Um artesão do cinema

O cinema de Hitchcock pode ser conferido no Cine UFG, no Câmpus 2 da Universidade Federal de Goiás, até o dia 26 deste mês, na Mostra Alfred Hitchcock. Estão sendo exibidos desde os mais clássicos, como Psicose e Um Corpo que Cai, até outros menos conhecidos, como Assassinato.

Mestre do suspense. Assim ficou conhecido Alfred Hitchcock, cineasta que ganhou o direito de se tornar adjetivo: “hitchcockeano” – indicando a angústia de tomar conhecimento da existência de uma bomba antes de seus personagens, o tenso prazer do voyeurismo, do observador que sabe que algo está errado.

Embora nascido em Londres e tendo realizado filmes desde a era muda, como The Pleasure Garden (1925) e O Ringue (1927), Hitchcock estabeleceu sua carreira em Hollywood. Sempre interessado em tramas que envolvessem crimes, sobretudo assassinatos, o diretor se tornou muito mais conhecido pela forma de seu cinema do que pelo conteúdo. Não por acaso, o cineasta popularizou o uso cinematográfico do McGuffin, que se refere a um elemento inserido na trama apenas para motivar a ação, sem, de fato, ter real importância.

Antes de os críticos da Cahiers du Cinéma sugerirem um outro olhar para o cinema americano da época, elaborando a ideia de um cinema de autor, os filmes de Hitchcock eram encarados como meras histórias policialescas, filmes de entretenimento, divertidos, “menores”.

Verdadeiro artesão de mise-en-scène, Hitchcock entendia como poucos o poder da câmera em função da narrativa e de como a montagem era crucial para o efeito das imagens no espectador. O close no anel e a aproximação no rosto do suspeito em A Sombra de uma Dúvida (1943), o efeito de vertigem em Um Corpo que Cai (1958), o estranhíssimo ângulo inclinado, sob o pescoço de Anthony Perkins, em Psicose (1960). As câmeras de Hitchcock comunicam, alertam.

Talvez o primeiro grande exemplo do estilo hitchcockeano, ou um dos mais completos, seja Festim Diabólico (1948), em que dois rapazes matam um terceiro apenas pela experiência e para impressionar o personagem de James Stewart, um professor que, juntamente com outras pessoas, seria convidado para jantar no mesmo cômodo em que se encontra o corpo, devidamente escondido.

O filme se passa todo dentro de um apartamento e abre com o assassinato. Não há exatamente um suspense de incerteza e descoberta (houve ou não houve um crime? Quem cometeu?), mas de cumplicidade, em que o espectador sabe, desde o primeiro momento, que alguém foi morto, quem matou e onde está o corpo.

Toda a tensão é construída por Hitchcock num crescendo que envolve a passagem do dia, observada pelas luzes e sons da cidade do lado de fora das janelas do apartamento, um acúmulo de personagens, conforme os convidados chegam ao local. Outro detalhe importante: o uso de apenas nove cortes “disfarçados” na montagem, sendo Festim Diabólico um filme de planos-sequências, calculados para durar o tempo de rolo de filme, quando deveriam ser trocados na câmera. O resultado é não somente uma coreografia entre atores, câmera e tempo de suas ações, mas também uma poderosa sensação de iminência e fatalidade.

Voyeur

Em Janela Indiscreta (1954), por sua vez, Hitchcock, novamente trabalhando com Stewart, concebe o obra voyeurística por excelência. De perna quebrada, privado de movimento, Stewart observa, de seu apartamento, munido de lente fotográfica, os apartamentos do outro lado do pátio, até testemunhar o que pode ou não ter sido um crime.

Nos créditos iniciais, o cinema é metaforizado pelo abrir das persianas, permitindo que os personagens dos apartamentos e suas pequenas histórias ganhem no fotógrafo (quem mais?!) de Stewart o seu espectador, com sua própria história, com uma namorada (Grace Kelly, uma das muitas loiras de Hitch, em close belíssimo), em uma relação que, como observaram François Truffaut e Ismail Xavier, cercam Janela Indiscreta de uma curiosa moralidade cristã, tendo no tema do casamento uma de suas forças (vide a importância de uma aliança na trama).

Mas, sem dúvida, Hitchcock é primeiramente lembrado por aquele que se consolidou como seu clássico absoluto: Psicose (1960). Janet Leigh, chuveiro, facadas, trilha sonora cortante de Bernard Herrmann, gritos, sangue pelo ralo. Falar em Hitchcock é pensar nesta cena, neste filme, mesmo vindo após Um Corpo que Cai e Intriga Internacional. Psicose fecha a década auge do diretor, os anos 50, importantíssima para todo um cinema que se seguiria depois, tanto na Europa, com Truffaut e Chabrol, quanto nos EUA, com os primeiros Spielbergs (ver Tubarão, por exemplo) e, claro, Brian De Palma, herdeiro assumido do olhar hitchcockeano.