Fidelidade ao real

Fidelidade ao real

 

Eric Rohmer, cujos filmes  estão sendo exibidos no Cine  UFG até quarta-feira, extraiu da representação do cotidiano a pujança lúdica da dramaturgia

 

O Popular, 28/06/2010

Rafael Carneiro Rocha

 

Numa crônica intitulada Rohmer Justíssimo, o crítico português João Bénard da Costa cita uma declaração do cineasta. "Há algo de positivo na fidelidade, que hoje talvez seja menos evidente do que outrora, quando a vida era feita de fidelidades: a uma religião, a ritos, ao casamento, a nós próprios", dizia Eric Rohmer.

 

O cineasta francês, a quem o Cine UFG dedica uma mostra que se encerra nesta quarta-feira, dia 30, criou um cinema de fidelidade ao real. No corpo de sua obra, alternam-se destinos felizes, melancólicos e misteriosos para os seus personagens. Porém, a câmera do cineasta é serena. Sua dramaturgia é estática. No tempo quase sempre prolongado de cada quadro, ele valorizava gestos mínimos e palavras diversas. Essas imagens evitam tanto a postura melodramática do otimismo inconsequente como o sensacionalismo crítico dos filmes que terminam mal.

 

Fiel a um rigor de cinema, Eric Rohmer se fez fiel ao real. O cineasta foi um dos raros talentos que conseguiu extrair da representação prosaica do cotidiano a pujança lúdica da dramaturgia. Numa cena de Conto de Inverno, uma moça e sua filha pequena entram num ônibus. Durante a viagem, a mulher reencontra depois de cinco anos o pai da menina. Tal encontro é uma surpresa tipicamente romanesca, porém a câmera de Rohmer busca a encenação fiel ao real. Não há música de fundo nem os closes cinematográficos que fetichizam a expressividade exagerada dos atores.

 

Em sua obra, as narrativas se encerram ao sabor da vida que continua. O término dos seus filmes são abruptos, possivelmente um aceno para Alfred Hitchcock. Do mestre do suspense que Rohmer admirava bastante, basta lembrar, por exemplo, de James Stewart e Doris Day chegando ao apartamento com o filho recém-resgatado no final de O Homem que Sabia Demais. Hitchcock filma a cena com o quadro aberto e, no momento da interrupção inesperada do filme, o mistério da existência continua.

 

Eric Rohmer também filmava mistérios. Atento ao real, o cineasta fazia um cinema de suspense porque ele buscava contemplar o grande mistério da civilização. Para Rohmer, nada parecia mais relevante às surpresas da existência do que a dramaturgia simples dos encontros e desencontros amorosos.

 

Em O Belo Casamento, A Mulher do Aviador, O Amigo da Minha Amiga e nos filmes da série Contos das Quatro Estações, o espectador é convidado a esperar por resoluções de um único mistério: como será resolvida a vida amorosa dos personagens. Dos interesses conjugais, românticos e sensuais entre homens e mulheres, Rohmer construiu uma obra. Os seus filmes somente serão considerados monótonos e repetitivos se o olhar do espectador não perceber, nos desenlaces narrativos do amor, a poesia que funda as sociedades.

 

Para decepção de alguns, Eric Rohmer não foi um crítico previsível dos costumes, como se poderia esperar de um artista que entendia bem as pessoas. O cineasta não criticava instituições e grupos sociais, porque era somente na representação não julgadora do real que ele revelava dignamente as nuances verdadeiras dos indivíduos.

 

A caricatura, o determinismo e o estereótipo passaram longe de sua obra. Se o espectador percebe algum tipo de olhar irônico nos filmes de Rohmer, o senso de ironia está mais em quem assiste do que no cineasta que cria. Mais do que um crítico, aquele sujeito que coloca o mundo em crise, Rohmer era um criador, alguém que criava formas para representar seu olhar artístico fiel ao mundo e aos homens.

 

Um de seus últimos filmes, A Inglesa e o Duque, que recria o momento histórico da Revolução Francesa, foi atacado pelo suposto ponto de vista favorável à aristocracia. Porém, como um artista que visa o belo, Rohmer busca nos gestos e nas falas da aristocracia, antes de tudo, a beleza dramatúrgica. O ponto de vista do filme é somente aquele permitido pelo belo. Além da construção do teatro dos costumes, o filme se apega à plasticidade para arrematar sua fidelidade ao real.

 

Cenários pintados são inseridos digitalmente nas cenas de modo a envolver os personagens em encenações comuns às artes plásticas. Como em toda a obra de Rohmer, A Inglesa e o Duque faz do rigor da arte a representação da vida em sociedade sem o olhar julgador.