropa 2”, o tema envolvendo armas, sociedade civil, segurança, polícia e política nunca esteve tão alto em 2010. Mas é em 2011, mais precisamente em julho do próximo ano, que o assunto promete esquentar a discussão.

O aviso veio há poucos dias, precisamente em 21 e 22 de outubro. Na data, a Organização Não Governamental (ONG) Viva Rio e a Rede Desarma Brasil, com apoio do Ministério da Justiça, realizaram o Seminário Internacional sobre Desarmamento. Especialistas de vários países, como Angola, Moçambique, Colômbia e Argentina, vieram ao Brasil falar sobre o sucesso do desarmamento civil em suas nações. Nada distante do que pregam as cartilhas de cidadania.
O que torna tão polêmico o seminário e abre as portas para o retorno do debate estava nas mãos do ministro da Justiça, Luiz Paulo Barreto. Em documento apresentado e detalhado no evento, Barreto propôs a criação do Dia Nacional do Desarmamento Voluntário, a se realizar anualmente no primeiro sábado de julho, a partir de 2011. O objetivo oficial é incentivar as campanhas que serão realizadas no País, entre abril e julho próximos. “Vai ser como campanha de vacinação, política pública realizada todos os anos em benefício da população”, declarou.

O projeto já está no Palácio do Planalto aguardando a assinatura do presidente Luiz Inácio Lula da Silva para se tornar decreto presidencial. Não precisa, portanto, de aprovação do Congresso para ser validado. O curioso é que, há cinco anos, quem foi às urnas participar obrigatoriamente do referendo das armas provavelmente achou que o assunto estivesse encerrado. Ledo engano. A população brasileira foi contra a proibição da comercialização de armas de fogo e munições, mas a intenção em desarmar a sociedade civil continua em voga.

Os críticos da volta do debate sugerem que, disfarçados em campanhas de conscientização, o governo petista do presidente Lula da Silva pretenda implantar ações que resultem a longo prazo no completo desarmamento da população. “A intenção é que, a partir de 2011, o novo Congresso eleito comece a aprovar novas leis e medidas restritivas, até o momento em que vai ficar tão burocrático e caro que de uma forma ou de outra a população ficará impossibilitada de comprar uma arma de fogo normalmente”, sugere Bené Barbosa, presidente da ONG Viva Brasil, a maior organização no País na campanha contra o desarmamento civil.

Barbosa, que há 15 anos estuda o assunto, critica o que chama de real interesse do Estado em desarmar a população e compara as campanhas sobre o tema que recebem apoio governamental aos primeiros passos de governos que implantaram regimes totalitários no mundo, como Itália (fascismo), Alemanha (nazismo) e Rússia (estalinismo e leninismo). “É o Estado controlando absolutamente tudo, inclusive a vida privada do cidadão. O único objetivo do Estado é ter o monopólio da força. Vladimir Lênin (líder da União Soviética de 1917 a 1924) dizia: ‘Se não deixamos o povo ter ideias, porque vamos deixar ter armas?’. Tenho uma preocupação muito grande, pois o Brasil está se tornando totalitário”, opina.

Em entrevista ao Jornal Opção, o presidente da ONG Viva Brasil fez um desabafo polêmico. Segundo ele, numa reunião em que participou no ano de 2007, quando o atual ministro da Justiça, Luiz Paulo Barreto, ainda era secretário-executivo da pasta, Barreto teria declarado que, embora o governo tivesse “perdido” o referendo, os líderes contra o desarmamento da população iriam “continuar sendo perseguidos”. “E é isso que eles estão fazendo. Esse pessoal, infelizmente, é muito pouco afeito à democracia. Desde 2005, quando tivemos o referendo, ficou muito claro que, apesar do resultado, eles não iriam desistir do intento deles”, afirma Bené Barbosa.

O presidente acredita em tentativa de imposição política sobre a vontade da população e contesta o argumento que vincula as campanhas desenvolvidas pela ONU às brasileiras. Segundo Bené, o interesse da ONU em desarmar a população se iniciou em 1954. Naquele ano, a entidade teria adotado um livro de política internacional sobre estudos que alertavam para o perigo de se realizar intervenção em países com tradição em cultura de tiro, como caça, e naqueles em que a população fosse armada. “Então, não tem nada a ver com controle de criminalidade. Vincular o Brasil à ONU é um plano de fundo do governo daqui, uma desculpa para desarmar a população.”

Do outro lado

Na mesa de debate, o grupo a favor do desarmamento civil se ampara nos artigos 31e 32 da Lei 10.826/03, que originou o Estatuto do Desarmamento, para legitimar a realização de campanhas. O texto atesta que o cidadão pode, quando quiser, entregar uma arma de fogo, registrada ou não, na Polícia Federal ou instituições públicas credenciadas. A lei garante ainda que o indivíduo que optar pela entrega receberá uma indenização de R$ 100 a 300 reais, dependendo do tipo da arma. “A pessoa que entrega armas o faz porque quer entregar armas. Quem é contra o desarmamento voluntário é bandido. Se a pessoa quer entregar arma, está no direito dela”, diz Antônio Rangel Bandeiras, coordenador de Controle de Armas da ONG Viva Rio.

Junto ao Movimento Sou da Paz, a ONG Viva Rio encabeça a principal frente a favor do desarmamento no Brasil. Pelo Viva Rio, Antônio Rangel afirma que “a própria lei do Estatuto do Desarmamento estabelece que o País deve estabelecer campanhas de desarmamento voluntário. Então, podemos fazer quantas campanhas quisermos”. Ele se refere ao Decreto de Lei 6.715/08, que alterou a Lei 10.826/03 ao direcionar à competência do Departamento de Polícia Federal “o estabelecimento de procedimentos necessários à execução da campanha do desarmamento e de regularização de armas de fogo”.

O argumento prioritário de quem é a favor do desarmamento tem como base números de várias pesquisas sobre a criminalidade do Brasil. “Como a criminalidade continua a ser um grande problema no País junto com as mortes por armas de fogo, inevitavelmente, o tema voltou à agenda. A questão da insegurança continua a ser a maior preocupação do brasileiro, até mesmo maior do que a preocupação com desemprego. O ministro resolveu tornar a campanha anual. Para isso, eu o convenci a fazer o seminário no Brasil com as melhores campanhas realizadas no mundo”, explica Rangel.

Campanha vai durar três meses

Em 28 de agosto, um convênio assinado entre o Ministério da Justiça e a Rede Desarma Brasil garantiu investimento de R$ 869 mil para a formação de um sistema que se torne apto a receber armas de fogo da população. Divulgou-se que, a partir de 2011, igreja, lojas da Maçonaria e inclusive postos de saúde devem passar a receber as entregas voluntárias. Atualmente, apenas a Polícia Federal recebe esse tipo de objeto.

A expectativa é que os novos postos de recolhimento comecem a funcionar em abril do próximo ano, mês em que se iniciará uma campanha intensa, com duração aproximada de três meses, para estimular o desarmamento voluntário. O projeto de tornar permanente a campanha de desarmamento voluntário se concretizou junto aos baixos números de entrega de armas registrada nos últimos anos. É que, logo após a publicação do Estatuto do Desarmamento, uma mobilização nacional realizada entre 2004 e 2005 conseguiu reunir quase 500 mil armas entregues por voluntários à Polícia Federal. Depois disso, no entanto, não chegaram a 30 mil a quantidade de armas de fogo desfeitas pela sociedade.

O seminário da semana passada foi o fogo da brasa para despertar o debate. Realizado por meio de convênio entre governo, ONG’s e igrejas que integram a Rede Desarma Brasil, o ministro da Justiça afirmou que o projeto é “transformar a campanha de desarmamento voluntário em política de Estado, e não apenas de eventuais governos, realizando-a todos os anos, no mês de julho”. Para isso, vai se espelhar, e ao mesmo influenciar, campanhas de outros países.

O exemplo da Argentina tende a ser o principal a ser explorado. Os acertos da campanha argentina, de acordo com Antônio Rangel, do Viva Rio, são a indenização pela entrega também de munição, que registrou 775 mil munições; o pagamento imediato da indenização por meio de cheque ao portador, e não em forma de pagamento bancário, como ocorreu no Brasil; e a não exigência de CPF para fazer a entrega.

Segundo Rangel, o Instituto Sensus realizou um levantamento mostrando que foi mantido o mesmo número de apoio ao desarmamento tanto antes do referendo, quanto depois — 82% da população brasileira. “A população brasileira é esmagadoramente a favor do desarmamento voluntário. A maioria do eleitorado se posicionou contra a proibição da venda, mas são coisas diferentes.” Ele cita como exemplo de empenho a capital Bogotá, na Colômbia, que em 14 anos teria realizado 17 campanhas a favor do desarmamento. Nos últimos anos, Bogotá deixou de ser uma das cidades mais violentas do mundo.

“Nós achamos que o desarmamento é uma das formas de diminuir os homicídios por arma de fogo. Uma das grandes fontes que abastecem a criminalidade são as nossas armas. Quanto menos armas nas residências, menos armas nas mãos de bandidos. Nós somos involuntariamente umas das maiores fontes de armas para bandidos”, argumenta Rangel. Segundo o coordenador de Controle de Armas do Viva Rio, o desarmamento está diretamente ligado aos índices de homicídios interpessoais. “O maior perigo são pessoas conhecidas.”

Rangel cita duas pesquisas, uma feita pelo governo da Austrália e a outra pelo governo dos Estados Unidos, que mostram praticamente o mesmo número. A dos Estados Unidos apontou que 85% dos americanos mortos por armas de fogo foram assassinados por conhecidos. Na pesquisa da Austrália, esse número é de 86%. “É um grande mito achar que quem vai nos matar é um desconhecido, um assaltante que vem de fora. Isso acontece, mas é minoria. O brasileiro ainda está muito mergulhado em mitos. O que nós fazemos é estudar cientificamente a questão de homicídios”, diz.

Criminalidade não será extinta apenas com desarmamento

Um dado polêmico consta na edição de 2010 dos Indicadores de Desenvolvimento Sustentável no Brasil, feito pelo IBGE: a região Sul, apesar de possuir a maior taxa de armas legais do País (26,55 por 100 mil habitantes) apresenta a menor taxa média de homicídios (21,4 homicídios por 100 mil habitantes). Mais: fica também no Sul o Estado menos violento do Brasil. Santa Catarina possui taxa de 10,4 homicídios por 100 mil habitantes.

Curiosamente, a região Nordeste tem a maior taxa média de homicídios (29,6 homicídios por 100 mil habitantes) e possui taxa de apenas 1,4 arma legalizada para cada 100 mil habitantes. Segundo os indicadores do IBGE, fica no Nordeste o Estado mais violento do Brasil: Alagoas registra 59,5 homicídios por 100 mil habitantes. Outros dados, esses do Ministério da Saúde, mostram que a taxa de homicídios no Brasil não se alterou consideravelmente na última década: caiu de 28,9% para cada 100 mil habitantes, em 2003, para 25,2%, em 2007.

Apesar dos números, a simbiose entre criminalidade e armas de fogo é real até certo ponto. Dijaci David de Oliveira, doutor em Sociologia pela Universidade de Brasília (UnB) e professor da Universidade Federal ad Goiás (UFG), explica que os levantamentos feitos de 2003 para cá têm indicado redução na chamada “violência difusa”.

“Havia uma incidência sistemática de uso de armas de fogo que estavam nas mãos de civis e que em momentos de brigas acabavam sendo utilizadas”, diz. Ele argumenta que o Estado acaba ficando de mão atadas para prevenir casos envolvendo crimes entre civis, senão evitando que o cidadão porte armas. “Violência difusa é um tipo de violência em que o Estado acaba agindo somente depois que acontecer alguma tragédia. Se há uma arma em casa, a qualquer momento alguém pode cometer um suicídio ou matar algum vizinho, por exemplo. Não há realmente controle.”

Um exemplo é a violência contra mulheres. O sociólogo questiona qual seria a possibilidade de o sistema de segurança pública controlar casos de violência contra a mulher. E responde: “É muito precária. Não há como colocar um policial em cada residência. O que ela tem que fazer é campanha o tempo todo, sistematicamente, para assegurar que as mulheres não sofram violência.”

Dijaci afirma que, no entanto, o combate à criminalidade urbana não pode se restringir a campanhas a favor do desarmamento civil. “Crime organizado não compra armas de pessoas, utiliza fronteiras para trazê-las, inclusive, atendendo precisamente o que os criminosos querem, afinal eles estão enfrentando uma polícia e precisam mostrar que são mais fortes que ela”, salienta.

Para combater a criminalidade organizada, que está em outro campo de violência, é necessário  um olhar mais amplo sobre o problema. “Quem deve enfrentá-la é o sistema de segurança, que precisa não só de pessoas treinadas para usar armas de fogo, mas de muito recurso para desenvolver atividades específicas.”

Armas e bandidos

Segundo dados levantados pela ONG Viva Rio e divulgados em outubro de 2009, pelo menos 3,8 milhões de armas no Brasil estão nas mãos de bandidos. O número apresentado é superior à quantidade de armas pertencentes às polícias, cerca de 2 milhões. O relatório apontou ainda que no País cerca de 8,5 milhões de armas estão em situação ilegal e a maior parte delas estaria em mãos de civis sem envolvimento com o crime.

O documento, elaborado em parceria com a Subcomissão de Armas e Munições da Câmara dos Deputados e a Secretaria Nacional de Segurança Pública do Ministério da Justiça, foi o primeiro estudo do desempenho do poder público nessa área após a aprovação do Estatuto do Desarmamento (2003). Ele mostrou também que 14% das armas ilegais apreendidas aqui são fabricadas no exterior e geralmente roubadas do exército boliviano — entrariam no Brasil pelo Paraguai.

O número mais alarmante, no entanto, tem raízes brasileiras. De acordo com o levantamento, 86% das armas ilegais são nacionais e roubadas da polícia, exército ou cidadãos comuns. No ano passado, apenas no Rio de Janeiro, a polícia perdeu 50 fuzis para assaltantes.