Entrevista

“Continuamos machistas, homofóbicos e racistas”

Ainda não estamos preparados para conviver com as diferenças, continua existindo mulheres que servem como “animais de companhia” a seus maridos, a definição de gêneros ficarão cada vez mais complexas. Estas são algumas das opiniões que a historiadora Mary Del Priore, uma das mais respeitadas do País, emite nesta entrevista exclusiva. Amanhã, às 19h30, com entrada franca, sua conferência é a atração do projeto Café de Ideias, no Centro Cultural Oscar Niemeyer, iniciativa que conta com o apoio do POPULAR, Tv Anhanguera, Rádio Executiva e UFG. Autora de quase 40 livros sobre nossa história nacional – sobretudo em seus aspectos menos explorados –, uma das mais importantes pesquisadoras da família real brasileira, docente em algumas das mais prestigiadas universidades do País e pós-doutora na França, Mary diz ter horror a ser chamada, com reverência, de “professora” ou “doutora”. “Pode me chamar de Mary mesmo”, diz ela, pronta para pontuar, com contundência, as conclusões a que chegou em seus trabalhos, numerosos e reconhecidos.


Sua conferência tem o título Histórias Íntimas: Sexualidade e Erotismo na História do Brasil, nome de um de seus livros mais recentes. Muitos de seus trabalhos têm na abordagem da intimidade um poderoso instrumento para entender períodos, personalidades históricas. Por que tal apreensão é tão eficiente para esclarecer muitos fatos?

Essa abordagem tem vários aspectos e o mais importante deles – e é disso que vou falar em Goiânia e é disso que trata esse meu livro Histórias Íntimas – é a evolução do patriarcalismo, do machismo, da homofobia e do racismo em nosso País. Tudo isso está intrinsecamente ligado. O livro pega desde o período colonial até os dias de hoje mostrando como nós somos tributários de uma longuíssima tradição em que os poderes da igreja, da ciência – notadamente da medicina –, da jurisprudência e do Estado sempre procuraram modelar os nossos corpos e a nossa sexualidade colocando-os a serviço daquilo que seria a família cristã, do que seria a reprodução, empurrando para debaixo do tapete, quando não para as fogueiras da Inquisição, tudo o que não fosse essa sexualidade funcional e procriativa. Isso era feito, por exemplo, com os sodomitas a partir dos séculos 16 e 17. O livro é interessante porque ele vai listando, desde lá detrás, essas questões todas, mostrando também como o racismo brasileiro está relacionado com os estupros cometidos contra escravas, com a enorme bigamia de homens que viviam com as escravas e as esposas. As ligações consensuais também não davam muita legitimidade às mulheres de camadas desfavorecidas e muitas vezes aquilo que se cobrava da escrava na cama era também o que se cobrava de uma mulher branca empobrecida. A mulher deveria ser escrava do homem e aí a gente vê o machismo aparecendo. Eu mostro também que o século 19 é importante porque nele a gente consolida um universo burguês onde tudo o que é excepcionalidade a este modelo vai ser perseguido. É o momento que a medicina e os cientistas começam a lançar luzes sobre uma questão que se discute muito hoje no Brasil, que é a pedofilia. A sexualidade em baixa idade e a prostituição infantil também estão presentes, assim como a perseguição aos homossexuais é muito forte neste final do século 19. Já no século 20, há a grande ruptura que vem nas décadas de 60 e 70, de libertação, de aparecimento da pílula anticoncepcional e da revolução sexual. Mas apesar de tudo, nós não assimilamos esses avanços. Continuamos ainda muito machistas, homofóbicos e racistas.

 

Os atuais debates na seara da sexualidade vêm desta herança?

Eu não só discuto essa problemática no livro, como mostro que é na intimidade que isso se dá. Eu diria até que é na esfera da privacidade, algo que foi tão duramente construído no século 19 e que envolveu tantas outras coisas – como o aparecimento da higiene, da tecnologia, o enriquecimento do País – e que nós desconstruímos nos últimos 15 anos. A intimidade é o único momento em que estamos cara a cara com nós mesmos. É inacreditável que o País que é a 6ª economia do mundo ainda veja gays apanhando na Av. Paulista, a artéria mais importante do Estado mais importante do maior país da América Latina. Nós não conseguimos extrair de nós esse viés de, na intimidade, sermos homofóbicos, racistas e machistas enquanto que na vida pública somos ultraliberais. No Carnaval deixamos a peteca cair, pintamos a cara, cobiçamos o marido e a mulher do próximo. Essa dupla moral do brasileiro me parece algo a ser corrigido.

 

Mas nas redes sociais, que são um viés da esfera pública e que também ajudam a desconstruir as intimidades, há muitas manifestações de machismo, homofobia e racismo.

Eu acho isso muito preocupante. Eu diria que a falta de informação denota, a meu ver, a falta de instrução, o baixíssimo nível da educação brasileira. Quanto mais educação você tem – e educação não tem nada a ver com dinheiro –, mais informação você tem e com mais informação fica mais fácil você combater estereótipos e preconceitos. No Brasil as diferenças estão ficando mais acirradas. Estamos mais intolerantes com as diferenças e com a definição dos campos possíveis em que se faz a sexualidade. Nas novas gerações, entre jovens entre 15 e 25 anos, as relações poliamorosas e a própria construção de gênero serão totalmente diferentes daquelas da geração que hoje tem entre 30 e 40 anos. As relações poliamorosas vão se impor e as construções de gênero tendem a ser desconstruídas. A pessoa poderá ser hoje uma menina e amanhã ser um menino. Nós não vamos poder contar mais – dentro de um pensamento mais conservador – com construções de gênero tão definidas como as que tivemos até meados do século 20. A própria revolução sexual, o movimento hippie, os cabelos compridos, os anos 1980 que foram fundamentais para a eclosão dos movimentos gays, deram conta dessas transformações. O problema dos anos 1980 é que naquela década tivemos o aparecimento da aids, que bloqueou eclosão dos movimentos gays.

 

E estereotipou os homossexuais também, não? A aids foi vista como “doença dos gays”.

Exatamente. Estigmatizou terrivelmente. No meu livro há todo um capítulo dedicado a essa questão e que mostra a aberração que foi o tratamento ministrado aos gays, o preconceito que médicos e enfermeiros tinham quanto à doença e o abandono da própria família. Era desesperador. Mas voltando ao tema inicial, as mudanças estão vindo muito aceleradamente. É a discussão de um novo livro que eu fiz, chamado Conversas e Histórias de Mulher. As mulheres deram passos importantes para a frente em áreas econômicas importantes, com a feminilização de largas parcelas dos setores produtivos, na comunicação, no Direito, no comércio, no serviço. As mulheres estão em toda parte.

 

Na política...

Precisamos eleger mais mulheres para a política, embora elas saibam roubar tão bem quantos os homens. É uma igualdade conquistada, não é? Não há um escândalo que não conte hoje com a mão de uma mulher. Apesar disso tudo, as mulheres continuam existindo através do olhar dos homens. A mulher brasileira continua não permitindo que seu filho lave louça, que seu marido faça a cama; se a namorada do filho briga com ele a culpa é dela “que é uma vaca”; ela só quer ser chamada de tudo o que é comestível, como gostosa. Isso está embutido nas mulheres. Esse é o nosso grande problema. Os homens continuam a ser criados nesses padrões machistas, racistas e homofóbicos exatamente como muitas mães machistas, racistas e homofóbicas, mas isso na intimidade. Na vida pública, todo mundo acha graça em topar tudo, brinca, acha tudo uma beleza, mas consigo, as pessoas não são assim. Mas essa dupla moralidade tem 500 anos de história.

 

Ouvindo você falar, me vieram à mente dois livros: Casa Grande & Senzala, de Gilberto Freyre, e História da Sexualidade, de Michel Foucault. Há um diálogo de seu trabalho com essas obras?

Sem dúvida nenhuma. Se eu tiver um altar em minha casa, ele é para Gilberto Freyre. Ele é meu grande inspirador e acho que o é de uma parte substantiva de muitos historiadores. As dicas dele, as percepções de como o corpo era usado – não só para a sexualidade, mas também para a moda, o trabalho –, as distinções entre o homem e a mulher, como a sociedade brasileira vai modelando esses papéis, isso tudo é notável. E quando você imagina que esse cara escreveu isso em 1933, é absolutamente sensacional. No que diz respeito ao Foucault, eu acho que a obra dele é muito válida na medida em que demonstra que são nos micropoderes, na vida de todo dia, nos pequenos gestos, no diminuto, no que é fugaz que demonstramos o quanto estamos intolerantes e desaparelhados para viver de forma harmoniosa com as diferenças.

 

Em outro livro recente seu, O Castelo de Papel, sobre a princesa Isabel e o Conde D’Eu, você mostra que a mulher que assinou a Lei Áurea não tinha aptidão nenhuma para administrar. Você acha que ela retrata um pouco as dificuldades que a mulher tem de conquistar espaço e querer conquistá-lo, introjetando uma visão própria de exercício do poder?

Nós vamos ter vários exemplos no século 19 de mulheres que foram independentes no pensamento, no gesto, no uso do corpo, mas a princesa Isabel, certamente, não faria parte dessa tribo. Muito pelo contrário. Ela representa o que foi uma construção extremamente bem sucedida do século 19 que é o amor romântico e da vida familiar burguesa. Ela era uma mulher que não tinha nenhum interesse intelectual ou político. Ela não sabia sequer o que acontecia no Brasil. Embora tenha sido educada com 13 horas de aula por dia, quando chega ao Recife em viagem de lua de mel, ela escreve ao pai perguntando o que mesmo havia acontecido com os holandeses em Pernambuco. Ela não tinha a menor ideia da História do Brasil. Por outro lado ela é tocante nessa sua bobice, nessa vida de “animal doméstico”, representando o ideal romântico da mulher que ama o marido, que cuida dos filhos, que se preocupa com a casa. Ela preenche perfeitamente esse papel.

 

Em outras partes do mundo, nos séculos 18 e 19, houve mulheres muito poderosas, como a imperatriz russa Catarina, A Grande, e a rainha Vitória, da Inglaterra.

Rainha Vitória foi contemporânea da princesa Isabel e elas chegaram a se conhecer pessoalmente, mas a herdeira do trono brasileiro se limita a discutir a aparência da monarca inglesa, se ela havia ou não engordado. O mais interessante é que as tias do marido dela, o Conde D’Eu, foram mulheres casadas com reis. Ambas eram mulheres de intensa vida política, que interferiam em tratados diplomáticos, que acompanhavam o crescimento do republicanismo. Eram mulheres extremamente antenadas com o que estava acontecendo no mundo. A princesa Isabel representa o que eu chamo no meu livro Conversa de Mulher de “animal de companhia”, que fica em casa, com sorriso nos lábios, esperando que o marido leve dinheiro. Ainda temos muito “animal de companhia” ainda hoje no Brasil.

“A mulher brasileira continua não permitindo que seu filho lave louça, que seu marido faça a cama; se a namorada do filho briga com ele a culpa é dela “que é uma vaca”; ela só quer ser chamada de tudo o que é comestível, como gostosa. Isso está embutido nas mulheres. Esse é o nosso grande problema. Os homens continuam a ser criados nesses padrões machistas, racistas e homofóbicos exatamente como muitas mães machistas, racistas e homofóbicas, mas isso na intimidade”

Evento: Café de Ideias

Conferência: Histórias Íntimas: Sexualidade e Erotismo na História do Brasil, com Mary Del Priore

Data: Amanhã, às 19h30

Local: Centro Cultural Oscar Niemeyer (GO-020, km 0, saída para Bela Vista)

Entrada franca