C.A. de Direito da UFG considera decreto estadual "ultrajante" e "vergonhoso"

Centro Acadêmico XI de Maio divulgou nota após um mês do documento emitido pelo governador Marconi Perillo, que prevê punição aos funcionários públicos que participarem de greves e paralisações no Estado

 

O Centro Acadêmico de Direito XI de Maio da Universidade Federal de Goiás (UFG) divulgou nota no último sábado (15/9) se posiciando contra o decreto que estabelece medidas administrativas contra as greves e paralisações de servidores públicos, assinado a um mês pelo governador Marconi Perillo (PSDB). A medida gerou polêmica por ter sido publicado sem aviso prévio.

Abaixo, íntegra da nota enviada pelo XI de Maio ao Jornal Opção Online:

Posicionamento do Centro Acadêmico XI de Maio em relação ao decreto do governo estadual que limita o direito de greve

Durante a revolução industrial na França, com o gradativo aumento do número de desempregados e de trabalhadores indignados com as condições de emprego, surgiram reuniões dessas pessoas para debater e manifestar suas ideias. Essas reuniões eram feitas inicialmente na praça de Greve, na zona portuária do rio Sena, em Paris; daí o nome posteriormente generalizado dos movimentos trabalhistas em favor de novos direitos à classe prestadora de serviços em regime não eventual de dependência do empregador.

Porém, tais associações de obreiros foram proibidas desde os romanos (cujo direito era extremamente individualista). Na Idade Média, apesar das recorrentes revoltas de camponeses, a estabilidade era pregada pela Igreja, e a contestação à ordem instituída por Deus era muitas vezes interpretada como pecado de sedição e ganância. Na França revolucionária – com o ressurgimento da ideia individualista –, o agrupamento profissional passou novamente a ser visto como uma organização do Antigo Regime feudal (por causa das guildas e corporações), sendo logo proibidas as greves pela Lei Le Chapellier, de 1791, bem como o Código Penal de Napoleão previa pena de prisão e multa aos grevistas. Na Inglaterra também, com a Combination Act, de 1799, considerava-se crime de conspiração contra a Coroa a coalizão de trabalhadores para aumento de salário por meio de pressão coletiva. Só em 1825 na Inglaterra, e em 1864 na França, permitiu-se a coalizão trabalhista (sem direito de greve).

No Brasil, a greve foi inicialmente proibida em 1890, pelo Código Penal da Primeira República (pois antes a escravidão sequer dava oportunidade para a necessidade de contratação em massa de trabalhadores), mas no mesmo ano, um Decreto derrogou tal tipificação criminal. Posteriormente, a Lei 38, de 1932, condenou a greve como atentado à segurança nacional. A Constituição de 1937 considerava greve um recurso antissocial de negociação, declarando-a nociva ao trabalho, ao capital e à produção nacional.

Em 1938, o Decreto-Lei 431 considerou como crime a greve de servidores públicos, tendo o Decreto-Lei 1.237 – instituidor da Justiça do Trabalho – previstas as penas de suspensão, despedida até prisão. E até mesmo o Código Penal atual (de 1940), aprovado ainda durante a ditadura fascista-populista de Getúlio Vargas, prevê os crimes de “Paralisação do trabalho, seguida de violência ou perturbação da ordem” e “Paralisação do trabalho de interesse coletivo”. A Consolidação das Leis do Trabalho (de 1943) ainda previu como sanções à greve a perda do cargo do representante profissional, suspensão pelo prazo de dois a cinco anos do direito de ser eleito representante sindical, bem como previa multa ao sindicato que ordenasse a suspensão do serviço, cancelamento de seu registro ou a perda do cargo, caso o ato fosse exclusivo de seus dirigentes.

Só a partir de 1946 as leis passaram a permitir gradativamente restritos direitos de greve – para algumas categorias acessórias, somente. Além disso, a Constituição de 1946 garantiu o direito de greve, limitado às condições impostas pela legislação pertinente (já mais branda). Mas a Constituição outorgada pela Ditadura Militar proibiu a greve de servidores públicos e atividades essenciais.

Atualmente, no regime da Constituição de 1988, o direito de greve é um poder e uma faculdade constitucionalmente fixada:

Art. 9.º É assegurado o direito de greve, competindo aos trabalhadores decidir sobre a oportunidade de exercê-lo e sobre os interesses que devam por meio dele defender.
§ 1.º A lei definirá os serviços ou atividades essenciais e disporá sobre o atendimento das necessidades inadiáveis da comunidade.
§ 2.º Os abusos cometidos sujeitam os responsáveis às penas da lei.

Assim, a direção normativa constitucional – inclusive de acordo com a evolução histórica do movimento e do direito trabalhistas – foi a de garantir o direito de greve (assim como todo direito, com limites de exercício). Tal instituto veio previsto no capítulo da Constituição destinado aos direitos sociais.

Porém, como a categoria dos funcionários estatais é ampla no Brasil, a Lei Fundamental da República ainda teve de prever, no título reservado à organização administrativa da Nação, uma regulação jurídica mínima a tal direito no âmbito administrativo, qual seja:

Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte:
VII - o direito de greve será exercido nos termos e nos limites definidos em lei específica; (Redação dada pela Emenda Constitucional 19/1998)

A Constituição fez a ressalva única de que “ao militar são proibidas a sindicalização e a greve” (Art. 142, § 3.º, IV – inciso incluído pela Emenda Constitucional 18/1998). Porém, recentemente, no Estado de Goiás, o Governo de Marconi Perillo, decretou um absurdo, além de político, jurídico: praticamente proibiu greves no âmbito da administração pública no Estado. Contrariando as expectativas criadas pela Constituição democrática de 1988, foi editado o Decreto 7.964, de 14 de agosto de 2013 (Diário Oficial/GO n.º 21.650). O referido Decreto diz:

Art. 1.º Em caso de greve, paralisação ou retardamento na prestação das atividades ou serviços públicos, no âmbito da administração direta, autárquica e fundacional do Poder Executivo, os Secretários de Estado e dirigentes das Autarquias e Fundações promoverão, relativamente aos agentes públicos que participarem de tais movimentos, a adoção imediata das seguintes providências:
I – convocação expressa dos servidores, mediante publicação expressa no Diário Oficial do Estado, para reassumirem, de maneira integral e sem demora, o exercício de suas funções;
II – instauração de procedimento administrativo-disciplinar, na forma da Lei n.º 10.460, de 22 de fevereiro de 1998, e Lei n.º 13.800, de 18 de janeiro de 2001, para a apuração de faltas funcionais e aplicação de penalidades administrativas aos faltosos, sem prejuízo das de ordem civil e penal;
III – desconto, na respectiva folha de pagamento, do valor referente aos vencimentos e às vantagens dos dias de falta ao serviço por motivo de greve ou paralisação.

E para agravar a situação jurídica ora imposta, segue ainda o Decreto:

Art. 2.º Serão imediatamente exonerados os ocupantes de cargos de provimento de comissão e dispensados  os que exerçam função de confiança ou gratificada  que vierem  a participar  de greve, paralisação ou retardamento na prestação de atividades ou serviços públicos.

O parágrafo seguinte prevê o arrolamento daqueles que incorrerem na situação acima, para seu desligamento da função ou cargo exercido.

Tal absurdo contra as conquistas da civilização e os avanços da sociedade democrática e ativa é ultrajante e vergonhoso! Nem uma sociedade voltada a ideologias de esquerda, nem sequer uma sociedade plenamente liberal admite tamanha imposição de desigualdade: até os trabalhadores do setor privado podem fazer greve, mas o públicos não.

Esse regime de silêncio e resignação imposto, entremeado a ações inescrupulosas e eleitoreiras, não destoa de todo o histórico do atual Governo do Estado, que está, aliás, estruturado em escândalos de corrupção e amizades tão sombrios quanto os dos Borgia italianos, ou dos Tudor igleses, e demais homens insaciáveis por poder absoluto do passado.

No Brasil, estamos cientes de que o direito de greve é um poder e uma faculdade constitucionalmente fixadas. É uma chave de uso excepcional da força, quando o cumprimento do negócio trabalhista torna-se ímpio e abusivo. Assim como no direito penal admite-se a legítima defesa, como poder de autoproteção e autotutela do indivíduo, através das organizações sindicais, os trabalhadores podem proteger-se e tutelar seus direitos e interesses – claro, sempre evitando-se abusos nocivos ao todo social.

Além de todos os institutos jurídicos mencionados, podemos citar ainda o Enunciado 316 da Súmula de Jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, que preleciona que: “A simples adesão a greve não constitui falta grave”.

Mas o Governo do Estado pensa e age diversamente – e irracionalmente. Tentando criar um meio legal de impedimento de manifestação dos servidores, ele propicia uma insatisfação sem escapatórias, causado um declínio da qualidade da prestação do serviço público e do atendimento às necessidades dos cidadãos.

O direito atual prevê claramente o direito de greve, dentro dos limites da razoabilidade, como declara o Enunciado de Orientação Jurisprudencial 38 da Seção de Dissídios Coletivos do Tribunal Superior do Trabalho:
Greve. Serviços essenciais. Garantia das necessidades inadiáveis da população usuária. Fator determinante da qualificação jurídica do movimento. É abusiva a greve que se realiza em setores que a lei define como sendo essenciais à comunidade, se não é assegurado o atendimento básico das necessidades inadiáveis dos usuários do serviço, na forma prevista na Lei n.º 7.783/1989.

Assim, a proibição feita pelo Governo do Estado através de seu decreto, é ilegal e inconstitucional, além de imoral.

Fonte: Jornal Opção