Traço da discórdia

Reações violentas ao vídeo que satiriza Maomé e às charges anti-Islã publicadas na França reacendem o debate sobre limites da liberdade de expressão

 

Um filme tosco anti-Islã no YouTube, um diplomata americano assassinado. Charges ironizando Maomé na capa de uma revista francesa, milhares nas ruas protestando com violência e jurando vingança. A ação e a reação andam juntas no recente episódio envolvendo o filme Innocence of the Muslins (A Inocência dos Muçulmanos) e as charges publicadas na revista satírica francesa Charlie Hebdo.

O filme – de qualidades técnicas e intelectuais amplamente questionáveis – retrata o profeta Maomé como um idiota bissexual, pedófilo e sanguinário. A divulgação dele na internet provocou protestos anti-EUA em países árabes. A onda de violência matou mais de 50 pessoas, entre elas o embaixador americano na Líbia, J. Christopher Stevens.

A Casa Branca viu negado seu pedido ao Google, responsável pelo YouTube, para remover o filme da rede. A alegação: o site é apenas uma plataforma e não é responsável pelo conteúdo postado.

Em uma análise mais profunda, o que está em jogo é a liberdade de expressão, valor fundamental do Ocidente, em geral, e nos Estados Unidos, em particular. Em um momento já naturalmente explosivo, a publicação francesa Charlie Hebdo publicou charges consideradas ofensivas ao Islã. Foi como se jogassem rios de gasolina em um incêndio de grandes proporções.

A explosão era esperada. O governo francês correu e fechou algumas embaixadas no mundo islâmico para preservar a vida de funcionários. Vista por muitos como exercício da liberdade de expressão plena, a decisão da revista de publicar as charges também recebeu críticas de quem viu a atitude como uma provocação utilitária, quase criminosa.

Valor absoluto?

A afirmação do direito de dizer o que se pensa está na origem das principais conquistas da civilização ocidental. Mas a reação violenta ao filme e às charges colocou lenha na fogueira de uma discussão dificílima sobre liberdade de expressão: é ela um valor absoluto ou é preciso relativizar? O filme e as charges são o exercício da liberdade de expressão ou responsáveis, ainda que indiretamente, pela morte de inocentes?

Segundo Jônathas Silva, professor de direito constitucional da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Goiás (UFG), a liberdade de expressão se firma como um valor absoluto, indissociável da noção de democracia e está prevista na Declaração Universal dos Direitos Humanos. O professor lembra que poder dizer o que se pensa, sobretudo sobre política e questões públicas, é o suporte vital de qualquer democracia e que, em tese, governos democráticos jamais deveriam controlar o conteúdo da maior parte dos discursos escritos ou verbais.

“Apenas dessa maneira, teremos muitas vozes exprimindo ideias e opiniões diferentes e até mesmo contrárias, o que é muito saudável em uma democracia que caminha da representação para a participação”, explica. Para Jônathas, a polêmica criada pelo filme e pelas charges é uma questão de multiculturalismo, ainda pouco compreendido.

“É um ponto delicado, mas acredito que temos que caminhar para fortalecer a liberdade de expressão, que é importante para a sociedade e para as regras do jogo democrático.”

O professor vê com desconfiança as tentativas de regular a liberdade de expressão como o tão propagado controle social dos meios de comunicação no Brasil. “Sou radicalmente contra. O controle social é uma espécie de hegemonia da forma de pensar e agir politicamente”, diz, citando o ex-presidente americano Thomas Jefferson, que afirmou que “é preferível uma imprensa sem governo a um governo sem imprensa”.

Professor de Filosofia da UFG, Adriano Correia lembra que a ideia de liberdade de expressão como um direito é uma conquista da Revolução Francesa. Em grande medida, ela é uma ampliação do que o filósofo Immanuel Kant denominava de uso público da razão: o direito do indivíduo de falar em nome próprio junto a seus pares, com vistas a um progressivo esclarecimento da humanidade.

“Kant defendia que esse direito fosse irrestrito, mas ainda assim contrabalançado pelo uso privado da razão, que tem a ver com a responsabilidade de cada cidadão na medida em que lhe foi confiada alguma função pública.” Para Adriano, como um valor, a liberdade de expressão enraíza-se no âmago da democracia e traduz a expectativa de um progressivo aprimoramento do espaço público. “Mas também como qualquer valor – ou seja, algo cuja magnitude é sempre medida com relação a algo outro –, jamais pode ser absoluto”, defende.

O professor lembra que nem sempre é fácil definir um âmbito de limitação do exercício da liberdade de expressão, mas que é preciso desconfiar de quem recorre ao direito de dizer o que quiser como um valor absoluto na hora de ocultar “posições obscurantistas” ou “conflitos políticos, étnicos e culturais”. “A relação entre liberdade e responsabilidade não deve ser negligenciada”, analisa.

Fonte: O Popular