A festa democrática de Rousseau

Um dos filósofos mais influentes da história do pensamento, Jean-Jacques Rousseau é tema de um encontro internacional de filosofia que começa amanhã em Pirenópolis e se estende até quinta-feira. Promovido pela Faculdade de Filosofia da UFG, em parceria com outras universidades brasileiras, o 6º Colóquio Rousseau – Festa e Representação encerra as comemorações no País dos 300 de nascimento do filósofo genebrino e vai reunir especialistas na obra do pensador do Brasil e do exterior, além de promover apresentações artísticas e exibição de filmes. O professor Luc Vincenti, da Université Montpellier III, na França, é um dos palestrantes e faz amanhã, às 20 horas, no Teatro de Pirenópolis, a conferência de abertura do evento. Antes de embarcar para o Brasil, o professor concedeu, por e-mail, a seguinte entrevista ao POPULAR. Confira:

 

O senhor vai falar, na sua conferência, sobre a “ordem da festa” em Rousseau. Qual é o significado da festa pública na obra do autor?

Para Rousseau, a festa pública celebra, antes de tudo, os próprios participantes. Ela é, por este motivo, a festa de todos: “ofereça os espectadores em espetáculo, transforme-os em atores; faça com que cada um se veja e se ame nos outros, a fim de que todos estejam unidos”, escreve Rousseau na Carta a D’Alembert. Se todos podem se sentir unidos, é porque eles se encontram em pé de igualdade, e esta igualdade explica o caráter político da festa: a política sela, e manifesta solenemente, a igualdade do povo; a igualdade funda esta unidade e legitima a política. É muito importante não se esquecer que a igualdade é que funda e explica a reunião popular. Em Rousseau, a dimensão republicana e democrática tem uma grande importância na festa. É necessário acrescentar que, na filosofia de Rousseau, esta igualdade nos mostra a ordem do mundo: cada indivíduo vale outro dentro da espécie humana. E quando você se encontra face a face com o seu semelhante, você compreende que você está em seu lugar, o lugar do homem dentro da ordem do mundo. A festa toma, então, uma dimensão metafísica!

 

No mundo atual, marcado pela desintegração do espaço público, esta comunhão pública, com este sentido político imaginado por Rousseau, é ainda possível?

É algo efetivamente difícil, porque é preciso conceber, antes de tudo, uma república igualitária. Sem isso, as concentrações populares são um tipo de festa, mas sem que ninguém possa verdadeiramente alcançar a unidade dessa reunião, nem sua razão. São momentos de júbilo e de partilhamento, mas que não chegam a exprimir mais que um simples divertimento.

 

Em um texto que o senhor publicou no seu site na internet, o senhor fala do desenvolvimento da ideia de democracia participativa no Contrato Social, a grande obra política de Rousseau. Num momento como o nosso, em que a crise atual ameaça o modelo de democracia representativa, o que a ideia de democracia participativa rousseuísta pode nos ensinar? Este ideal pode ser recuperado no mundo contemporâneo?

Você sabe melhor do que eu! A América Latina é hoje o continente mais avançado politicamente em direção à democracia e à igualdade. Vocês encontraram os meios de reduzir a pobreza e desenvolver verdadeiros regimes políticos do futuro. O Brasil, principalmente, é bem conhecido por ter favorecido uma democracia participativa onde os conselhos de bairros, num primeiro nível, podem tomar decisões e gerir e aplicar orçamentos. Não temos nada disso na Europa! Rousseau pensava, aliás, que a democracia absoluta não é aplicável. Mas a democracia participativa que ele defende é fundada na soberania popular absoluta e inalienável. Os esquemas que Rousseau defendia, quando se trata de instalar a democracia em um grande país (ele pensa, em sua época, na Polônia), estão prontos para ser colocados em prática entre vocês, seja o “mandato imperativo”, no qual os eleitores podem destituir seus deputados quando eles não fazem aquilo para o qual foram eleitos, a rotatividade dos cargos ou o respeito aos procedimentos do voto.

 

O senhor é um pesquisador da obra de Fichte, Kant e Rousseau. Quais articulações podem ser feitas entre as obras desses três autores?

Eles são pensadores da liberdade. A liberdade tem, é claro, um senso diferente em cada um deles. Mas ela tem, sempre, um papel fundamental nos seus sistemas de pensamento: a essência do homem em Rousseau, a expressão da natureza racional na moral kantiana, o fundamento racional de toda a realidade, em Fichte. Todos os três têm também em comum o fato de partir de uma ideia de liberdade que cada indivíduo vive nele próprio, como sua própria liberdade, para se referir, depois, a uma comunidade maior: o Estado, o gênero humano ou a ordem do mundo. Eles partem do indivíduo, mas combatem o individualismo.

 

A Europa vive atualmente uma profunda crise econômica, que parece constituir uma ameaça às suas instituições políticas e ao modelo de democracia social que se estabeleceu no continente. Como o senhor analisa esta situação? Há possibilidade de sair dessa crise?

O possível é sempre possível... Em todo caso, não podemos predizer que o empobrecimento organizado precipitará a velha Europa em direção a um novo fascismo. As estruturas das repúblicas são ainda presentes, um povo que deseja a democracia também. Muitos compreendem que os políticos de extrema direita permanecem como aliados dos políticos liberais e que eles fazem um jogo comum com o mercado mundial. Podemos esperar que o sentimento de revolta não será instrumentalizado em ódio entre os povos, e que as oposições ao mercado mundial reencontrarão os caminhos da política.

“Não podemos predizer que o empobrecimento organizado precipitará a velha Europa em direção a um novo fascismo. As estruturas das repúblicas são ainda presentes, um povo que deseja a democracia também”