O movimento ruidoso das manifestações populares da inesperada e extemporânea primavera junina foi acompanhado de dois silêncios notáveis: de um lado, o dos estupefatos membros da classe política, acostumados nos últimos tempos ao conformismo da massa dos filhos do neoliberalismo, apaziguada pela oferta estatal de serviços e de bem-estar; de outro, o dos intelectuais profissionais, habituados a interpretar de secas a inflações e terremotos no palco caricato dos meios de comunicação, ansiosos por ditar o discurso tanto da defesa do status quo quanto o da sua crítica.

No caso específico dos funcionários intelectuais, de várias colorações, os poucos que começaram a ousar falar têm cedido, com muito raras exceções, à velha tentação dogmática de dissimular sua incompreensão mediante a assimilação de cada novo evento a seus impermeáveis diagramas explicativos do movimento da história. Ignoram, com efeito, quão ofensivo à dignidade humana é desconfiar da capacidade dos homens e mulheres para o novo. Nossa capacidade de compreensão é indissociável da nossa disposição para assimilar a singularidade de cada evento.

O evento notável de nosso momento presente é a ocupação reiterada das ruas das cidades de nosso país por um contingente muito significativo de pessoas. Uma disputa bastante pontual e não inédita em torno da elevação das tarifas do transporte urbano operou como catalisador de uma série imensa de demandas e expectativas – trazidas à baila mesmo antes de a grande mídia, que defendeu abertamente o espancamento dos manifestantes, ter repentinamente mudado de posição e buscado definir a pauta do movimento em grande medida espontâneo dos que ocuparam as ruas. O irônico na defesa da violência pela grande mídia foi justamente o fato de ter se assentado na defesa de que o direito de ir e vir sobrepunha-se ao direito de manifestação – pelo transporte público…

A repentina, mas não surpreendente, mudança de posição da grande mídia, decorrente do amplo apoio popular às manifestações, notadamente após as cenas de violência gratuita, fraudes e insuflação de infiltrados, traduziu-se na pretensão de reduzir a diversidade desconcertante das perspectivas defendidas nas manifestações a uma pauta limitada de temas e motes publicitários. Subjaz a isso, podemos supor, para além da defesa de “tudo que está aí”, o pavor com a efetiva participação política: o deliberado propósito de converter demandas de participação em demandas de serviços.

Em Sobre a Revolução, um livro publicado há 50 anos, em 1963, a pensadora Hannah Arendt, cujas intuições são fundamentais à tentativa de compreensão desses fenômenos atuais, sustentou que o verdadeiro conteúdo da liberdade é a participação nos assuntos públicos, e que ou a liberdade política significa o direito de participar no governo ou não significa coisa alguma. O pavor com a participação popular traduz em grande medida a compreensão de que o propósito último de todo indivíduo consiste em buscar alcançar seus propósitos privados, em geral econômicos, e que todo envolvimento com o que é público representa desnecessária perda de tempo. Por outro lado, traduz ainda a convicção que o conteúdo da política é antes de tudo a gestão técnica da vida social e não a discussão, a deliberação e a ação. O movimento das ruas parece indicar o contrário.

A compreensão liberal da vida social como a de uma grande colmeia em que cada um, ao buscar seus propósitos econômicos estritamente privados, acaba por gerar progresso público – a transformar o coletivo em público como que por obra de um milagre – parece estar sendo posta em xeque pelo que os Pais Fundadores da Revolução Americana nomeavam felicidade pública e que não pode ser experimentada fora da participação política, mesmo em um cenário de bem-estar individual da maioria.

A orgulhosa percepção de ser capaz de transformação e a felicidade na dedicação a propósitos que ultrapassam a autocompreensão dos indivíduos como operários do acúmulo e do consumo não deve ser confundida, não obstante, com o entusiasmo apaixonado de boa parte dos que aderiram tardiamente às manifestações. Esse entusiasmo apaixonado se traduz na excitação com o calor dos gritos em uníssono, com a patriotice, com a compactação das massas, com o extravasamento catártico do ódio difuso cuja consequência mais notória é a justificação do conformismo e a desconfiança nas capacidades transformadoras da política.

A geração dos filhos do neoliberalismo e da consequente redução da política à gestão dos ganhos do grande capital e das compensações dos efeitos nefastos do capitalismo parece estar a rejeitar o modelo da comunidade política como colmeia competitiva: quem o defende tem sua própria agenda (segurança, impostos, corrupção – como disse alguém: por que não os terremotos?). O que não é mera defesa do Estado como provedor da segurança para a busca de interesses privados é simplesmente desmobilizador e moralista. De modo análogo, dizer que o gigante despertou é mais um expediente dessa despotencialização das iniciativas de agentes específicos mediante sua assimilação à patriotice de uma vontade apaixonada unificada, movida em grande medida pelo ódio difuso que anima as massas despolitizadas. Por outro lado, traduz a tentativa de tornar publicitária a participação popular, olvidando-se que o ímpeto para a participação pode ter origem justamente na recusa à publicitarização da política ao menos desde as últimas duas décadas.

Por isso, nada mais acertado que traduzir a diversidade das expectativas e demandas no tema da reforma política com vistas a maior engajamento e participação dos cidadãos no espaço político. Se de toda essa efervescência brotar um sistema político mais dependente da participação popular, temos o direito de imaginar que o tesouro revolucionário não estará perdido.

Como observou Hannah Arendt, para os revolucionários do século 18 ainda era óbvio “que eles tinham de encontrar e edificar um novo espaço político no interior do qual a ‘paixão pela liberdade pública’ ou a ‘busca de felicidade pública’ receberiam livre manifestação para as gerações por vir, de modo que seu próprio espírito ‘revolucionário’ pudesse sobreviver ao efetivo fim da revolução”. Portanto, é justamente o discurso da manutenção da ordem que deve ser desafiado.



Adriano Correia é diretor da Faculdade de Filosofia da UFG

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