Violência: o alerta vermelho

15 de janeiro de 2014.

 

Furtos, roubos, homicídios, estupros, agressões. Se ainda vivêssemos no “estado de natureza” imaginado pelo teórico político inglês Thomas Hobbes, do caos e da barbárie, anterior à formação do Estado moderno, da manutenção da ordem, e da obediência às leis, os crimes violentos seriam prática até tolerável. Mas por que eles permanecem ainda tão presentes, hoje, mesmo em sociedades modernas, a exemplo de Goiás, e a despeito das leis e do aparato coercitivo das forças de segurança estatal? Um balanço divulgado, anualmente, pela Secretaria de Segurança Pública e Justiça do Estado de Goiás (SSPJ-GO), revelou que as modalidades de crimes contra o patrimônio privado e os homicídios são os mais frequentes crimes oficialmente registrados na Capital e no interior do Estado. A razão para isso pode estar em questões culturais e fatores econômico-sociais, segundo especialista em violência e representantes dos órgãos de segurança no Estado.

“Goiânia, ao contrário do que pensa o censo comum, não é uma cidade tranquila e segura para se viver. É mais violenta, proporcionalmente, que cidades mais populosas como o Rio de Janeiro e São Paulo. Aqui, há muito mais homicídios que em qualquer uma delas se levarmos em consideração os dados oficiais e não oficiais das ocorrências em relação à população local”, alerta o pesquisador do Núcleo de Estudos em Criminalidade e Violência (Necrivi), e doutorando em Sociologia pela Universidade Federal de Goiás (UFG), Dione Antônio de Carvalho de Souza Santibanez. Na Redação do Diário da Manhã, na manhã de sábado (11), o especialista em violência afirmou que o problema tem solução, mas é preciso inicialmente identificar as causas e combatê-las de maneira eficaz.

Segregação socioespacial

Para o especialista em violência, a urbanização de forma acelerada e desorganizada porque passou a Capital do Estado é um dos fatores que ajudam a explicar o fenômeno da escalada da violência. “Goiânia, de cidade interiorana, tornou-se, em pouco tempo, uma metrópole. A relação disso com a violência pode ser vista no rápido aumento populacional e no fato de seus habitantes estarem majoritariamente empregados em ocupações precárias e de baixa remuneração, sobretudo no setor de serviços. Outra questão importante é a segregação social espacial. Num relatório publicado em 2012 pela ONU-Habitat, agência das Nações Unidas que faz pesquisas bianuais sobre a desigualdade nas cidades, Goiânia foi considerada a cidade mais desigual de toda a América Latina e uma das mais desiguais de todo o mundo. Mas essa desigualdade não é facilmente percebida, uma vez que a cidade se espalhou muito geograficamente e as populações menos favorecidas foram alocadas nas distantes periferias. A impressão de quem visita a cidade é de que elas não existem. A expansão imobiliária foi responsável por isso, uma vez que permitiu a formação de espaços urbanos socialmente segregados. O Parque Flamboyant é um exemplo emblemático do fenômeno. Ele era originalmente ocupado por famílias de baixa renda. Hoje, as classes média e alta estão instaladas lá e os antigos moradores foram habitar as periferias invisíveis. As populações segregadas têm necessidades, contudo não têm o mesmo acesso aos bens públicos como saúde, educação, segurança e transporte, e estão inseridas precariamente no mercado de trabalho”, explica o especialista em violência.

Templo do consumo

Segundo o pesquisador da UFG, os protagonistas dos casos de violência e, em particular, dos crimes de homicídio, são majoritariamente jovens do sexo masculino e isso se explica também pela construção cultural do ideal de masculinidade, do machismo, no qual a resolução dos conflitos se dá por meio da violência direta. Para ele, o machismo estaria expresso de forma mais evidente nos casos de violência doméstica e no trânsito. “Autores e vítimas dos crimes são parte da população mais afetada pelas desigualdades. São eles que estudam e precisam procurar o primeiro emprego, mas terminam sendo envolvidos em outros meios para adquirir bens, uma vez que estão inseridos numa sociedade consumista, na qual se considera sujeito quem tem acesso aos bens de consumo. O cenário está assim configurado. De um lado, a acentuada segregação espacial, de outro, a população juvenil medida pelo acesso aos bens materiais”, avaliou o professor Dione Antônio de Carvalho.

De acordo com ele, em outubro do ano passado, um episódio muito alardeado pela mídia, de forma equivocada, evidencia bem o fenômeno. “No Buriti Shopping, um grupo de jovens da periferia causou um grande alvoroço entre os frequentadores. Pensou-se que se tratava de um arrastão, mas aqueles jovens estavam apenas passeando por lá, ou dando um ‘rolê’, como eles gostam de dizer. Com a simples presença daquele grupo ‘estranho’, com suas roupas características, trejeitos e músicas da cultura Hip-Hop, houve um grande mal-estar. Vinte viaturas da PM e até um helicóptero foram deslocados para conter o arrastão que não ocorreu. Não houve qualquer registro de furto, roubo, agressão física ou depredação, mas a PM deu um tratamento de bandido àqueles que estavam apenas passeando, só porque aqueles jovens, sendo desfavorecidos, quiseram ter acesso ao templo do consumo. A pobreza em si não é responsável pela violência, o fato de um grupo social ser pobre não o torna mais tendencioso à prática de delitos contra o patrimônio. O problema está nas relações de desigualdade exacerbada”, denunciou o especialista em violência. Ainda segundo ele, outro fator que contribui para o aumento dos crimes violentos é o fácil acesso a armas de fogo. “No referendo de 2003 do Estatuto do Desarmamento, Goiás votou majoritariamente contra o item que tratava da fabricação e do comércio de armas de fogo”, afirmou.

Violação dos direitos humanos

Para Dione de Carvalho, outro problema agravador da violência no Estado é a violação dos Direitos Humanos. “Parece que existe uma priorização da repressão estatal violenta ao invés de uma maior aparelhagem da Inteligência no esclarecimento dos crimes e na aplicação da Justiça. Em Goiás, há possivelmente, hoje, em plena democracia, mais pessoas desaparecidas que na época da ditadura militar. Não são poucos os desaparecidos após abordagens policiais segundo o relatório ‘Insegurança Pública em Goiás: anacronismo e causa’, publicado pela Comissão de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa. O relatório mostrou que, nos últimos dez anos, diversas pessoas desapareceram em supostos confrontos com a PM, e as investigações da Operação ‘Sexto Mandamento’ da Polícia Federal revelaram as atuações de policiais militares em grupos de extermínio. Moradores de rua também foram vítimas da violência. Entre 2012 e 2013, o morticínio deles chegou a 32 casos. O fato é que, em Goiás, não existe uma estrutura institucional que viabilize o esclarecimento dos crimes que envolvem desaparecidos após abordagens policiais, extermínio de moradores de rua e atuação de grupos de extermínio militares. Goiás é um dos dois Estados brasileiros que não possuem Defensoria Pública constituída e, nos últimos dez anos, houve uma grande precarização das condições de trabalho da Polícia Civil e da Polícia Técnica. Por isso, existe uma iniciativa da Comissão de Direitos Humanos e de outros movimentos sociais de passar a prerrogativa da investigação dos casos de homicídios de moradores de rua para a Polícia Federal. O Instrumento de Deslocamento de Competências (IDC) ou federalização das investigações dos crimes de violação dos direitos humanos depende da aprovação do Supremo Tribunal Federal (STF) e não deve tardar”, avaliou.

Vetor das drogas

O delegado geral da Polícia Civil (PC), João Carlos Gorski (foto),  diz que, historicamente, os crimes contra o patrimônio são os mais frequentes, uma vez que, na maioria dos casos, o desejo de possuir aquilo que não se tem é o vetor desencadeador para quase todos os tipos de crimes, mesmo levando-se em consideração que a pena e a reprovação social para eles podem ser elevadas.
“Trabalhei na Polícia do Paraná, por 12 anos e, lá, há um índice elevado de homicídio e violência sexual, mas continuam muito inferiores aos crimes contra o patrimônio. Aqui, há muitos crimes com armas de fogo, mas há também os crimes sem o uso direto da violência, como as ameaças e verbalizações, abordagens, uso de habilidades (pular muro de residências, arrombamento de imóveis e veículos, por exemplo). A pena para o furto simples é muito baixa, poucos dias de reclusão em média. Em Goiás, os roubos de veículos, os arrombamentos a residências e as abordagens a pessoas nas vias públicas são as modalidades mais frequentes de crimes em comparação com os roubos a cargas por exemplo. E em grande parte dos crimes contra o patrimônio, o autor tem envolvimento com drogas e é muito jovem. O produto do furto ou roubo é trocado por drogas ilícitas. No caso do viciado em crack, a dependência forte e crescente o impede de buscar trabalho e de interagir socialmente. Há vagas no mercado, mas a atração exercida pelo crime é mais forte. Quando rouba um veículo, seja para desmanche, adulteração ou troca por drogas, o criminoso terá sempre algum benefício financeiro imediato. Torna-se, assim, necessária uma maior regulação social e o Estado precisa orientar e punir exemplarmente”, informa.

 “A situação da criminalidade em Goiás e de resto em todo o País não é apenas uma questão de responsabilidade da Polícia Militar ou da Polícia Civil. A legislação é falha quando favorece que aquele que comete um delito não responda criminalmente por ele, reforçando a cultura da impunidade. O Estatuto da Criança e do Adolescente também favorece ao menor infrator. Na maioria dos crimes, do tipo furto ou roubo, menores estão quase sempre envolvidos. Às vezes, apreendemos um menor por furto de veículo e, pouco tempo depois, o mesmo menor é novamente apreendido pelo mesmo crime”, avaliou o porta-voz da Polícia Militar do Estado de Goiás, coronel Divino Alves, em entrevista a este jornal em outubro do ano passado.

Segundo ele, o aumento ou a diminuição da criminalidade está antes relacionado a fatores específicos e difusos na sociedade. “Há o caso do sujeito que está predisposto ao crime, mas também fatores de ordem política, social, econômica e até cultural. E também faltam infraestrutura e comprometimento de alguns órgãos administrativos e da sociedade em geral. Em escolas públicas, por exemplo, recebemos pedidos para reforçar o policiamento. Mas quando vamos ao local, constatamos que não há lâmpadas e que os terrenos próximos à escola estão abandonados. Essas não são responsabilidades da PM ou de qualquer outra polícia. Atribuir apenas às polícias, e nesse caso, exclusivamente, à PC os números da criminalidade, é injusto. É verdade que ela é extremamente importante como parte da segurança pública do Estado, mas todos os atores sociais devem fazer a sua parte, governo, Justiça, Ministério Público, polícias Militar e Civil, rodoviária Estadual e Federal, sociedade civil”, avaliou o coronel Divino Alves na época.