Entre o insólito e o histórico

Repletos de situações fantásticas e absurdas, contos de Murilo Rubião falam do cotidiano e da história do País

A obra de Murilo Rubião é pouco estudada pela crítica, apesar da relevância desta produção de extrema qualidade estética e impactante alcance crítico. Contudo, alguns grandes críticos apreciaram sua obra com pertinência. Jorge Schwartz destaca o pioneirismo de Rubião, que publicou seu O Ex-Mágico em 1947 – enquanto Julio Cortázar só lançaria Bestiário em 1951 –, vinculando a obra do autor mineiro ao chamado “realismo mágico” latino-americano, corrente com a qual sua obra é identificada por uma série de motivos, como a incidência do insólito e do absurdo, mas da qual se afasta por algumas particularidades.

Há algumas designações diferentes para esta corrente profícua de numerosos e excelentes autores como García Marquéz, Jorge Luiz Borges, Juan Rulfo, entre outros. Antonio Candido chama este conjunto até certo ponto heterogêneo de obras latino-americanas de “superregionalismo”, incluindo nele Guimarães Rosa. Sucessoras do “Romance de 30” ou “Romance do Nordeste”, as obras superregionalistas se caracterizam por um extremo apuro linguístico, que exacerba a representação da oralidade, além do uso do monólogo interior, da elipse, de elementos do absurdo e da mitologia indígena e sertaneja. Estas características previam a oposição aos modelos realistas europeus e de afirmação de independência das literaturas latino-americanas e podem, em grau diferenciado, serem apontadas na obra de Rubião.

A peculiaridade da obra muriliana está no fato de que nela a herança regionalista é de outra extração. O espaço nelas não é propriamente nem urbano, nem rural, um entrelugar próprio das cidades do interior, e o arcabouço mítico desta obra tem suas fontes nos “causos mineiros” e no texto bíblico. Ocorre que o aparecimento do mito nas literaturas periféricas é marcado pelo inacabamento – ou a impossibilidade de sua plenitude. Isso, não só no caso da obra de Murilo Rubião. Nestas condições, o mito encena não o triunfo de um herói invencível, como era possível no mito clássico, mas a ironia inerente ao homem moderno, sem perspectivas e destituído de poderes absolutos. Nestas obras, as personagens estão presas dentro de um universo fechado e de um sistema temporal circular.

Apesar da incidência do mito na obra muriliana, Schwartz ressalta lucidamente que o fantástico nela é calcado no cotidiano. De fato, esta novelística é, por um lado, de um extremo realismo, haja vista a correspondência clara com a “realidade” de alguns contos. No conto Os Dragões está tematizado o preconceito como em Teleco, o Coelhinho. Como não relacionar Bárbara com a sociedade de consumo do capitalismo moderno, ou A Cidade com a intolerância do regime militar? De fato, o absurdo das situações descritas na obra do autor não se opõe ao real, mas é o exacerbamento do real, o real observado por uma lente de aumento, em sua forma mais crítica. Por outro lado, para nós, a trajetória labiríntica das personagens murilianas desvela a realidade histórica do Brasil do século 20. Nos contos, o percurso dos heróis não os conduz a lugar algum ou os leva ao mesmo ponto, o que aponta para o aprisionamento em um tempo que não caminha para o progresso, mas também não está mais fundado no atraso.

Com efeito, se observarmos o contexto histórico e social em que foram produzidos os contos de Murilo Rubião, o Brasil entre os anos 47 e 91, passando por todas as fases de autoritarismo reinante no País, percebe-se a correspondência desta obra com a realidade histórica. Segundo esta leitura, os contos murilianos referem-se à história da modernização incompleta da América Latina e à tentativa destes personagens-prisioneiros em romper suas amarras e se libertar, em vão.

Para Hermenegildo Bastos, muitas personagens de Murilo Rubião são viajantes, não raro descendentes de marinheiros e piratas que vieram de outras terras. Pessoas que viveram no mar. Eles viajam agora na terra dos interiores mineiros, são viajantes, sim, mas “viajantes a meio caminho entre alguma coisa que ficou pra trás e não pode ser recuperada e uma outra que estaria à frente, inacessível”. De fato, estão de passagem os heróis de A Cidade, de O Convidado, de A Fila, entre muitos. Para o crítico, a aparente mobilidade destas personagens não representa mudança, mas repetição.

Sintoma do mundo moderno, a obra de Murilo Rubião é mesmo marcada pela repetição, outra forma de aprisionamento ou de intransitoriedade do mundo moderno. O autor reescrevia obsessivamente seus contos, levou 26 anos reelaborando O Convidado, ou seja, desde a produção esta repetição ocorre. Os contos do autor mineiro sempre voltaram em outras narrativas com outros nomes. De fato, é como se Murilo Rubião escrevesse sempre o mesmo conto, absurdamente repetido, como se neles estivesse o mesmo herói, ou o mesmo narrador. Em comum entre todos eles está a impossibilidade de cada personagem de Rubião em mudar seu destino, como estão também a ironia, o pessimismo, a visão desencantada de um mundo que afinal era para ser encantado, dado o elemento mágico.

Destituídas de seu halo religioso, as epígrafes bíblicas, também apontam para reiteração na obra muriliana, já que, como explica Schwartz, antecipam o que vai ocorrer na narrativa. Para Bastos, as personagens migram de um conto para outro, conscientes de que nada mudará, nem mesmo com a morte – haja vista Zacarias e as Petúnias. Para o autor,

 

“A morte é mais uma das metamorfoses do mesmo. A tudo acompanha a má consciência do autor-narrador, cujo trabalho é rearrumar a história e manipular os personagens como se bonecos ou autômatos, mortos-vivos, que não podem ser sepultados e devem refazer outra vez e sempre os mesmos périplos diabólicos.”

 

Em alguns dos contos os “périplos diabólicos” são claramente os da imobilidade. Estas personagens estão impedidas de ir e vir, como em A CidadeA FilaO ConvidadoO BloqueioA Armadilha. Em outros contos como em BárbaraO Ex-Mágico da Taberna Minhota e Teleco, o Coelhinho, a metamorfose não acarreta mudança, mas um caminho que conduz ao mesmo lugar. Bárbara nunca se satisfaz com seus desejos; o mágico, despojado de seus poderes, agora está preso no universo da burocracia; Teleco, que tanto se quis humano, morreu quando o foi, como uma criança abandonada. Em comum entre todos estes contos está a questão da (in)transitoriedade destas personagens, que literalmente não chegam a lugar algum a não ser ao desalento e ao desespero. Todas elas estão aprisionadas pela narrativa.

Talvez o conto em que esta aporia seja mais evidente seja A Cidade (1). O herói “destinava-se a uma cidade maior, mas o trem permaneceu indefinidamente na antepenúltima estação”. Ele nunca chegaria a tal cidade. Mais que impedido de chegar ao destino almejado, ele é preso por fazer perguntas. A leitura de que o texto faz referência aos anos de chumbo da ditadura, tempo em que questionar não era permitido, é quase óbvia, principalmente se levado em conta que a autoridade que prende Caribas é militar.

Em A Fila, Pererico, que não por acaso tem nome de palhaço, “vinha do interior do país”, não se sabe exatamente de onde, mas não consegue chegar ao seu fim, qual seja, falar com o gerente da fábrica. Ele ressalta que tinha “urgência de regressar logo à minha terra”. No entanto sua permanência seria duradoura e nada produtiva. A burocracia – outra marca do atraso em terras modernas – é tematizada neste conto e também reforça a leitura da imobilidade destes personagens. A Pererico não é concedida a oportunidade de falar com a autoridade para revelar-lhe um “segredo”. Qual seria?

De fato, como observou Bastos, os narradores murilianos sonegam uma história aos leitores. Principalmente, qual leitor de A Fila não se pergunta qual é afinal o segredo que Pererico quer contar ao gerente? O narrador onisciente também não conta ao leitor. E de que se tratam as histórias que encantaram o narrador-personagem em Teleco, o Coelhinho? – “contava-me acontecimentos extraordinários, aventuras tamanhas que o supus com mais idade do que realmente aparentava”. Em O Lodo, há um segredo macabro entre os irmãos Galateu e Epsila.

Com efeito, Hermenegildo Bastos percebe na recorrência da palavra mar na obra de Rubião o indício de uma metanarrativa encoberta de que aos leitores só chegam resquícios. Ao leitor só resta imaginar esta metanarrativa implícita que Bastos relaciona à colonização. De fato, não existindo mar em Minas Gerais, ou no horizonte destas personagens, elas têm por ele uma nostalgia intrigante que cumpre ao pesquisador analisar. Bárbara pede o oceano ao marido, mas fica satisfeita quando ele lhe entrega uma garrafa contendo uma fração dele. Mais tarde, ela lhe pediria um navio “que é a coisa mais bonita do mundo”, ao que ele lhe atende. Teleco estava em frente ao mar quando conhece o narrador-personagem. Em Ofélia, Meu Cachimbo e o Mar, o narrador-personagem relata crônicas de seus familiares no mar. Símbolo da liberdade e caminho da colonização, o mar é espaço ao mesmo tempo desejado e inacessível, rota de escape impossível para o mineiro, mas que trouxe os primeiros colonizadores. O desejo e a ausência do mar em Murilo também são marca do aprisionamento e da solidão.

Enfim, havendo muito ainda a se dizer sobre esta obra extremamente complexa, vale concluir lembrando que a imobilidade das personagens murilianas está relacionada, na nossa hipótese, à história da modernização da América Latina, que, tendo começado de certo modo desde a colonização, não avança, não é efetiva, mas aparente, pois não pode prescindir do atraso nas relações de trabalho. Trata-se, portanto, da impossibilidade de alinhamento do País aos grandes centros capitalistas encenada no aprisionamento das personagens que não conseguem chegar aos seus objetivos ou libertarem-se da prisão de seus desejos. Quem sabe um dia? Mas não na obra monumental deste autor mineiro.



Vivianne Fleury de Faria é professora do Centro de Ensino e Pesquisa Aplicado à Educação (Cepae) da UFG e doutora em Literatura Brasileira pela UNB



Notas

1 – O conto é correntemente comparado a O Processo, de Franz Kafka, uma vez que os enredos dos contos é muito similar. Murilo Rubião sempre afirmou que não lera o autor tcheco antes de escrever sua obra. Só resta então relacionar esta “co-incidência” a condições históricas e sociais comparáveis, ou seja, a condição periférica da Tchecoslováquia em relação aos grandes centros modernizadores.

O autor

Nascido em Carmo de Minas (MG), em 1º de junho de 1916, Murilo Rubião formou-se em Direito, mas acabou seguindo a carreira de jornalista, trabalhando em veículos de comunicação em Belo Horizonte. Em 1947, lançou seu primeiro livro de contos, O Ex-Mágico. Em 1951, ocupou a função de chefe de gabinete do governador Juscelino Kubitschek. Entre 1956 e 1961, passou uma temporada na Europa, exercendo o cargo de adido cultural do Brasil na Espanha. Em 1974, publicou O Pirotécnico Zacarias. Nos anos subsequentes, a sua obra, embora pequena, passou a ser vista como a mais significativa manifestação da literatura fantástica no Brasil, influenciando autores como José J. Veiga e Moacyr Scliar. Morreu em 16 de setembro de 1991, em Belo Horizonte.

O livro

Obras Completas – Murilo Rubião é uma coletânea de contos escritos entre os anos 1940 e 1960 pelo escritor mineiro, que se aventurou no universo do fantástico e do absurdo mesmo sem conhecer a obra do mestre Franz Kafka e antes de o gênero ficar em voga entre os escritores latino-americanos. Essa atmosfera do fantástico está presente em todos os contos e é intensificada pela falta de espanto dos narradores e das personagens diante das situações extraordinárias que presenciam.

Título:
Obra Completa – Murilo Rubião

Editora:
Companhia das Letras

Preço:
25 reais

Fonte: O Popular