‘Ensaio sobre a cegueira’

Mais um capítulo da disputa política entre a prefeitura de Goiânia e o governo do Estado. Na semana passada, querendo capitalizar uma das principais demandas das recentes manifestações populares, as duas esferas de governo aceleram os projetos de concessão de passe livre estudantil.
Na quarta, 26, o governador Marconi Perillo (PSDB) assinou decreto para a criação do benefício. Um dia depois, o prefeito de Goiânia, Paulo Garcia (PT), também anunciou a benfeitoria, ampliada em relação à do governo estadual. Na sexta, 28, uma reunião entre o petista, o tucano e prefeitos da Região Metropolitana de Goiânia acabou por ampliar benefício, que deve atender aproximadamente 98 mil estudantes.
Depois da reunião, Paulo Garcia elogiou o governador por atender a proposta da prefeitura. “É um pacto que demonstra responsabilidade de todos nós na busca de solução para as demandas e superação dos obstáculos. O governador mostrou sensibilidade para atender essa nova proposta que é um clamor das ruas. O passe estudantil em sua forma universal é uma grande contribuição para o sistema educacional”, ressaltou.
Apesar do otimismo do prefeito, já houve críticas ao projeto do Passe Livre, que só irá atender estudantes da região metropolitana. “Estudantes que não são da Região Metro­politana de Goiânia estão excluídos do programa passe livre. Foram esquecidos pelo governador Marconi”, postou o deputado federal Ronaldo Caiado (DEM), no Twitter.

Disputa
Mais uma vez, o acordo final entre prefeitura de Goiânia e Estado esconde uma intensa disputa política travada ao longo da semana. Em sua última edição, a Tribuna já mostrava que as duas esferas de governo rivalizavam política e administrativamente. Nesse sentido, o passe livre foi só mais um “round” de um confronto que deve se intensificar nos próximos meses.
Na campanha eleitoral, Marconi prometeu passe livre para todos os estudantes do Estado, mas até duas semanas atrás o projeto não tinha andado. Com as manifestações, porém, ele foi acelerado. Na terça, 25, a Assembleia aprovou verba de R$ 2,4 milhões para custear o passe livre para estudantes. Um dia depois, o governador assinou o decreto. O problema é que só teria acesso ao benefício quem tivesse renda familiar de até três salários mínimos. A expectativa era de que ele atendesse a aproximadamente 20 mil alunos de ensino médio, fundamental ou superior.
Depois da “mexida de peça” do governo do Estado, a prefeitura, que tinha um projeto semelhante em tramitação na Câmara, também agiu. Na quinta, 27, o prefeito de Goiânia, Paulo Garcia, apresentou um projeto de passe livre para todos os estudantes da região metropolitana, independente da situação econômica do beneficiário.
Para isso, o petista sugeriu que o Estado assuma 40% dos custos, a prefeitura de Goiânia 30% e os demais municípios 30%. Paulo ainda anunciou que, caso o governo estadual não quisesse contribuir, a prefeitura concederia o benefício sozinha, mas apenas para os estudantes da capital. Encurralado, não restou alternativa ao governador aceitar a proposta.
Na sexta, 28, ao lado de Paulo Garcia e de outros prefeitos da região metropolitana, Marconi anunciou o projeto final, que terá 50% (cerca de R$ 1,6 milhão) de contrapartida do Estado, 30% (R$ 1 milhão) da prefeitura de Goiânia e 20% (R$ 600 mil) das outras cidades. Agora, o projeto segue para a Assembleia Legislativa, que deve aprová-lo nesta semana para que ele vigore já em agosto.

Efeitos das manifestações já começam a ser sentidos

A primeira semana pós-manifestações mostrou que a classe política se sentiu ameaçada pela população, apesar da dificuldade de autocrítica. No Congresso Nacional, senadores e deputados trabalharam com pressa para aprovar projetos que estavam engavetados, como a destinação dos royalties do petróleo e a transformação da corrupção em crime hediondo. Em Goiás, o governo do Estado e a prefeitura de Goiânia aceleram os planos de concessão do passe livre estudantil.
O cientista político e professor da Universidade Federal de Goiás (UFG), Pedro Célio Alves Borges, está otimista com a nova postura da classe no país. “Eles entenderam razoavelmente o recado. É uma nova fase institucional no Brasil, que vai fazer com que os políticos tenham mais cuidado. As manifestações são a prova de que a sociedade consegue fiscalizar e se mobilizar, de um jeito ou de outro”, avalia.
Uma prova de que os políticos entenderam mesmo o recado foi a votação da Pro­posta de Emenda Constitu­cional 37 (PEC 37), que visava limitar o poder de investigação do Ministério Público. Listada entre os projetos prioritários pelo presidente do Senado, Renan Calheiros, e uma das principais reivindicações das ruas, a matéria foi votada na Câmara dos Deputados na terça, 26. Com 430 votos contra e apenas nove favoráveis, o texto foi rejeitado, gerando comemoração nas galerias da Câmara.
Além da derrubada da PEC 37, a Câmara votou também o fim do voto secreto nas votações sobre cassação de mandato e a vinculação de 75% dos royalties do petróleo para a Educação, sendo que os 25% restantes serão para a Saúde. O Senado, por sua vez, aprovou a inclusão da corrupção na lista de crimes hediondos. Em condições normais, esses projetos levariam meses para serem votados e não havia nenhuma garantia que tivesse esse desfecho.

Reforma Política
Uma das principais promessas no pronunciamento da presidente Dilma Rousseff, a reforma política promete gerar muitos debates. Para a cientista política Maria do Socorro Braga, depois atender as primeiras reivindicações da sociedade, a classe política terá uma espécie de debate interno que será responsável por definir o grau de profundidade das mudanças.
“Em democracias seculares como as da Europa Ocidental e dos Estados Unidos, podemos observar manifestações mais conscientes e com objetivos mais claros. No Brasil, as instituições atingiram a maioridade agora e é a resposta das instituições que vai determinar o quanto estamos avançados. Se elas responderem de acordo com o que a população quer, é a prova de que nossa democracia está evoluindo”, avalia.
Mesmo com a discussão ainda no início, já há certo medo na classe. “Acredito que só uma reforma política não muda muita coisa. A reforma que fizeram no sistema de campanha não mudou muita coisa, por exemplo. Agora não pode fazer show, dar boné, mas pode contratar três mil cabos eleitorais. Foi a institucionalização da compra de voto”, argumenta o presidente do PMDB, Sa­muel Belchior. (D.G.)

Fonte: Tribuna do Planalto