Crianças sem médicos

Crianças sem médicos

A servidora pública Agnes Arato é mãe de uma garotinha de quase dois anos. Como toda mãe, Agnes está sempre levando Manuela a consultas para verificar a saúde da jovem menina. Contudo, nem sempre isso é uma tarefa fácil, pois Agnes é mais uma das que perceberam na prática a diminuição no número de pediatras em Goiânia.
“O problema não é só marcar as consultas com o pediatra, mas achar pediatras que sejam especialistas em outras áreas, como os pneumopediatras. Aí sim é uma tarefa árdua. Quando tem, a consulta é para um ou dois meses, quando a criança nem precisa mais dos serviços médicos”, afirma a servidora.
A situação está se tornando corriqueira não só no estado, mas em todo o país. Dados da Sociedade Brasileira de Pedi­atria apontam que na década de 1990, 13,6% dos médicos eram pediatras e hoje, são 9,8%.
Em Goiânia, dados do Conselho Regional de Medicina de Goiás (Cremego), registram que há, como pediatras ativos no sistema, 640 médicos. “Com uma população de mais de um milhão de habitantes, a relação entre a população e o número de médicos é baixa, o que comprova a diminuição na quantidade desses profissionais”, afirma o presidente do Cremego, Salomão Rodrigues Filho.
O presidente do Cremego destaca que, se antes a pediatria despertava interesse nos estudantes, especialmente aqueles que prezam o trato com as crianças, hoje ela é uma das áreas que menos recebe estudantes da residência. “Áreas essencialmente clínicas, como a pediatria e a clínica geral, têm enfrentado esse desinteresse dos estudantes, e isso pode ser um problema sério no futuro”, explica o presidente.
O mesmo problema é apontado pelo diretor do Departa­mento de Medicina da Ponti­fícia Universidade Católi­ca de Goiás (PUC – GO), Paulo Luís Fran­ce­scantonio. “Algumas especialidades se mantém com as consultas, não há procedimentos como no caso da cirurgia e se mantém somente com a consulta. O que vemos hoje, então, é uma desvalorização da consulta e dificuldade desses médicos se sustentarem dessa forma”, afirma o diretor.

Motivos
Para o presidente do Cremego, o principal motivo para a diminuição no número de pediatras no mercado é a remuneração mais baixa em comparação a outras especialidades da Medicina. “Além da pediatria ser uma área essencialmente clínica, o que já limita os ganhos por não haver procedimentos, o pediatra acaba atendendo mais do que a consulta pessoal, pois atende também solucionando diversas dúvidas por telefone”, afirma Rodrigues Filho.
Essa dedicação que a profissão exige tem sido um fator relutante aos médicos que saem da faculdade. O presidente do Cremego afirma que é comum o pediatra receber ligações constantes da família da criança, o que exige que ele esteja disponível a qualquer hora. “É desgastante estar de plantão 24 horas por dia, todos os dias da semana”, declara Rodrigues Filho.
Para se ter uma ideia da diminuição do número dos novos residentes em pediatria, o coordenador da Comissão de Residência Médica do Hospital das Clínicas da Universidade Federal de Goiás, Onofre Alves Neto, afirmou que em 2009 a relação candidato/vaga para a residência em pediatria do HC era de 9,57 e em 2012 esse número caiu para 4,86. “Houve uma diminuição no número de interessados em pediatria, e ao que me parece, isso é no Brasil todo”, declara o médico.
Outro ponto que pode ter influenciado significativamente na redução dos pediatras nas cidades brasileiras são as novas famílias, constituídas de apenas um, ou no máximo, dois filhos. “Com o advento da pílula anticoncepcional e a inclusão definitivamente da mulher no mercado de trabalho, as famílias diminuíram e com isso outras áreas médicas passaram a ter mais adesões que a pediatria”, afirma o presidente da Sociedade Goiana de Pediatria (Sogoped), Roque Gomides Fernandes.
Fernandes também lembra que o advento da internet e a síndrome do Google tem causado desentendimentos entre médico e paciente. “Muitas vezes, algum membro da família faz buscas em sites da internet para descobrir a doença e chega ao pediatra já com um diagnóstico “pronto”. Alguns médicos sabem lidar com isso, outros encaram como ofensa pois não querem ser complementados pelo Google”, afirma o presidente da Sogoped.
Problema sério na rede pública e privada – Se engana quem pensa que a falta de pediatras está concentrada, como sempre, na rede pública. O profissional está escasso também nas redes particulares, apesar de ainda ser em maior número quando comparado com a rede pública.
Além dos motivos já citados, o presidente do Cremego alerta que, no caso das redes particulares, há problemas envolvendo os planos de saúde, que geralmente pagam pouco para esses profissionais. “Pela Unimed, o pediatra recebe R$ 54 e pelo Ipasgo, R$ 42. Por isso, muitos pediatras tem saído dos planos para atender somente consultas particulares”, explica Rodrigues Filho.
Agnes Arato relata que no hospital em que costuma levar sua filha, conveniado ao plano de saúde, é difícil ser atendida pela pediatra de costume em situações de emergência. “Os médicos estão sobrecarregados e não conseguimos um atendimento bom por causa disso. Minha filha já chegou a ser medicada para uma inflação da garganta, quando ela só tinha estomatite (quadro em que aparecem aftas na boca)”, explica Agnes.
Se na rede particular a situação está crítica, na rede pública ela não é diferente. O estado não paga o piso salarial, avaliado em torno de R$ 8 mil, e isso faz com que os profissionais prefiram pegar plantões a se dedicarem a trabalhar no sistema público.
Onofre Alves Neto afirma que o SUS paga apenas R$8,00 por consulta , o que não corresponde ao trabalho que o pediatra tem. “A consulta do pediatra é mais complexa que a de um especialista, pois ele deve executar um exame geral e um especializado. Com esse salário, ninguém quer trabalhar mais como pediatra”, afirma Alves Neto.

É preciso valorizar mais a profissão do pediatra

Para o professor  de Medi­ci­na da PUC–GO, Paulo Luís Francescantonio, a solução para esse problema crítico da falta de pediatras está diretamente ligado com gestão e planejamento. “É preciso levar em consideração as mudanças da sociedade e fazer previsões para que medidas concretas sejam tomadas e evitem que faltem totalmente determinados profissionais no mercado.”
Francescantonio explica que hoje temos falta não só de pediatras, mas de obstetras e até endocrinologistas. “Com a mudança da sociedade, a falta de qualquer uma dessas especialidades poderá ser fatal”, diz o docente.
Mas de imediato, o que o presidente do Cremego sugere e é apoiado pelo presidente do Sogope, é que haja um reajuste da remuneração dos pediatras. “Isso poderá ser feito com o pagamento em dobro da consulta ou o pagamento dos retornos pelas operadoras de plano de saúde. Em alguns estados, os pediatras saíram dos planos de saúde e conseguiram essas vantagens das operadoras”, afirma Rodrigues Filho.
O problema dessa medida, segundo Roque Gomide Ferna­ndes, é que essa solução pode trazer outros problemas, já que a remuneração dos médicos, especialmente os da rede pública depende de vários fatores, que passam por burocracias.
“É um círculo vicioso: o médico não recebe bem e não tem estímulos para trabalhar. Com isso, diminui o número de profissionais e a sociedade se revolta contra o médico e exige um melhor atendimento. Mas para isso, o médico deveria receber melhor, o que não acontece, e começa tudo de novo”, explica o presidente da Sogope.
Para Francescantonio, é preciso que o governo invista mais nas políticas de formação e estimule diversas especialidades. Para ilustrar essa situação, o docente da PUC-GO explica que, hoje, um médico que opta por fazer a residência em médico da família pode receber até quatro vezes mais durante o programa do que outro residente. “Se existissem essas políticas de incentivo, não estaríamos com déficits em áreas importantes como a obstetrícia, a cardiologia e endocrinologia”, afirma Francescantonio.
O presidente do Cremego acredita que assim que medidas como essas forem tomadas e o mercado de trabalho melhorar, aqueles que têm aptidão não pensarão duas vezes em fazer a residência de pediatria. “É uma aplicação da lei do mercado: quando há a falta, o médico cobra caro pelas consultas e passa a ser mais valorizado. Isso chama a atenção e novos pediatras surgirão. Mas, claro, apenas aqueles que sabem lidar com crianças”, afirma Rodrigues Filho.
É o que defende Alves Neto da UFG. Na opinião do médico, a pediatria é uma atividade médica essencial para a sociedade, pois é através dela que se concretizam políticas públicas de prevenção de doenças, já que a orientação correta às mães levam ao crescimento saudável de seus filhos. “Hoje, a pediatria não é mais como antigamente. Temos várias sub-áreas, como a nefropediatria e a neonatologia, que estão sendo cada vez mais requisitadas. É uma área promissora, apesar dos indicadores”, afirma o médico.
É o que espera Agnes Arato, que ainda tem a vida inteira da filha para fazer acompanhamento médico. “Minha maior crítica é à maneira como são feitos os atendimentos. Cada médico atende em média 30 pacientes por dia, as consultas são extremamente rápidas e duram, no máximo, 10 minutos. Não há mais a preocupação em  fazer o acompanhamento, que antes víamos dos pediatras. Mais do que aumentar o número de médicos, é preciso investir na qualidade do atendimento”, desabafa a servidora pública.

Lugar do nunca mais      


Hoje a pediatria tem várias sub-áreas e se tornou complexa

* O atendimento a crianças costuma ser complicado, pois os pequenos logo associam o consultório a dor ou coisas ruins. O professor da UFG, Onofre Alves Neto, afirma que para se trabalhar com esse público é preciso ter o comprometimento com o paciente, como em qualquer outra área, mas sobretudo gostar e entender o trato com as crianças.
* Um dos principais pontos considerados no atendimento pediátrico é repassar o maior número de informações para a mãe, para que ela possa conduzir bem o tratamento em casa. E os médicos lembram que o paciente não deve ser levado ao pediatra apenas quando está doente, mas constantemente para que seja feito o acompanhamento do crescimento e desenvolvimento.
* A consulta não deve ser feita rapidamente e a troca de informações entre a mãe e o médico deve ser eficiente, para que o histórico da criança esteja sempre atualizado para futuras consultas.