Goiânia, um texto aberto

Para estudiosos da vida urbana das metrópoles, a cidade é um texto escrito e reescrito por múltiplos sujeitos que, dentro dela, efetivam trajetórias diversas, conflituosas, de linhas de fuga, criminosas, econômicas, políticas, culturais etc. Daí, sintetizam: a grafia metropolitana é polifônica e polissêmica; ela diz as práticas de seus sujeitos e também as entrelinhas do mundo.

O mosaico de vozes, corpos, movimentos, advém das formas arquitetônicas; dos sinais que tentam organizar os fluxos; das sirenes que pedem passagem para o indivíduo atropelado ou do camburão da polícia que persegue o foragido da penitenciária; dos sons ensurdecedores dos veículos que aspergem gases e transformam a mente citadina numa combustão de signos ruidosos. E deve ser acrescentado: da língua dos vendedores; da estratégia dos homens de negócios; dos jovens com tatoo, piercing e gíria na boca; de mendigos, usuários de crack; de religiosos, burocratas, aposentados etc.

Na zanza polifônica e polissêmica da metrópole contemporânea os sentidos podem ganhar unidade. O que se pode ler é a ação vertiginosa da aceleração do tempo, em confronto e conflito com os tempos lentos; o ritmo contraditório do desemprego estrutural; a fluência das novas tecnologias; o arroubo do mercado; o estrato social da desigualdade social em forma de pobreza; a afirmação de uma subjetividade fragmentada. E as transformações econômicas e sociais requisitadas a uma cidade localizada em uma região estratégica do País.

Essa unidade pode ter uma organização mais esclarecedora: a metrópole expõe os sentidos sociais do uso do solo urbano por empreendedores; a velocidade da mercadoria; os escapismos metafísicos; a militarização da existência; o trato com o poder em diferentes formas; a organização da resistência, as táticas espaciais das pessoas no cotidiano. De fato, a grafia urbana espelha o mundo e também o lugar, ou, no caso de Goiânia, uma metrópole regional, escreve as linhas e entrelinhas da Região Centro-Oeste.

Em decorrência disso, Goiânia, em seus 80 anos, apresenta um texto complexo. Com ritmo de crescimento grande especialmente do seu Entorno; fragmentada em seu corpo e articulada à economia globalizada; dona de uma periferia que se expande e de nichos de riqueza que se contrai; com dificuldade em organizar o fluxo de seus veículos mas sem perder os signos enraizadores de sua tradição; disputada pelo narcotráfico e alimentada por vozes da espetacularização da pobreza, do crescimento de seitas e religiosidades; esculpida para o turismo urbano e de negócio, mas controlada por um processo de militarização cada vez maior; território de um dilúvio de imagens e objeto do crescimento empresarial, a cidade se afirma ao catalisar as transformações galopantes do Centro-Oeste, apresentando as contradições do modelo de negócio baseado na produção de grãos, bois, energia elétrica, recursos mìnero-industriais etc.

Um espaço assim constituído, construído e reconstruído, solicita olhares aguçados para sua apreensão, seja pela ciência, seja pela filosofia, seja pela literatura, pela arte. Necessários são esses olhares.

 

Eguimar Felício Chaveiro, doutor, é professor do Instituto de Estudos Socioambientais (Iesa) da Universidade Federal de Goiás. *Colaborou: Lana de Souza Cavalcanti , doutora, professora do Iesa da UFG