Cidade plural

Cidade plural

Brasília completa hoje 50 anos com o perfil de uma metrópole cheia de desafios e dona de uma diversidade que a torna singular

Rodrigo Alves – 21/04/2010

A cidade da integração. A cidade modernista. A cidade das oportunidades. Assim, há meio século, foi concebida Brasília. Hoje, comemorando 50 anos, ela é muito mais. É a cidade dos que exercem e dos que coabitam com o poder. A cidade que vê de perto a corrupção, mas é realmente mantida por gente trabalhadora. A capital onde o horizonte é vasto, física e ideologicamente. São muitas as maneiras de definir a capital brasileira, mas são singulares as características que fazem dela um caso único, como a capacidade de ainda despertar amor e ódio nos brasileiros.

Cinco décadas parecem pouco, mas foram o suficiente para consolidar Brasília de maneira muito bem entranhada no imaginário popular, para o bem ou para o mal. Vista como uma cidade moderna, também é estigmatizada pelos abusos do poder de um sistema político do qual é sede. Mas pouco é vista e entendida como verdadeiramente é: uma metrópole cosmopolita, com todos os problemas de uma típica grande cidade, abrigando uma diversidade cultural que só o Brasil é capaz de produzir.Idealizada ainda no período colonial como projeto de integração do País então voltado ao litoral, de costas para seu interior, Brasília levou quase dois séculos para sair do papel. O embrião da ideia foi anunciado ainda pelo célebre Marquês de Pombal, que a via não somente como capital brasileira, mas como de todo o império português. Mesmo com a posterior independência nacional, que fez do Brasil um império e mais tarde uma república, a cidade, porém, só saiu do papel após seis décadas do início do século 20, como um projeto ousado do presidente Juscelino Kubitschek, quando a República já completava 71 anos.

Seu projeto urbanístico de vanguarda até hoje tem detratores que a veem como uma utopia não realizada. Mesmo assim, a maioria está mesmo do lado dos defensores apaixonados que o consideram a maior realização urbanística já posta em prática até hoje. É inegável, no entanto, que a capital tornou-se um divisor de águas na história do País. Tanto por, enfim, conseguir promover a integração territorial – característica que faz de Goiás um de seus principais devedores –, quanto por se tornar, em meio a todo seu concreto armado, a terra dos sonhos de tantos brasileiros que a ajudaram construir.

Desafios
Longe do debate conceitual sobre sua construção, a Brasília atual emerge no cenário nacional com desafios que vão além do modernismo dos traços do urbanista Lúcio Costa e do arquiteto Oscar Niemeyer. Alguns deles, de origens mais práticas, dizem respeito aos problemas comuns a tantas outras cidades do País, como trânsito caótico e transporte coletivo ineficaz. Outro, mais específico, está na pecha negativa inerente à própria proposta de sua fundação: ser o centro político de um país cultural e historicamente descrente de seus homens políticos.

“Estruturalmente, Brasília é o exemplo mais paradigmático do urbanismo moderno, mas, como toda cidade é dinâmica, hoje sofre com problemas que vão além disso”, analisa a professora da Pontifícia Universidade Católica (PUC) de Goiás Deusa Maria Boaventura, doutora em fundamentos de arquitetura e urbanismo. Às voltas com esses desafios, a cidade tem um perfil desafiador para qualquer administrador público que se preze. Hoje, o pouco mais de 5,8 mil km² que constitui o Distrito Federal, antes pertencentes ao Centro-Leste de Goiás, abriga uma metrópole com 2,6 milhões de habitantes, o que equivale a quase metade de toda a população goiana.

Como se a alta densidade demográfica não fosse o bastante, a cidade ainda sofre com a alta concentração e a má distribuição da renda entre seus habitantes. O que resulta, obviamente, em índices preocupantes de violência e desigualdade social. O fato de não conseguir acompanhar as demandas crescentes da população, assim como outras cidades, faz ainda com que Brasília acabe arcando com certos tipos de ônus para os quais definitivamente não foi planejada, como a alta concentração de veículos em suas vias.

Para o historiador e pesquisador da Universidade Federal de Goiás (UFG) Luiz Sérgio Duarte, cujo trabalho acadêmico desenvolvido na Universidade de Brasília (UnB) resultou no livro Construção de Brasília: Modernidade e Periferia, a realidade atual é totalmente diferente da época da concepção e fundação da cidade. Especialmente se comparada aos conceitos funcionalistas do urbanista francês Le Corbusier, mestre de ícones como Niemeyer. “Assim como Goiânia, outra cidade-fronteira, Brasília enfrenta hoje uma realidade diferente. É uma cidade cujos planos da construção estão em ruínas. Seu principal desafio é vencer agora problemas não previstos”, observa o historiador.

Várias identidades

O Popular

Relacionar o nome de Brasília a escândalos políticos e à ideia de corrupção tornou-se praxe no imaginário popular. Embora seja em parte um equívoco, Brasília deverá continuar reduzida ainda por muito tempo a esta visão. “É quase automático que o cidadão comum associe a cidade onde está centralizado o poder como centro de corrupção. Em especial em um país historicamente marcado pela forma clientelista de fazer política como o Brasil, conceito que também é diariamente reforçado pela mídia”, observa a cientista política Silvana Krause, professora da Universidade Federal de Goiás (UFG).

A pesquisadora defende que Brasília não deveria ser vista como um caso isolado do resto do Brasil, no que se refere à maneira de fazer política. Pelo contrário. “Ela não se distingue do resto do País de forma alguma neste sentido. Somente reflete as práticas que são comuns a todo o resto do País, tanto nas capitais como nos demais municípios dos Estados brasileiros. O fato é, que no imaginário das pessoas, a cidade simplesmente sugere a ideia de distanciamento, que na verdade não existe”, rebate ela.

Coincidentemente, a cidade comemora seu aniversário hoje pouco depois de ter outro governador eleito fora da época habitual, por causa de um dos maiores escândalos políticos já registrados na capital federal. Envolvendo o ex-governador José Roberto Arruda (DEM), que foi preso e renunciou diante de denúncias de que teria protagonizado atos de corrupção, a situação contribuiu para ampliar a visão disseminada de cidade corrupta. O antropólogo Gustavo Lins Ribeiro, da Universidade de Brasília (UnB), sai em defesa da cidade. “Acredito que Brasília está sendo exemplar neste caso, já que conseguiu fazer com que o governador saísse”, argumenta.

Nascido em Pernambuco há 56 anos e morador da cidade desde os 8, o antropólogo explica que a cidade ainda está em processo de construção da própria identidade. “O brasiliense tem a identidade cultural ainda muito marcada pela migração, já que ele ou seus pais vieram de outros lugares”, destaca, ressaltando que nordestinos, mineiros, goianos e cariocas são os principais formadores do povo brasiliense. O fato, completa ele, é positivo porque a mistura de tantas culturas acaba resultando em uma sociedade diversificada e rica, que nos próximos 50 anos terá de se acostumar cada vez mais a manter uma grande região metropolitana conurbada e plural.