Casamento gay patina em Goiás

Justiça local admite apenas a chamada “união estável” entre pessoas do mesmo sexo. Nove estados já permitem o matrimônio formal. Questão homoafetiva tem excessiva exposição na mídia desde declarações polêmicas do deputado e pastor Marco Feliciano, que insiste em presidir a Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara Federal. “Saída do armário” da cantora baiana Daniela Mercury põe ainda mais lenha na fogueira

Dois anos após ser reconhecida pelo Supremo Tribunal Federal (STF), a união homoafetiva ainda gera debates calorosos, principalmente na mídia. E depois das declarações polêmicas do deputado federal e pastor Marco Feliciano sobre o tema e a “saída do armário” da cantora baiana Daniela Mercury, o assunto recebe novamente os holofotes. Em Goiás, casais ainda sentem dificuldade em conseguir transformar uniões estáveis, registradas em cartórios, em casamentos de fato. Mas comemoram as recentes conquistas.
O jornalista Léo Mendes e o estudante universitário Odílio Torres, juntos há três anos, foi o primeiro casal a registrar a união estável homoafetiva no País após a decisão do STF. Apesar de morarem em Goiânia, eles tiveram, na época, que viajar para o Rio de Janeiro para garantir o direito, já que a Justiça goiana havia contestado o pedido. Léo justifica que recorrer ao documento é importante para que casais de mesmo sexo tenham garantias básicas, como partilhar um plano de saúde, por exemplo.
Léo Mendes tem uma postura atuante na luta pelos direitos dos homossexuais em Goiás. Para ele, o fato de Daniela Mercury ter se “mostrado” para o mundo, como homossexual, contribui para diferentes tipos de debates. Entre eles, a necessidade de Tribunais Estaduais de Justiça autorizarem a conversão das uniões estáveis homoafetivas em casamento. No País, 10 estados já permitem esse tipo de ação e outros 17 ainda não, incluindo Goiás.
A advogada e presidente da Comissão de Direito Homoa­fetivo da OAB em Goiás, Chyn­tia Barcellos, também defende a postura da cantora baiana. Para ela, divulgar esse lado pessoal da artista tem papel social importante. “Pessoas que estejam na mesma situação podem tomar coragem e assumir também, algo que é tão natural na vida”.
A secretária Tamires Novato e a empresária Rafaela Santos também reclamam da falta de apoio da Justiça. Juntas há cerca de oito anos, estão em dúvida se recorrem a outro Estado para garantir o sonhado casamento. As duas afirmam que isso seria importante para que pudessem ter acesso a benefícios que somente são garantidos a casais hetero. “Queria poder incluir despesas conjuntas no imposto de renda, colocá-la como beneficiária em clube, seguro de vida, essas coisas que parecem simples, mas que pra gente, que é gay, não é”, desabafa Rafaela.
Tamires admite que a negativa da Justiça no caso do casal Léo Mendes e Odílio foi um dos fatores que as intimidaram a procurar a Justiça assim que a decisão do STF foi divulgada. “Muitas vezes fiquei na defensiva. Pensei que seria melhor ir a outro estado, já que minha mãe mora no Rio de Janeiro. Fomos e registramos a união estável e acredito que iremos nos casar lá para garantir essa união sem precisar passar por qualquer situação desagradável por aqui.”
Contrariando as impressões da secretária Tamires, Goiás não está totalmente de olhos vendados para o assunto. Em dezembro do ano passado, após seis anos de relacionamento, Michelle Almeida Generozo e Thaíse Cristiane de Abreu Prudente oficializaram o primeiro casamento gay em Goiás. Elas também foram as primeiras a conseguir formalizar a união estável no estado, ainda em 2011.
Para chegar ao sonhado dia do casamento, o casal precisou passar por diversos entraves, como a negativa do Ministério Público no início do processo. Mas, no final, a decisão do juiz da 3ª Vara de Família e Sucessões, Sinval Guerra Pires foi favorável. No final do ano passado, o casal conseguiu mais uma vitória: a autorização do Conselho Regional de Medicina  a se submeterem às técnicas de reprodução assistida.
A presidente da Comissão de Direito Homoafetivo (CDH) da OAB em Goiás, Chyntia Barcellos, participou da solenidade e destaca que a CDH já enviou ofício pedindo a regulamentação de tribunais que possam permitir o casamento de pessoas do mesmo sexo. Não se trata, segundo ela, apenas de um papel. É um documento para estabelecer a relação de dependência entre os indivíduos do casal. Isso resguarda, ainda, possíveis direitos sucessórios e também a consecução de benefícios como plano de saúde, pensão previdenciária e declaração no imposto de renda.

Furacão Daniela Mercury faz história

Daniela Mercury anunciou seu relacionamento com a jornalista Malu Verçosa por meio de uma rede social. Juntas há quase quatro meses, as duas se dizem felizes e apaixonadas. Mãe do músico Gabriel (26) e da bailarina Giovana Póvoas (25), do casamento de 12 anos com o engenheiro Zalther Póvoas (48), além de Márcia (14), Analice (10) e Ana Isabel (2), adotadas com o ex-marido, o publicitário italiano e sócio da agência Mix Brad Experience, Marco Scabia (38), ela disse que já trocou alianças com a amada na romântica Paris.
A uma publicação carioca, a cantora disse que seu anúncio apenas coincidiu com o momento de resistência que o deputado Marco Feliciano enfrenta na presidência da Comissão de Direitos Humanos da Câmara Federal (leia correlata). Ela afirmou também que a divulgação não é uma tomada de posição política: “Óbvio que eu sabia que uma coisa ia refletir na outra. Mas o objetivo foi apenas comunicar uma união. Estou indignada com a presença de Feliciano na Comissão dos Direitos Humanos. Acho inaceitável isso. Eu estaria me posicionando estando ou não namorando uma mulher”, garantiu ao repórter do Canal F.
O professor de Antropolo­gia e pesquisador do Ser-Tão, Núcleo de Estudos e Pesquisas em Gênero e Sexualidade da UFG, Camilo Braz, acredita que as declarações de Daniela auxiliam, de certo modo, em uma mudança de mentalidades e de costumes que tem a ver com um processo mais amplo que é o de visibilização positiva em torno da homossexualidade, que é fruto de lutas políticas levadas a cabo por movimentos sociais libertários, como o movimento LGBT (lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais) há muitos anos.
Mas ele destaca que é importante frisar que quando ela afirma estar casada com uma mulher, isso pode levar à interpretação equivocada de que o casamento entre pessoas do mesmo sexo seja autorizado no Brasil. Infelizmente, ainda não é. A decisão do STF de 2011 equiparou as uniões entre dois homens ou duas mulheres à família e autorizou o registro de união estável entre tais casais. Mas o casamento, atualmente, só é permitido em alguns estados brasileiros. Na maioria, ainda é preciso um processo judicial para que casais adquiram o acesso ao casamento.
Sobre esse assunto, Daniela disse à publicação que ela e Malu voltaram da Europa casadas e que estão organizando a vida. Além disso, disse que pensa em se casar oficialmente. “Estamos orgulhosas, pois a Bahia é um dos estados onde esse matrimônio é possível”.
O pesquisador ainda avalia que o assunto seja tabu para pessoas presas a preconceitos e concepções equivocadas a respeito da sexualidade e da noção de família, tanto em Goiás quanto em outros contextos nacionais. “Os discursos que constroem a homossexualidade como um problema, um desvio ou um erro são social e culturalmente arraigados no Brasil como um todo. É preciso que as discussões racionais em torno de gênero e de sexualidade sejam realizadas em todas as instituições públicas, incluindo as escolas, pois é só assim que teremos uma política sexual mais realista e pluralista, que leve a mudanças nas mentalidades e costumes e faça com que esses velhos preconceitos, espectros e fantasmas que rondam a homossexualidade deixem de fazer sentido”.
A advogada Chyntia Barce­llos acrescenta que é importante que casais homossexuais busquem um advogado que possa orientá-los da melhor forma possível na busca da formalização da união homoafetiva. Isso porque, esse passo envolve questões patrimoniais e a escolha do regime de bens é que irá nortear a vida do casal homossexual, que traz peculiaridades.

Redes sociais fulminam pastor Marco Feliciano

Como forma pacífica de protesto contra as declarações do deputado Marco Feliciano, uma fan page chamada Beijos para Feliciano, criada no Facebook,  ganha destaque. 
Com mais de 18 mil seguidores, são postadas na rede imagens de beijos entre casais heterossexuais e homossexuais que avaliam que o deputado na presidência da Comissão de Direitos Humanos não os representa.
Esse destaque das redes sociais no debate é avaliado como positivo pelo jornalista Léo Mendes. Para ele, o alcance da internet tem possibilitado abertura de um espaço próprio para a discussão do assunto e para a expressão de pensamento. Segundo ele, nos meios tradicionais, como na TV e no rádio, essa possibilidade não era tão demarcada. “As redes sociais são hoje, a forma mais horizontal e plural de debate das ideias”.
O pesquisador Camilo Braz entende que as manifestações contrárias à homofobia em redes sociais são importantes, uma vez que cada vez mais as formas de sociabilidade constituídas a partir do online adquirem importância para nossas experiências cotidianas. “Elas também atuam no sentido da politização em torno de variadas formas de preconceito e desigualdade, incluindo as relacionadas à homossexualidade.”
Sobre as declarações e manifestações de artistas e famosos contrárias às declarações de Feliciano, o pesquisador diz que é preciso mesmo que a opinião pública se posicione contrária a todas as formas de desigualdade e discriminação, uma vez que elas ferem a possibilidade de nos considerarmos plenamente humanos, independentemente de sermos heterossexuais ou homossexuais. “É necessário que se crie em torno da homofobia o mesmo tipo de ojeriza social que hoje já temos em torno do racismo. E que a sexualidade deixe de ser um parâmetro para o pleno exercício da cidadania, como ainda é o caso no Brasil. Para isso, as pessoas precisam cada vez mais ter acesso a discursos laicos e racionais em torno da homossexualidade, para que deixe de haver tantas pré-noções e pré-julgamentos a respeito dela. Há um terrorismo sexual ainda em curso no Brasil, que precisa acabar”.

 

Fonte: Tribuna do Planalto